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Regra 34 :: “Estava interessada em discutir sexualidade”, diz Júlia Murat (Exclusivo)

Publicado por
Marcelo Müller

O Festival de Locarno, que acontece anualmente na Suíça, é um dos mais importantes da Europa. E, sabem desde quando o Brasil não ganhava o Leopardo de Ouro, o prêmio máximo do evento? Desde 1967, quando o saudoso Glauber Rocha sacudiu a programação com o febril Terra em Transe. Portanto, é ainda mais digno de comemoração o feito de Regra 34 (2022), filme de Júlia Murat que quebrou uma seca de quase 60 anos ao trazer para o maior país da América do Sul novamente um Leopardo de Ouro. A história gira em torno de uma defensora pública que protege mulheres vítimas de abuso. No entanto, Simone tem seus próprios interesses sexuais que podem a levar para um mundo em que a violência e o erotismo se interconectam. Portanto, é uma abordagem que não foge das contradições, encarando as possíveis divergências e permitindo um debate sobre desejo, política e afins. Para falar um pouco mais sobre o longa-metragem que chega no dia 19 de janeiro aos cinemas, conversamos com Júlia Murat sobre a gênese e as transformações do projeto, bem como a respeito das polêmicas e da discussão dos limites do desejo. Confira.

 

A protagonista estava definida desde o começo como uma cam girl que também era defensora pública ou isso foi se desenhando ao longo do processo?
A primeira ideia do filme girava em torno de um casal de atores pornô na casa dos 40 anos. O filme mudou completamente no processo de feitura. Eu queria discutir sexualidade, pois esse foi um assunto que sempre me interessou. Comecei a investigar o universo pornô e me deparei com uma entrevista da atriz norte-americana Sasha Grey. Nessa entrevista, ela falava ser contra a fórmula clássica do pornô que termina com gozo na cara, especialmente porque acreditava no pornô como modo de expandir barreiras, desde as físicas até as sociais. Para mim isso fez um baita sentido. A partir disso desenvolvi a personagem da Simone. No começo, as histórias do casal e da Simone se encontrariam e depois tomariam rumos próprios. Na medida em que me apaixonei pela personagem da Simone, fui abandonando a ideia do casal. Quando Simone vai crescendo, para mim era claro que o filme teria questionamentos sobre demandas sociais, políticas e desejo. Já era cristalino que tudo estaria ligado ao sistema penal, embora ainda não tivesse definido ainda o recorte disso. Para discutir sociedade, mal ou bem, achava que discutir encarceramento era fundamental. Nesse processo vou entendendo que a defensoria é o melhor ponto.

Vivemos num momento em que assuntos e fenômenos são social e cinematograficamente simplificados. E o seu filme refuta isso, apresentando diversas contradições e ambiguidades. Dentro desse processo de desenvolvimento, você foi se interessando por essa complexidade?
Na verdade isso está por trás do processo, quando decido fazer um filme sobre a Simone, e que ela terá algum tipo de desejo por violência. Aliás, um parênteses. Isso era uma questão de expandir as minhas barreiras, era o assunto diante do qual tinha em princípio alguma moralidade. Voltando, quando expus a amigos esse recorte me disseram que eu estava maluca (risos). Me diziam que não fazia sentido, nesse Brasil patriarcal e feminicida, colocar como protagonista uma mulher que sente tesão por violência. Vou entrando na discussão com mais profundidade e percebendo que o furo é mais embaixo. Não à toa quando Elle (2016) foi lançado, na Europa gerou questionamentos, mas faz sentido, e quando ele chega aqui é uma porradaria. De fato, é complicado na sociedade em que vivemos construir a imagem de alguém que se excita com a violência. Assim, sempre fui uma pessoa com muito tesão, tive relações abertas e isso sempre foi essencial à minha identidade. Para mim era importante manter o desejo como algo que não pudesse ser totalmente enquadrado pela demanda polícia. E aí resolvo contextualizar isso, pois eu acreditava que era o jeito que poderia inserir a discussão sobre tesão no Brasil atual. E no meio desse processo o Jair Bolsonaro se elege presidente do país, quase desisto do filme, mas resolvi persistir até para não deixar o grupo dele ter uma narrativa hegemônica. E aí aumenta a responsabilidade.

“É complicado na sociedade em que vivemos construir a imagem de alguém que se excita com a violência”

Retomando algo que você disse sobre a diferença entre as recepções europeia e brasileira, você tem sentido uma disparidade muito grande nesse sentido?
Quando cheguei à Europa, tinha medo de quem ninguém compreendesse, porque toda a discussão do filme é muito latino-americana. Me surpreendeu muito a recepção em Locarno. Entendi que o filme tem algo estrutural. Por mais que ele questione o lugar do corpo da mulher negra nesse Brasil repleto de contradições, no fundo pondera sobre os limites entre o tesão e o seu desejo político. Esse limite, especificamente, varia de sociedade para sociedade, mas a discussão as tensões entre público e privado consegue extrapolar barreiras geográficas. Acredito que foi por aí que ele pegou na Europa. Também muita gente de lá veio falar da representatividade queer. Curiosamente, vejo isso pegando menos no Brasil. Há diferenças de recepção. Na Europa as pessoas dialogam com o filme mais nesse lugar estruturante e da sexualidade. No Brasil as discussões todas são muito mais compreensíveis da nossa realidade.

E como foi encontrar a protagonista, sobretudo visto que você precisava de uma atriz disposta a encarnar, às vezes, o corpo exposto?
O trabalho com a Sol foi intenso. Mas, antes, tivemos um longo trabalho de seleção. O Gabriel Bortolini fez isso e colaborou em praticamente todas as áreas do filme. Tenho implicância com teste, pois acredito que os atores aprendem a fazer teste e se colocam dentro de determinada técnica de fazer teste. Atualmente faço testes, mas sempre tentando fugir um pouco da métrica normal. O que o Gabi e eu desenhamos foi um processo longo e intenso. Nos encontrávamos com atores e atrizes por mais de duas horas. Cem por cento das pessoas que se encontraram conosco leram o roteiro do início ao fim e aí trouxeram muito mais contribuições e questionamentos. Nesse trabalho de oito meses discutimos intensamente os personagens. Tínhamos medo de trazer uma atriz negra para o filme como protagonista, por motivos um pouco óbvios, principalmente pois não queríamos correr o risco de reforçar o estereótipo da hiperssexualização do corpo negro. Porém, todas as pessoas negras com as quais conversamos disseram que escalar uma atriz negra era uma maluquice, uma roubada, mas que se desse certo seria do caralho. E as pessoas brancas refutavam essa alternativa completamente. Quando entendemos que essa restrição completa vinha apenas das pessoas brancas, identificamos algo que precisávamos levar em consideração. Como eu não queria sexualizar os corpos de jeito nenhum, resolvemos abrir os testes para mulheres negras. O Gabi foi essencial nesse ponto. Ele já conhecia a Sol, trouxe ela e eu fiquei muito fascinada. Ela não tentava “se vender” no teste, havia certa barreira que eu não conseguia acessar. E isso me interessou porque está na essência da personagem.

O processo de fazer o filme foi transformador para você, no sentido de lhe fornecer ferramentas novas para lidar com esses assuntos que ele aborda?
O filme me ensinou muito sobre o BDSM. Poucos integrantes da equipe conheciam esse universo, então o processo nos ajudou a conhecê-lo. Tenho desde muito cedo um convívio com a ideia de violência por causa da minha mãe (Nota da edição: Júlia é filha da também cineasta Lúcia Murat, torturada durante a Ditadura Civil-militar que durou de 1964 a 1985 no Brasil). Passei a infância ouvindo histórias de violência. Nesse processo, minha mãe comentou sobre um filme do qual ela gostava muito: O Porteiro da Meia-Noite (1974). E ela falou justamente desse lugar específico de reconhecer na trama muitas coisas que a angustiavam. A partir disso me senti meio autorizada a fazer um filme que continha algo nauseante para mim (risos). No fim das contas, fiquei fascinada pelo BDSM, algo que deveríamos estudar como sociedade. Há muita literatura nesse universo sobre a ideia de consensualidade. Um sim não é verdadeiramente um sim se a pessoas não tiver todos os instrumentos para dizer não.

Mesmo sem qualquer controle sobre isso, de que forma você gostaria que as pessoas recebessem o filme nesse país em que vivemos hoje?
O filme obviamente parte do desejo de falar sobre desejo. Há nele também um incômodo com determinado pensamento de esquerda progressista que tende a certo moralismo, especialmente os discursos feministas radicais, mas não apenas eles. Existe uma série de mecanismos punitivos para supostamente encerrar um ciclo de violências. Meu desejo era questionar esse movimento. Mas, durante o processo sobressaiu a vontade de dialogar, o reconhecimento de que há motivos por trás desses mecanismos punitivistas. Mesmo que eu os ache errados, eles possuem uma razão de existir. O que tentei era trazer o diálogo. Por mais que eu tenha várias opiniões, ele não pretende dar respostas. Então, se quero alguma coisa com esse filme é provocar mais diálogo entre as pessoas.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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