Alvaro Delgado Aparicio é um dos nomes mais em alta no atual cinema peruano. Nascido na cidade de Lima, capital do país, passou dois anos em Londres estudando Psicologia. Tudo parecia apontar para um caminho mais acadêmico, até começar a se interessar por Cinema. Começou escrevendo roteiros, e seu primeiro curta, El Acompañante (2012), já o levou para Sundance, nos EUA – um dos mais prestigiados eventos cinematográficos de todo o mundo. Uma vez lá, despertou a atenção do criador do festival – ninguém menos do que Robert Redford, que ficou impressionado ao saber que o rapaz era um autodidata. Incentivado pelo astro de Hollywood, se inscreveu para uma bolsa-oficina no Sundance Institute, e acabou sendo um dos doze candidatos escolhidos – dentre mais de 12 mil candidatos de todo o mundo! O resultado desse aprendizado é o longa Retablo (2017), que saiu premiado do Festival de Berlim 2018, e desde então tem tido uma exitosa carreira ao redor do mundo, até ser escolhido como candidato oficial do Peru no Oscar 2020. Aproveitando o lançamento nos cinemas brasileiros, o cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Alvaro. Retablo ganhou vários prêmios ao redor do mundo. Como foi estrear com um trabalho de tamanho impacto?
Estou muito honrado por termos estreado na Berlinale, por exemplo. Desde lá, a experiência tem sido incrível. Ontem mesmo nos avisaram que ganhamos o prêmio 45, no Panorama Coisa de Cinema, em Salvador, aí no Brasil. Sim, foram vários prêmios de melhor filme, mas também muitos de diretor estreante. Estamos muito felizes por tudo o que alcançamos. Afinal, Retablo divulga uma mensagem de amor, e também de tolerância. Esse foi o maior prêmio, perceber o quão longe o nosso recado tem ido, e a quantidade de pessoas que temos tocado com a nossa história. Estamos muito honrados, e sabemos que foi muita sorte contar com toda essa atenção.
Você imaginava que seu filme poderia causar tamanha repercussão?
Foi incrível tudo o que vivemos! Mas a gente nunca espera que algo assim aconteça. Trabalhamos duro por tantos anos. Buscamos apenas um jeito de nos comunicar, não ficamos pensando nas reações. Com esperança, torcemos para que gostem, que surja uma ou outra crítica positiva. Mas conosco foi tudo muito rápido. Logo depois da exibição em Berlim, todo mundo estava falando conosco. Nos sentimos muito humildes, nunca imaginamos que algo assim pudesse acontecer. Acabamos de vender para a China, Inglaterra, Brasil, Austrália. É um sonho que se realiza.
Imagino que um começo como esse possa gerar muita responsabilidade, e uma expectativa enorme para o que fazer em seguida. Tens ideia do seu próximo passo?
Claro, por ser o meu primeiro filme, é tudo muito impressionante, mas não vou parar por aqui. Já estou envolvido no meu próximo projeto, e é sempre um recomeçar do zero. É isso que gosto, pois fiz vários curtas antes, e sei como se dá o processo. Meu próximo filme será sobre a relação entre mãe e filha, e se passará nas florestas do Peru. É o que estou explorando agora. Não ficamos calculando se será um sucesso ou não, pois isso é imprevisível. O importante, mais do que qualquer coisa, é a urgência da história.
Apesar dos atores experientes, Retablo conta com um estreante, o jovem Junior Bejar, como protagonista. Você poderia falar um pouco como foi a seleção do elenco? Alguém chegou a recusar se envolver com o projeto por causa da temática?
Escrevi esse filme enquanto estava em Sundance. O que me disseram era que, se não tivesse o protagonista certo, não teria o filme. Passei um ano andando pelos Andes, procurando por esse rapaz. Testamos mais de 700 garotos! Todos os lugares, cada vila possível de ser visitada. E chegamos ao fim com apenas um nome em mente: Junior. Não havia uma segunda opção! Ele nunca havia atuado, nem mesmo na escola. Gosto disso, de trabalhar com não atores. Quando o conheci, percebi que se tratava de um rapaz muito introvertido. Ao mesmo tempo, fiquei abismado com o poder que emanava dos olhos dele. E tudo isso com 15 anos apenas. Ou seja, tinha que ser ele!
Qual foi a maior dificuldade que enfrentaram nesse processo de seleção do elenco?
Como falar com os pais do protagonista a respeito da história? Nos Andes, tudo é muito religioso, são muito conservadores. Portanto, sentamos com eles, e lemos por 6 horas o roteiro! No final, estavam chocados! A resposta da mãe foi bem direta: “isso é um tabu, não falamos sobre isso por aqui”. Ela estava muito emocionada, mas disse que o filho teria que ler conosco, e ele tomaria sua própria decisão. Ou seja, no dia seguinte, fizemos todo esse processo novamente (risos). Estávamos com muito medo que ele dissesse não!
Qual foi a reação dele?
Quando terminamos, ele olhou para mim, começou a andar em círculos, e quando parou, olhou novamente e disse: “essa é uma história sobre amor”! Eu quase chorei, porque levei anos para entender isso, e ele pegou na hora! E uma história muito controversa, eu sabia. Ele estava com medo, claro. Mas quis fazer, pois sabia que a comunidade dele precisava disso. Tinha que trazer esperança e tolerância. Ele quis fazer, e começamos a nos ajudar. Durante três meses, antes das filmagens, me mudei para a casa dele, morando com a família. No primeiro mês e meio, nenhum ensaio: apenas desenvolvendo nossa química. O buscava na escola, ia com ele no jogo de futebol, jantávamos juntos.
Você empregou esse mesmo método com todo o elenco?
O ator que faz o pai, Amiel Cayo, é um ator muito famoso no Peru. Faz muito teatro, mas já atuou até em Hollywood. O chamei a se juntar a nós, pois precisava desenvolver essa relação entre eles. Precisava se apropriar dos personagens. Foi assim que o processo começou. O que queria criar era um espaço de muita confiança. A Magaly Solier era daquela mesma região, para você ter ideia! Isso tudo ajudou, mas cada um exigiu uma abordagem diferente. Ao menos até o ponto em que todos estivessem conectados e no mesmo nível.
A temática LGBT já estava no curta El Acompañante (2012). É um assunto que te interessa? Imagina seguir abordando este tema em filmes futuros?
O El Acompañante foi um experimento. Precisava começar de algum jeito, e penso que foi um bom início. Foi feito muito antes do Retablo. É sobre um filho e um pai. O garoto é michê, e o pai é paraplégico. Eles moram juntos, e é sobre essa relação. Ou seja, como você pode perceber, estou mais interessado na questão da identidade. No Retablo, quando você é adolescente, e o seu pai não é exatamente como você espera, o que acontece com a sua identidade? Essa é a minha questão. Agora, nesse próximo projeto, que envolverá uma mãe e filha, quando você quer ter liberdade, mas depende de algo mais forte, como conciliar esses dois mundos? Quando abordo a questão LGBT, outra dimensão da sexualidade sempre surge. E é isso que me interessa.
A questão da língua, em Retablo, é muito importante. A atriz Magaly Solier influenciou diretamente na escolha do quéchua para a maior parte dos diálogos. Isso confere?
Eu, particularmente, não falo quéchua. Não conheço o dialeto. Mas o respeito. O interessante é que os retábulos nasceram nos andes. Por isso, tínhamos que estar lá. Escrevemos o roteiro na Espanha, em espanhol. Quando estávamos ensaiando, a Magaly levantou essa questão: “por que não falamos em quéchua?”. Meu produtor achou que estávamos loucos. Logo no primeiro filme, falando uma língua que eu próprio não conhecia? Como assim? E me aconselhou fortemente a não fazer isso, pois imaginava que poderia dar muito errado. Mas gostei da ideia de experimentar.
Por que era preciso falar neste dialeto?
Falei com os três protagonistas, essa família, e pedi para tentarem. Quando fizeram, me dei conta do quão real era tudo aqui. A mãe do Junior era quéchua, e com a Magaly acontecia a mesma coisa. Eles tinham isso neles. Ou seja, estava funcionando. Organizei sessões dessas gravações, e ensaios, primeiro em espanhol, e depois em quéchua, para o produtor e a equipe. Todo mundo ficou abismado! É uma língua muito difícil, foi necessário ter um intérprete no set o tempo todo. É uma língua poética. Mas foi a melhor decisão. Um grande desafio, mas quando falamos em outra língua, estamos sempre traduzindo. Para eles, em quéchua, foi mais real.
Como Retablo foi recebido no Peru?
Normalmente, há um paradigma por aqui que, quando você vai bem no exterior, o mesmo não acontece em casa. Nossa primeira exibição foi em fevereiro de 2018, em Berlim, e foi tudo tão bem, que parecia, ao mesmo tempo, muito distante da nossa realidade. Em Peru, só em maio de 2019 conseguimos estrear nos cinemas, mais de um ano depois. A maior complicação foi encontrar um distribuidor. Sem atores muito conhecidos, falado em quéchua.. quem iria querer? Até que chegamos num ponto em que desistimos de procurar, e lançamos em 35 cinemas, de uma forma quase independente, sem investir nada! Estávamos enfrentando filmes grandes! Aladdin (2019), Rocketman (2019) e John Wick 3: Parabellum (2019) estavam em cartaz na época, para se ter uma ideia! E, mesmo assim, estreamos em primeiro lugar nas bilheterias de Lima!
A concorrência era de peso. Quais foram as reações do público e da crítica especializada?
Não sei explicar o que aconteceu, mas todos os ingressos foram vendidos! Passamos como um foguete! Quando percebemos, havia um movimento, todo mundo comentando, e recomendando: “você tem que assistir a esse filme”. Na sétima semana em cartaz, tudo estava vendido ainda! E também pelo interior. As pessoas pediam aos cinemas, inclusive com abaixo-assinados, petições para exibirem o filme. Em termos de público, tivemos mais de 800 mil espectadores. E os críticos adoraram também. E não só eles: políticos, jornalistas esportivos, todas as classes da sociedade. E sem gastar um dólar no marketing! Não tínhamos orçamento para isso. Tocou o coração de muita gente. Agora, estamos em campanha no Oscar e Goya. É o nosso representante oficial! Para teres uma ideia, cerca de 50 filmes são feitos no Peru por ano, e fomos a escolha unânime!
Há alguns anos, o Brasil escolheu como representante no Oscar o longa Hoje eu quero voltar sozinho (2014), que também tinha como protagonistas personagens homossexuais. Qual a importância desse debate no cinema latino-americano?
É muito importante, com certeza. Especialmente em países conservadores e religiosos, como os da América Latina. Afinal, estamos falando sobre tolerância, e mais do que isso, sobre respeito. E diversidade também. Quem disse que todos precisam ser iguais? Retablo é uma história muito pequena, mas também universal. Todo mundo pode se comunicar com ele. No final do dia, aceitar o outro é só o que importa. Acredito nisso. Se há amor, tudo será curado, tudo estará ok. Era isso que queria. É muito difícil, pois estávamos lidando com um assunto que é tabu. Enfim, muitos outros filmes precisam ser feitos, para continuar com esse debate. O cinema pode ajudar a mudar esse paradigma. Você começa a se questionar, discutir suas relações, e isso é interessante. Falar com as pessoas, após as sessões de Retablo, era sempre emocionante. Pais e mães, falando sobre como é complicado se relacionar com seus filhos, e o contrário também. Vai além da sexualidade, e sim sobre como aceitar o outro. Era essa reflexão que queria provocar.
O que você conhece do cinema brasileiro? Como espera que Retablo seja recebido pelos brasileiros?
Estive apenas uma vez no Brasil, e visitei São Paulo e o Rio de Janeiro, mas por apenas pouco dias. Adoro o cinema brasileiro, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos é Central do Brasil (1998)! Adoraria dirigir a sra. Montenegro um dia! Amo ela de coração, espero um dia poder conhecê-la, queria muito escrever para ela. Quanto ao Retablo, não sei o que esperar. Esse filme tem me trazido tantas surpresas. Polônia, China, todo mundo tem sido muito tocado. Torço para que no Brasil aconteça o mesmo. Acabamos de ser premiados aí, então é um bom indicativo. Torço por isso.
(Entrevista feita por telefone em novembro de 2019)