O que justifica a ascensão da extrema-direita em tantos países, como a França (com Marine Le Pen) e o Brasil (com Jair Bolsonaro)? Por que tantos trabalhadores e pessoas desfavorecidas votam nos candidatos de discursos populistas, que tradicionalmente favorecem as classes mais ricas? Este é o principal questionamento levantado pelo documentário Retour à Reims (Fragments) (2021), de Jean-Gabriel Périot, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2021.
O cineasta parte do livro homônimo de Didier Eribon, que traça uma história da classe operária e da esquerda francesa desde os anos 1950 até os dias de hoje, voltando-se à própria família. Eribon se surpreende quando o pai, ex-militante comunista, passa a apoiar o Front National (partido francês de extrema-direita), e busca compreender o fenômeno através de conceitos da história, da sociologia e da antropologia. Leia a nossa crítica.
Périot adapta o denso texto ao cinema através de uma impressionante colagem de arquivos (incluindo vídeos pessoais de trabalhadores, trechos do cinema clássico e gravações das manifestações atuais) e da narração da atriz Adèle Haenel, bastante engajada por uma arte progressista. O Papo de Cinema conversou com o diretor sobre o projeto:
O filme aborda temas políticos e sociais complexos. Como adaptou o livro ao roteiro?
Existem muitos elementos possíveis para essa resposta. Primeiro, quando reli o livro e decidi fazer um filme a respeito, as páginas que me despertaram mais vontade de adaptar foram aquelas pouco comentadas, quando Didier compreende que seu pai operário votou no Front National, tendo defendido no passado o PCF (Partido Comunista Francês). Então ele efetua uma explicação política sobre como estas pessoas passaram do comunismo à extrema-direita. Gostei muito do fato que todos os elementos de resposta eram conhecidos, mas Didier consegue condensar tudo isso em pouco tempo, dando uma explicação compreensível ao fenômeno. Eu queria transmitir esta reflexão tão clara. Como a mãe dele falava do Front National, eu decidi torná-la a personagem principal do filme. Em seguida, por causa da minha sensibilidade política, quis efetuar uma história social e política da classe operária, ao invés de me dedicar aos fatos mais biográficos de Didier. Era preciso fazer uma escolha, e para mim a história operária era mais importante. Não quis fazer julgamentos morais, esta era apenas uma escolha de sensibilidade. Isso me deu a oportunidade de me voltar à minha própria família, como ele faz com a família dele.
Por que divide a história em “movimentos” e capítulos numerados?
Eu sinceramente não me lembro mais. Mas a divisão em capítulos se relaciona com a própria estrutura do livro, que salta entre histórias diferentes através desta divisão. Quis manter a segmentação muito clara, para deixar muito claro ao espectador que cada tema abordado não apenas é bem diferente do anterior, mas também constitui uma parte do livro. Isso acena ao fato de que aquela estrutura não me pertence, deixando claro ao espectador que estou fazendo uma montagem pessoal a partir de um texto. Assim, eu sublinho que o texto não foi escrito dessa maneira, nesta ordem. Quanto aos movimentos, lembro que surgiram muito cedo na construção do filme. Talvez eu tenha deixado primeiro a história social, e depois um contexto político, o que permite dividir a narrativa em duas partes. Mas sinceramente não me lembro mais do que eu pensei quando tomei esta iniciativa.
Como foi o processo de pesquisa em materiais de arquivo, e de que maneira queria que se relacionassem com a narração?
Quando olhei para o material de arquivo, procurei várias coisas. Primeiro, a montagem que eu tinha feito do texto era muito mais longa do que aquela presente na versão final, e não queria abrir mão destes fragmentos. Por isso, busquei trechos de vídeos que contassem a mesma coisa que dizia Didier. Isso me permitiu cortar o texto, quando eu encontrava arquivos que já contavam a mesma informação. Segundo, procurei arquivos capazes de expandir o texto, ou seja, contando a mesma história com um personagem novo. Por exemplo, quando a voz em off fala sobre o pai de Didier na usina, nós vemos jovens meninas trabalhando numa usina. É um relato da mesma vida, mas deixa claro que a vida mencionada não era restrita a essas pessoas.
Terceiro, queria reparar um problema que tenho enquanto espectador, diante de filmes de arquivo com voz off, quando tenho dificuldade de acompanhar as vozes e as imagens ao mesmo tempo. Não podemos escolher qualquer imagem para ilustrar o texto. É preciso pensar no ritmo, na matéria. A imagem precisa ser forte, mas não forte demais. Busquei imagens com relações às vezes menos evidentes, mas com uma duração e um tom compatíveis com a voz. Quarto, escolhi pedaços inesperados, como trechos de música. São os materiais que a gente encontra por acaso, quando está procurando outra coisa. Esses trechos mais abertos, mais poéticos, são fundamentais para criar ritmo e não tornar o filme tão denso assim. O uso destes trechos não é muito racional, ele surge durante a pesquisa.
As cenas contemporâneas foram as únicas filmadas por você mesmo?
Não, eu nem filmei as cenas do fim do filme! São materiais de arquivo contemporâneos. Os únicos trechos filmados por mim são raros, e aparecem no comecinho do filme. Na verdade, cheguei a fazer entrevistas, que acabei não utilizando na montagem final. Quando tivemos manifestações, até pensei em filmá-las, mas queria trazer uma multiplicação de lutas e de maneiras de filmar. Foi mais racional pegar emprestado o material de pessoas que já estão filmando esses acontecimentos atualmente, e depois combiná-las à narrativa.
Como dirigiu Adèle Haenel para construir a narração em off?
Não foi tão fácil, porque eu nunca tinha incluído voz off nos meus filmes, e não tinha a menor ideia de como fazer. Quando nós íamos começar o trabalho de ensaios, eles foram suspensos pela chegada da pandemia de Covid-19. Então trabalhamos remotamente durante um mês: Adèle registrava os áudios num gravador, e depois me enviava. Foi trabalhoso, porque às vezes se passavam dois dias entre o tempo de ela gravar, me mandar, eu escutar e dar um retorno. Então ela refazia a partir de minhas sugestões. Foi muito mais longo do que seria se estivéssemos juntos, no mesmo cômodo. A Adèle partiu da minha voz, que eu tinha gravado para servir de base. Como não sou ator profissional, minha voz tem variações, e não possui um tom expressivo. Ela foi ajudada por uma amiga no local.
Depois refizemos todas as gravações, até porque a própria Adèle é muito exigente. A maior dificuldade era tornar o texto audível, porque estas frases são difíceis – não de ler, mas de falar. Precisamos remontar o texto, encontrar as pausas, os respiros, o local certo de colocar as vírgulas. Isso ocorreu aos poucos, no processo. Além disso, queria ter uma voz sem julgamento, mas capaz de carregar energia. Isso vem da própria Adèle, faz parte dela. Dá para sentir que ela está mais triste ou irritada, dependendo da fala. Apesar de um tom predominantemente neutro, o espectador pode sentir a energia por trás. Ao invés de exagerar nesta energia, foi mais interessante contê-la.
O filme se dedica principalmente ao embate entre a esquerda e a extrema-direita. Que papel desempenham o centro e a direita clássica nesta relação de forças?
Talvez eu diga uma besteira, mas me parece que a direita clássica é o grupo com maior adequação entre o discurso e a prática. Nós ficamos raramente surpresos de ver os políticos de direita executando uma política de direita. Com a esquerda, as coisas são diferentes. Em termos de ideologia e organização dos partidos, essa direita tradicional é pelo menos coerente com seus atos: Nicolas Sarkozy fez uma política direita, o que não representa nenhuma surpresa. Esse grupo tem outras questões para lidar, ao contrário da esquerda e de Emmanuel Macron, que se diz de centro, mas é claramente de direita. Existe uma diferença entre o que se diz e que se faz.
Isso é muito problemático na esquerda, seja ela mais radical ou moderada, voltada à social-democracia. Ao mesmo tempo, a direita clássica contribuiu a deslocar a ideologia global. Hoje, na França, a extrema-direita ganhou porque uma parte de seu discurso sobre a segurança, por exemplo, se infiltrou em todo o espectro, da direita à esquerda. Atualmente, muitos valores da extrema-direita são compartilhados pela integralidade dos campos que pretendem representar o povo. É terrível, mas a extrema-direita já venceu, o Front National já venceu. O debate político hoje é bastante pautado pelas ideias da extrema-direita.
Como compara os valores da esquerda operária dos anos 1950 com os valores da esquerda contemporânea?
Bom, a primeira vantagem é que não estamos mais no poder. Assim, aparentamos ser um pouco mais radicais do que realmente somos. Entre a Segunda Guerra Mundial e a década de 1980, a esquerda não esteve no poder, então pôde sustentar um discurso mais forte. Quando a esquerda não está no poder, ela apresenta uma ideologia mais radical. Mesmo François Hollande, antes de se eleger, dizia que seu inimigo era “a finança” – o que é uma piada completa, mas ele tomou a liberdade de dizer isso. De qualquer modo, o que nós abandonamos, e que nos faz falta, é um projeto político utópico.
É melhor ser realista e pensar “Isso é difícil de realizar, mas quero me aproximar ao máximo de um projeto de sociedade igualitária, aberta e democrática” do que se fechar num pseudo realismo assustador de gestão. Falta agora a capacidade de pensar num futuro comum: precisamos poder sonhar, mesmo pela política. Hoje discutimos apenas qual candidato será o menos pior, e de que maneira gerir os problemas. Até o Partido Verde se apresenta como “bom gestor”, que vai “diminuir um pouco as desigualdades”. Faz falta ter um ideal em que se projetar, mesmo que seja a longo prazo. Precisamos manter a esperança de construir, através da política, um mundo melhor.
O final do filme traz mais música, mais furor, além de lágrimas e sangue. Por que deixou o pathos à conclusão?
A remontagem do texto que propus a partir do livro de Didier é bastante dura. Ela termina de maneira bruta, com a chegada do Front National e o prenúncio de um desastre político no país. Mas eu não queria terminar assim. Preciso fazer constatações duras de nosso fracasso, mas é impossível terminar assim. Politicamente, não faz sentido – é preciso ter energia e sustentar a ideia de que podemos continuar o combate a qualquer momento. Além disso, eu precisava atualizar o texto escrito há mais de dez anos, porque nessa última década, muitas coisas graves aconteceram nos partidos políticos e na sociedade em geral.
O feminismo se reinventou, a luta ecológica se radicalizou, os movimentos LGBT e queer se tornaram mais politizados. Estes grupos começam a se associar e a lutar juntos, algo novo na nossa história. Não sei onde isso vai levar, mas de qualquer modo, existe algo muito forte, muito vivo acontecendo na sociedade agora. Os governos tentam de todas as maneiras conter esta energia, e era fundamental tratar disso. Eu precisava continuar o raciocínio de Didier: não é possível fazer um filme em 2021 sobre um texto concluído há 13, 14 anos. Didier certamente teria questionado os novos movimentos, o papel dos coletes amarelos e da luta sindical caso tivesse continuado o texto. É preciso manter a ideia de que a luta continua. Ela nunca desapareceu, aliás, vide o que acontece agora, e que traz um impacto positivo, apesar dos pesares. De qualquer modo, não podemos sugerir que não existe nada mudando politicamente agora.
Qual é o espaço para produzir e exibir um filme tão frontalmente político dentro do cinema francês contemporâneo?
Esse é o mesmo caso dos meus filmes anteriores. Sei que existe um espaço para este tipo de cinema, porque existe um público para ele. Certamente não é um público majoritário, e sim um grupo reduzido. Quando faço debates sobre meus filmes, desde os curtas-metragens, percebo a expressão dos espectadores, que gostariam de mais reflexões deste tipo. Sei que a distribuição e exibição dos meus filmes acabam sendo mais extensas do que eu imagino a princípio. Sempre fico com medo de ser radical demais, e não interessar ninguém, mas descubro que as pessoas estão interessadas nos festivais e nas salas de cinema. Uma Juventude Alemã (2015) continua sendo exibido, mais de cinco anos depois do lançamento, o que é muito positivo. Outra questão diz respeito à produção desses filmes, que é dificílima dentro do sistema francês completamente esclerosado. Somos obrigados a trabalhar com um orçamento ínfimo. Com Retour à Reims, tive a sorte de fechar uma parceria com o canal Arte, e mesmo assim, trabalhamos com orçamento limitado.
Tem a esperança de suscitar novos debates dentro da esquerda? Ou de alcançar a direita e talvez modificar alguns pensamentos?
Não tenho esperança de mudanças concretas: não se muda nada com um filme. O melhor que posso fazer é despertar o debate para o espectador sair da sala de cinema refletindo. Mesmo que ele deteste o filme, talvez se questione sobre os motivos de ter detestado. Não existe política sem desacordo; é preciso ter debate. Espero que as pessoas terão seus pontos de discordância: por exemplo, eles podem concordar com a constatação, mas discordar das soluções apresentadas sobre os coletes amarelos, sobre o Partido Socialista e o Partido Comunista. Podemos nos unir numa ideologia, mas discordar das estratégias. Se estivermos discutindo, já será um passo importante.
Costumo dizer que meu filme é bem-sucedido quando as pessoas acham que ele deveria ser mostrado na escola e debatido com os alunos. Quando apresento meus filmes a estudantes, sei que eles não necessariamente possuem todo o conhecimento histórico, então descobrem os fatos pelas imagens. Assim, estes filmes têm um componente pedagógico. Em paralelo, deixo espaço à palavra, abro o campo à discussão. Adoro ver os jovens conversando. Não sei o que acontecerá com Retour à Reims depois de Cannes, mas nos filmes anteriores, tinha a impressão de ter alcançado meus objetivos quando via os estudantes discutindo. Esta é melhor recompensa ao tempo dedicado na elaboração do filme.