Renato Martins não é nenhum novato quando o assunto é a sua paixão pelo cinema. Há mais de dez anos vem trabalhando por trás das câmeras, seja como montador, roteirista ou produtor. E, claro, também com diretor. Após acumular experiência em curtas-metragens e em projetos para a televisão, estreou na tela grande com o documentário Carta Para o Futuro (2011), que teve sua primeira exibição no Festival do Rio e depois circulou o mundo. Na sequência, veio o esportivo Geraldinos (2015), feito em parceria com Pedro Asbeg, que chegou a ser indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Agora, ele está de volta às telas com Relatos do Front: Fragmentos de uma Tragédia Brasileira, que chega enfim aos cinemas após ter passado pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado. Aproveitando a oportunidade, o Papo de Cinema conversou com o diretor e roteirista, que falou mais sobre esse projeto, e ainda avisou: interessados em assistir ao longa podem agendar sessões por todo o Brasil direto no site do filme. Uma iniciativa incrível, que merece ser valorizada. Confira!
O próprio título, Relatos do Front, passa a ideia da guerra. Esse termo, no entanto, é questionado pelo próprio filme. Como você vê essa questão?
Tem essa conotação, é fato. Front, normalmente, é uma expressão que se usa quando estamos em guerra. Mas é também uma palavra um pouco mais ampla. Todos nós vivemos fronts cotidianos e diários. Temos vários tipos de fronts que, metaforicamente, também usamos. No mais coloquial, que poderia ser em uma guerra, a empregamos no intuito de que existe um conflito urbano armado acontecendo. Algumas pessoas usam a palavra guerra para o que se passa todos os dias no Rio de Janeiro. Mas nós preferimos “guerra”, entre aspas. Entende a diferença? Para nós, a guerra no Rio de Janeiro existe em um determinado espaço, nas favelas, ou comunidades, e acontece por disputas territoriais. Traficantes e milícias entram em confronto pra ver quem manda na favela. A polícia é uma terceira via, que acaba no meio disso tudo. Pensamos nesse conflito urbano. Mas guerra, não, não é o caso. Uma guerra real tem toque de recolher, ninguém sai de casa. É uma outra modalidade.
O filme abre espaço para as vítimas de ambos os lados da violência urbana no Rio de Janeiro. Essa era uma preocupação desde o começo ou algo que surgiu naturalmente?
Não, era uma preocupação desde o início do projeto. A gente queria dar voz para os dois lados do conflito. Policiais e ex-traficantes. Chamamos estes de ex-criminosos, no filme. E tem também um terceiro lado, que são as mães. Elas estão no meio, perdendo seus filhos, por conta dessa loucura. A ideia foi dar também voz à polícia, que nunca é ouvida com atenção. Achamos que ela responde por uma parte muito grande desse processo. Está representando o Estado, e precisa de ajuda, pois mesmo com o psicológico abalado é mandada para a rua. Isso acaba criando problemas maiores para a população. Se a gente não cuidar da polícia, não der atenção para as questões e as demandas deles, dificilmente vamos solucionar esse conflito. Por isso era importante ouvir os lados com calma, inclusive dos ex-criminosos. É uma oportunidade pra saber como pensam. Como é o outro lado. Estimular esse dialogo com a sociedade. E com as autoridades também. Somente juntos poderemos sanar esse problema e diminuir os conflitos com ações mais sérias, e não paliativos.
Relatos do Front tem como foco o Rio de Janeiro, mas a violência é um problema de todo o país. O que esse filme tem a dizer ao resto do Brasil?
Pois é, essa é uma ótima pergunta. Como sou carioca, o filme acabou sendo feito no Rio de Janeiro. E aqui, realmente, há uma vitrine de grande exposição, que vem acontecendo há várias décadas. Mas foi só por isso, além dos motivos financeiros. Afinal, para ir a outros estados, tudo ficaria mais caro. Mas esse filme não é apenas sobre o Rio de Janeiro. Pretende falar com todo o Brasil. Tanto que queremos exibi-lo em outros estados e cidades. A questão da violência não é exclusiva do Rio de Janeiro. Ela tem aumentado em todo o país, por vários motivos e razões. Abordamos o Rio, mas conversamos com todo o Brasil, a partir desse exemplo. Não é um bairrismo, é para todo mundo. Em escalas maiores ou menores, com os tamanhos de cada cidade, há quanto tempo enfrentam o mesmo problema? Nossa intenção é dialogar com o maior número possível de espectadores.
A quantidade de pessoas entrevistadas é impressionante. Teve alguém que você quis conversar mas que se recusou a recebê-lo?
Alguns que entrevistamos não ficaram no corte final, mas isso por problema de metragem, mesmo, para o filme não ficar muito longo. Outros que queríamos, no entanto, não conseguimos. Um deles foi o José Mariano Beltrame, ex-secretário de segurança do governo Cabral. Ele ficou durante anos envolvido nos projetos da UPPs, um trabalho, aliás, que não foi visto bem pela sociedade. Quase nem tem mais hoje em dia. Por isso, era uma vontade contar com ele, até pelo fato de não estar mais no governo. E também pelo equilíbrio, pois é outro ponto que trazemos nesse filme. Desde o início, sabia que teríamos um filme apartidário. Pra todo mundo assistir. Seja qual for o credo, o gosto, a opinião. Tivemos essa preocupação. Por isso, não queríamos políticos, e até mesmo o Estado, como representantes. Agora, quanto ao Beltrame, quem sabe no Relatos do Front 2? É uma ideia fazermos uma continuação, e também uma série para a televisão. Então, a porta não está fechada. Aconteceu com ele de nunca termos recebido uma resposta oficial. Em nenhum momento nos disse: “não quero falar com vocês”. Foi uma questão de agenda, dele não estar na cidade na época. Tentamos, mas não deu.
Relatos do Front, em certo momento, questiona até mesmo o campeão de bilheteria Tropa de Elite (2007). Onde e como estaria o Capitão Nascimento hoje em dia?
É importante tratarmos dessa questão com bastante cuidado. Sou montador do Tropa de Elite 2 (2010). Trabalhei com o José Padilha em várias ocasiões. Somos amigos, apesar de não nos falarmos há algum tempo. Então, em nenhum momento me propus a criticar o filme. A questão do Tropa de Elite é que se trata de um tema muito polêmico. Quando chegamos naquela situação de dividirmos as opiniões, e o policial, no filme, pega a arma e executa o traficante, é importante estar atento para a reação do público. No momento em que aquilo acontecia, e as plateias em peso levantavam para aplaudir uma ação dessas, o problema não está na ficção. O filme é uma obra de arte, independente, uma manifestação apenas. A questão está na sociedade. Se estão desejando e aplaudindo isso, aplaudem o assassinato. É muito complicado. Enquanto democratas, que somos e queremos o bem da sociedade, não vejo isso como algo normal. Acredito que o criminoso tem que ser preso e responder dentro da lei. Com defesa e acusação. Esse é o estado democrático de direito que acreditamos. O Capitão Nascimento representa os anseios de quem bate palmas para uma cena daquelas. Mas não é um problema do filme, e sim de quem o vê e como reage diante disso. Ele é um produto, apenas. Não dá pra ser tão acusatório ou defensor, é preciso ouvir as partes. A coisa mais importante que aprendi com o Relatos do Front foi a ouvir, escutar o outro, aquele que pensa diferente da gente, para poder construir um meio do caminho que seja viável para todos.
O que um filme como Relatos do Front tem a dizer ao Brasil de hoje, com um presidente que estimula o armamento da população?
Pois é, quando começamos esse filme, em 2014, com as filmagens em 2015, não tínhamos a menor ideia de que iria estrear nesse momento do país. Com um presidente que incentiva as pessoas a comprarem armas. No meu ponto de vista, quem fizer isso irá gerar um problema ainda maior do que a solução ambicionada. Qualquer discussão vai acabar em bala. As pessoas estão atrás até de capacetes à prova de balas! A polícia vai ter que se proteger muito mais, para não ser almejada. Para não ser mais vítima do que já é hoje em dia. Relatos do Front chega num momento importante, porém sem apontar o dedo para ninguém. O que trazemos é uma reflexão. Nos perguntamos se esse é o melhor caminho? Quem decide isso? O presidente? Claro que ele é uma figura importante para o país, mas não é ele que toma todas as decisões. Essas devem ser resultado de um conjunto, atendendo à várias partes da sociedade. Visando os poderes instituídos e a própria sociedade como um todo. A maioria da população não quer a liberação do armamento. É uma vontade de alguns, mas até aí… todo mundo pode ter vontade, ela dá e passa. Isso tem que ser visto com mais seriedade. Com o desarmamento que teve há alguns anos, os números comprovam que teve uma diminuição de mortes. Nós já lidamos, hoje, com uma quantidade absurda de homicídios. Queremos dobrar? Ou alguém acha que as pessoas, com uma arma na cintura, vão contribuir para que essa estatística diminua? Não entendo essa matemática.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / Rio de Janeiro em junho de 2019)
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