Nascido em São Paulo em 23 de fevereiro de 1965, Sérgio Tréfaut – também conhecido como Serge Tréfaut – construiu sua carreira na Europa, entre a França e Portugal, para onde sua família se mudou durante a Ditadura Militar no Brasil. Após ter se formado em Filosofia na Sorbonne, em Paris, retornou a Lisboa e começou a trabalhar como assistente de direção, jornalista e produtor. Estreou no cinema no início dos anos 1990 com o curta Alcibiades (1991), partindo, logo em seguida, a desenvolver uma longa carreira como documentarista. Um dos seus principais trabalhos nessa época foi Lisboetas (2004), que lhe valeu troféus nos festivais IndieLisboa e CinePort, além de ter sido um fenômeno nas bilheterias locais. Com Viagem a Portugal (2011) estreou na ficção, e logo conquistou o prêmio de Melhor Filme no Coimbra Caminhos do Cinema Português. Isso o estimulou a seguir nessa linha, realizando logo em seguida o drama Raiva, que passou pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no final do ano passado e agora chega aos cinemas no circuito comercial brasileiro. E foi sobre esse mais recente trabalho que o cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Sérgio. Apesar de atuar em Portugal, você nasceu no Brasil, em São Paulo, confere? Como se deu essa escolha pelo cinema português?
O meu pai era português, opositor à ditadura de Salazar, e se exilou no Brasil, com a minha mãe, francesa. Nasci em São Paulo, em 1965, durante esse exílio dele. Mais tarde, em 1975-76, o meu irmão foi preso e torturado pela ditadura brasileira e tivemos novamente de nos exilar, desta vez fugindo do Brasil, primeiro para França, depois para Portugal. Estudei filosofia na Sorbonne, em Paris. O cinema surgiu na minha vida por estar rodeado de amigos portugueses que trabalhavam em cinema: Maria de Medeiros, Teresa Villaverde, Vasco Pimentel, Joaquim Pinto, José Álvaro Moraes, etc. Vivi mais de 40 anos entre Portugal e França. Agora estou voltando a viver no Brasil, onde pretendo filmar.
Raiva também é conhecido por O Pão. Qual a relação entre esses dois títulos?
O Pão foi apenas um título de trabalho do filme durante o período de montagem. Houve vários títulos. Apenas isso.
Raiva é uma adaptação do romance Seara de Vento. Como foi o seu primeiro contato com o livro de Manuel da Fonseca e o que o motivou a levá-lo para o cinema?
Li Seara de Vento quando preparava um documentário sobre a região do Alentejo, e o romance era tido como a obra mais emblemática dos conflitos ancestrais dessa região. Seara de Vento também é uma espécie de ‘western’ e um romance quase épico, escrito no presente cinematográfico. Durante a leitura, percebi depressa que seria um filme forte, simultaneamente local e universal. As tensões do Alentejo são as mesmas que existem há milhares de anos em toda a bacia do Mediterrâneo e em grande parte da América Latina.
Raiva fala de fome, de vingança, da terra, de diferenças sociais. Apesar da trama se passar há mais de meio século, o que ela diz sobre o Portugal de hoje?
Claro que o mundo rural português, e particularmente o Alentejo, continua a se desertificar por falta de investimento. O único recurso da população é emigrar. Mas é a permanência menos visível da relação de abuso de poder que me parece interessante interrogar. Neste filme, que retrata os anos 1950, o grande proprietário rural é a única pessoa ou entidade que oferece trabalho e que tem dinheiro na região. Os camponeses dependem totalmente dele. Mas ele também tem na mão os políticos, a polícia e a igreja, As pessoas praticamente lhe pertencem e é ele quem dita a justiça. Esse paradigma do poder e do seu abuso permanece de forma camuflada até os dias de hoje. Os bancos portugueses, por exemplo, agiram nos últimos anos de forma imoral, longe da mais evidente justiça, quando emprestaram a fundo perdido para especulações milionárias (que não devolveram o dinheiro e o estado teve de injetar dinheiro público para que os Bancos não fossem à falência). Mas os mesmos bancos cobram taxas proibitivas a quem tem poucos meios. O maltrato dos clientes mais modestos pelos bancos, a quem são cobradas as taxas mais altas, é a realidade mais comum.
O protagonista é vivido por Hugo Bentes, em uma atuação muito forte, assim como as mulheres, todas muito intensas. Como foi a seleção do elenco? O que você buscava nesses intérpretes?
Reduzi os diálogos ao mínimo, procurando que o filme funcionasse como uma fábula, sem explicações, sem falas. Procurei caras e corpos que dissessem tudo e fossem extremamente expressivas. Inicialmente, sonhei com Javier Bardem para o papel do protagonista. Ele chegou a ler o argumento, falei com o agente dele e tudo. Mas, não tendo dinheiro para sonhos tão altos, fui obrigado a procurar por alguém com a mesma força dele, mas em Portugal – e, por isso, com mais verdade ainda. Hugo Bentes não é ator. É um técnico municipal, que trabalha na área de produção e som, e que faz parte de grupos corais alentejanos. Foi assim que o conheci, filmando grupos corais. Ele cresceu no Alentejo rural e representa, de certa forma, a herança desse orgulho que resistiu à ditadura nos campos do Alentejo. Além disso, Hugo tinha qualidades para o papel que outros citadinos não teriam facilmente: foi jogador profissional de futebol, tem porte de arma, foi segurança… Todos os outros atores escolhi de forma muito intuitiva. Vieram do cinema português, do teatro, da televisão, da rua. Mas é um bouquet inédito, preparado especialmente para este filme.
Há ainda uma participação especial de Sergi Lopez. Como foi trabalhar com ele?
É doloroso ter um ator tão grande e tão maravilhoso para um papel tão pequeno. Antes das filmagens, tive apenas um encontro com Sergi em Paris. Ele havia lido o argumento e queria participar. É um intérprete muito generoso. O dia de filmagens com ele foi no Pulo do Lobo, uma garganta do Rio Guadiana. Foi uma experiência inesquecível. Todo mundo ficou apaixonado por ele.
Um dos destaques de Raiva é a bela fotografia. Por que essa opção em trabalhar com o preto e branco?
O preto e branco é, para mim, a forma de melhor respeitar o espírito da história e do livro. Cheguei a fazer testes de imagem a cores, no Alentejo, mas tudo soava a falso. Parecia publicidade de azeite, promoção turística ou telefilme.
Como foi a passagem de Raiva pelos cinemas portugueses?
Comecei a mostrar o filme em pré-estreias regionais, nas cidades do Alentejo, onde foram as filmagens, e em outras que apoiaram a produção. Fiquei surpreendido como um trabalho tão seco, austero, de certa forma conceptual e rigoroso, comovia as populações. Temi que me tomassem por um pseudoartista da cidade. Mas, às vezes, as pessoas se abraçavam, chorando com o protagonista e contando suas histórias de família. Acho que foi muito acarinhado e respeitado em Portugal. O que é estranho acontecer com uma adaptação literária, pois frequentemente as pessoas ficam com saudades do livro. Não aconteceu neste caso, felizmente. O que fizemos resultou em um ponto a mais. Acrescentou valor ao livro e manteve-se fiel ao seu espírito.
Como foram as reações da crítica?
Raiva ficou mais de dois meses direto em cartaz nos cinemas e continua com muitas projeções pontuais. Está nomeado em nove categorias para os prêmios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema (Melhor Filme, Direção, Ator, Atriz, Fotografia, Som, Roteiro Adaptado, Ator Coadjuvante e Maquiagem), para três prêmios da Sociedade Portuguesa de Autores (Melhor Filme, Ator e Atriz) e já recebeu alguns troféus em festivais internacionais.
Quais as expectativas sobre a chegada de Raiva aos cinemas brasileiros?
Para mim, é um tiro no escuro. Sei que existe preconceito contra cinema vindo de Portugal, mas espero que exista um público apaixonado pela grande história do cinema e que reconheça neste filme uma revisitação e homenagem aos clássicos de Carl T. Dreyer (A Palavra, 1955), Aleksandr Dovzhenko (Terra, 1930), Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas, 1963), Glauber Rocha, Luís Buñuel e outros.
(Entrevista feita por email em março de 2019)
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