Apesar de já ter realizado vários curtas e premiado em festivais de renome, como o de Gramado, Santiago Dellape está estreando apenas agora no formato longa, com a comédia de ficção-científica A Repartição do Tempo. Responsável também pela produção, montagem e roteiro, o diretor brasiliense afirma ter se inspirado nos filmes dos Trapalhões e em clássicos da Sessão da Tarde para prestar uma justa e sincera homenagem ao cinema de aventura e fantasia que marcou os anos 1980 e que foi, para toda uma geração – e para ele, inclusive – via de acesso ao universo da sétima arte. Inteiramente filmado em Brasília, passou pelo Festival de Brasília e pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e chega agora, finalmente, às telas de todo o país. E aproveitando esse lançamento, nós fomos conversar com o realizador, em um bate-papo inédito e exclusivo. Confira!
Olá, Santiago. A Repartição do Tempo é teu primeiro longa como diretor. Por que começar com uma ficção científica ambientada nos bastidores da capital federal?
Essa proposta de realizar uma ficção científica de viés cômico ambientada nos labirintos burocráticos de Brasília é, na verdade, um retorno ao tema que comecei a investigar num dos meus primeiros curtas, Nada Consta (2006), trabalho de conclusão do curso de Audiovisual na Universidade de Brasília (UnB). Naquele filme, o protagonista é impedido de viajar à Lua, pois lhe falta um ‘nada consta’ para embarcar. Creio que minha inspiração vem dessa atmosfera burocrática que Brasília está completamente impregnada. Além, é claro, da observação cotidiana, já que tanto eu quanto o roteirista Davi Mattos somos funcionários públicos de segunda à sexta-feira, em horário comercial.
O que lhe atrai neste gênero?
Na verdade, o que me atrai é o cinema de gênero, seja ele qual for: ficção científica, aventura, terror ou fantasia. Acho que há uma lacuna enorme no cinema brasileiro quando se trata do assunto e é nesse terreno que gostaria de situar meus filmes. Sinto que há uma demanda reprimida do público nacional por esse filão e me surpreende que tão poucos realizadores daqui estejam interessados nesse tipo de exercício. Predomina, na nossa cultura cinematográfica, o drama existencialista, o drama social e a comédia alienada. Não estamos explorando a miríade de possibilidades que a narrativa cinematográfica oferece. É preciso mudar não só a mentalidade do realizador – de que cinema de gênero não é necessariamente um cinema menor ou menos sofisticado – como também a do público, que ainda precisa se acostumar a assistir filmes locais que não falem necessariamente de favela, de sertão ou sobre a questão indígena.
Quais obras foram referenciais na construção de A Repartição do Tempo?
As principais obras que inspiraram A Repartição do Tempo foram os filmes de aventura dos Trapalhões, os clássicos da Sessão da Tarde (tais como Os Goonies, 1985; Conta Comigo, 1986; De Volta para o Futuro, 1985, e Feitiço do Tempo, 1993), assim com títulos mais contemporâneos como O Grande Lebowski, 1998; Quero Ser John Malkovich, 1999, e O Cheiro do Ralo, 2006.
A Repartição do Tempo investe muito no talento local, em artistas de Brasília, certo?
Brasília tem tradição de ter ótimos atores e sou muito feliz por ter escolhido nomes locais para defender os protagonistas Jonas (Edu Moraes, premiado como melhor ator da Mostra Brasília) e Zé (André Deca). São atores que já colaboram comigo desde os primeiros curtas, como o sábio ancião Andrade Jr. e o volumoso Lauro Montana. Me sinto muito à vontade trabalhando com eles e nossa troca flui naturalmente.
Mas há também participações especiais, como Dedé Santana, Selma Egrei e Tonico Pereira. Como chegaste a estes nomes?
Também tinha consciência de que era preciso escalar nomes conhecidos no cenário nacional para obter alguma legitimidade junto a público e crítica, e nasceu daí o convite à participação de Eucir de Souza, Bianca Muller, Tonico Pereira, Selma Egrei e Dedé Santana. Todos atores de talento inquestionável e que, generosamente, me concederam a oportunidade de aprender muito sobre cinema e interpretação com cada um deles.
Algum deles teve um significado especial para você?
A escalação de Dedé Santana foi especialmente significativa, pois além de se tratar de um ídolo de infância, foi uma forma de homenagear a memória dos Trapalhões, cujo humor anárquico e politicamente incorreto é um dos pilares deste filme. Sem contar que A Repartição do Tempo marca o retorno de Dedé às telonas, após um afastamento involuntário que durou mais de uma década. Gosto de pensar que nossa colaboração foi, de certa forma, uma injeção de ânimo na carreira do Dedé, pois logo em seguida viriam convites para ele participar de O Shaolin do Sertão (2016) e de Os Saltimbancos Trapalhões: Rumo à Hollywood (2017), reatando a antiga parceria com Renato Aragão. Também tenho muito orgulho de estar lançando, em A Repartição do Tempo, a jovem e promissora atriz Yasmim Sant’anna, filha do Trapalhão, que, na minha opinião, protagoniza a cena mais engraçada do filme. Nesse processo com os atores, preciso destacar o papel importantíssimo que teve o preparador de elenco do filme, Sergio Sartorio, com a ajuda do também diretor brasiliense Gui Campos.
E em relação ao elenco principal? Foram preciso testes ou você desde o início pensava nestes atores?
Não fiz teste de elenco para esse filme, absolutamente. No caso dos atores de Brasília, já havia trabalhado anteriormente com a maioria deles, que me davam total segurança quanto à qualidade da interpretação que iriam entregar em cena. Alguns papéis, inclusive, foram escritos já pensando nesses atores, como no caso dos personagens interpretados por André Deca e Andrade Jr. Creio que, por esse motivo, são atores que roubam a cena nos momentos em que surgem na tela.
A Repartição do Tempo foi exibido na Mostra Brasília, no Festival de Brasília, e esteve na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o maior evento cinematográfico do país. Como tem percebido a recepção do público ao filme?
Em Brasília já esperávamos uma recepção calorosa por ser a cidade natal do filme – e não foi muito diferente do que imaginamos. Na ocasião, inclusive, recebemos críticas extremamente positivas, o que nos deixou bastante motivados. Mas o que de fato surpreendeu foi a recepção do público em sua primeira exibição na Mostra de SP – que, na minha avaliação, foi até melhor do que em Brasília. O público parecia realmente ter comprado a proposta do filme e o que vimos foi uma audiência bastante envolvida ao longo dos 100 minutos de projeção, interagindo com o filme, rindo, gargalhando, se manifestando.
O filme tem uma construção narrativa elaborada, com flashbacks e pulos no tempo, além do uso de efeitos especiais intrincados. Qual foi o maior desafio enfrentado para sua realização?
O maior desafio pra realizar esse filme, sem dúvida, foi fazê-lo caber no orçamento de R$ 1 milhão e no apertadíssimo cronograma de apenas 4 semanas de filmagem. Mérito das produtoras à frente do projeto: 400 Filmes, Docdoma e Gancho de Nuvem. A montagem também foi um desafio à parte, tendo se estendido ao longo de oito meses, capitaneada por meu guru cinematográfico, Marcius Barbieri. Um evento definidor para a montagem foi o Teste de Audiência que realizamos em Brasília e SP (através dos produtores Marcio Curi e Renato Barbieri) e que resultaram não só no corte final do filme, como na mudança do título (o original era Licença Prêmio).
Após sua passagem por festivais, como tem sido pensado o lançamento de A Repartição do Tempo nos cinemas? E próximos projetos, já há algo em desenvolvimento?
O lançamento de A Repartição do Tempo no circuito comercial, bem como em todas as outras mídias existentes no planeta, está sendo muito bem pensado pela distribuidora O2 Play, que tem apostado no projeto desde o início. Meu próximo filme será O Verão da Lata, uma livre adaptação do célebre evento que marcou o verão de 1987 nas praias do litoral brasileiro. O projeto está em fase de desenvolvimento e estou trabalhando no roteiro neste exato momento com Davi Mattos, colaborador de longa data.
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