Kleber Mendonça Filho é um dos cineastas de maior repercussão, tanto junto ao público, como também com a crítica, do cinema brasileiro contemporâneo. Após o sucesso de longas como O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e, principalmente, Bacurau (2019), ele agora faz um movimento, no mínimo, inusitado: foi atrás de um viés mais documental, presente em sua obra de estreia – Crítico (2008) – e apresenta Retratos Fantasmas (2023), o seu trabalho mais íntimo até o momento. Após ter estreado no Festival de Cannes, ganhou première nacional na sessão de abertura do 51º Festival de Cinema de Gramado, na Serra Gaúcha. No mesmo dia, o cineasta recebeu o Papo de Cinema no hotel em que estava hospedado para um bate-papo sobre suas inspirações, a origem desse novo projeto e sua relação com imagens que ficaram perdidas no tempo – e que agora estão sendo resgatadas. Confira!
Vamos começar pelo título? De onde nasceu esse nome, Retratos Fantasmas? Veio primeiro ele ou o filme?
Não, durante anos o filme se chamava Os Cinemas do Centro de Recife. Mas, aparentemente, só eu gostava desse título (risos). Todos os meus amigos, pra quem mostrava essa ideia, só me gongavam, diziam que não era um bom nome. Talvez estivessem certos. Mas não desisti por completo, e acabei usando pra batizar a segunda parte – o filme é dividido em três capítulos. Portanto, passei muito tempo com dificuldade para decidir como esse longa, que já estava sendo feito, se chamaria. Finalmente, um colega que trabalha comigo, o Tiago Galego… quer dizer, pensando melhor, foi o meu filho, o Tomás, que ainda antes havia sugerido alguma coisa com ‘fantasmas’. Gostei, chegamos a pensar em Imagens Fantasmas. Então joguei essa indecisão em um grupo de amigos, e foi quando o Tiago, que citei antes, sugeriu Retratos Fantasmas. Isso com tudo já pronto, em março desse ano, às vésperas da primeira exibição. Bem no final do processo. Quando mostrei para outras pessoas, queria saber o que achavam. Retratos de Fantasmas? Os Retratos Fantasmas? Até que decidimos por Retratos Fantasmas, apenas, que é um título que gosto muito.
Retratos Fantasmas representa uma guinada na tua carreira. Depois do sucesso de público e de crítica de Bacurau, o que te motivou a fazer uma obra mais pessoal?
Não foi nada planejado. Vinha fazendo há alguns anos. Por exemplo, em Aquarius já estava levando esse projeto em paralelo, assim como durante o Bacurau. Mas é um investimento pessoal. Como vinha sendo feito com dinheiro público, obviamente teria que, até por uma questão de responsabilidade fiscal, entregar algum filme. Mas estava sendo feito no tempo dele, é um filme de descoberta. Como um trabalho de arqueologia. Terminei de escrever Agente Secreto, o meu próximo longa de ficção (saiba mais a respeito aqui), há mais ou menos um ano. Foi quando me senti não só feliz com o roteiro que tinha em mãos, mas livre para voltar para o Retratos Fantasmas. Retornei bastante energizado, ainda mais pelo Agente Secreto se passar na Recife de 1977. Esse trabalho de pesquisa me mostrou muita coisa que pude aproveitar no Retratos Fantasmas, e vice-versa. Um projeto ajudou o outro. Foi uma combinação perfeita. Quando finalmente o Agente Secreto existir, talvez as pessoas que assistirem aos dois identifiquem muitos elementos de ligação entre eles.
Então o documentário sempre esteve próximo de ti? Retratos Fantasmas não representa, necessariamente, uma volta a esse estilo de fazer cinema?
Sim, e principalmente porque não penso em termos de documentário e de ficção. Esse filme, para mim, talvez seja um documentário. Mas, muitas vezes, tenho a impressão de que se recusa em ser um documentário. Tem fantasia, tem momentos um pouco assustadores. Das três partes que o compõem, uma é puramente ficcional. A sequência do Veneza, por exemplo, acho que abandona o documentário, quase como num ensaio, de som e imagem, um tanto assustador. Gosto disso. A maneira como algumas sequências são filmadas, no entanto, de um modo ficcional. Como no plano das calçadas. Não acho que aquilo tenha sido filmado como um documentário normal. Tem grua, trilho… gosto dessa mescla e da quebra de expectativas. Filmei um documentário como Hitchcock faria.
Você comentou que Retratos Fantasmas é dividido em três segmentos. Como foram feitas essas divisões?
Como no O Som ao Redor e em Aquarius, essas divisões surgem na montagem. Retratos Fantasmas nem teve roteiro, para você ter ideia. Então, foi durante o processo de edição que você diz: “acho que seria bom, aqui, ter uma cartela”. Ela organiza o filme estruturalmente. E coloca uma certa autoridade. Quando termina a primeira parte, tem aquele plano aéreo da cidade, e aparecem os cinemas do centro de Recife. Agora, você está preparado para ver o que o filme irá lhe mostrar. Aí, dito e feito, ainda na música do Sidney Magal, tem pela frente as quinze fachadas em ruínas desses cinemas. Você sabe o que é aquilo por causa da cartela. Não queria que entrasse a minha voz anunciando: “aqui estão as fachadas de muitas salas de cinema”. Ou colocar no canto de cada cena um crédito que identificasse “Cinema Império” ou “Cinema Olímpia”.
Essa escolha da música do Sidney Magal. Acho incrível. Mas é isso mesmo? O teu sangue ferve por esses cinemas e pelo que deles foi feito?
Ela é incrível mesmo. Acho essa música… (risos) bom, é Sidney Magal, né? Então, é um pouco Amante Latino demais para o meu gosto (mais risos), mas é maravilhosa. E, sim, o meu sangue ferve pelo Recife. Eu gosto do Recife. Não sei se falaria dessa forma. Mas uso ele – o Magal – para falar por mim. Então, acho massa tê-lo no filme.
Você fala de Recife, mas muito do que viveu por lá, experimentei igual em Porto Alegre. São sentimentos universais?
As cidades têm histórias parecidas. Pois elas funcionaram, e funcionam, sob o capitalismo. E é ele que dita as regras. Os centros eram vivos, do início do século passado até os anos 1960 ou 1970, só que surge um novo modelo de exploração comercial, que é o shopping center. O capitalismo tem uma coisa ruim que é a necessidade da substituição. Da subtração. Ao invés de somar, ou seja, de continuar tendo um centro forte, e agora ter também um shopping, para você poder escolher, a coisa se dá de um jeito que se faz obrigatório matar um para que o outro exista. E entender esse modelo novo que se impõe como a real solução para a vida e para a morte. Isso aconteceu no Recife, aconteceu nos Estados Unidos. Na Europa é mais duro, são resistentes. Minha companheira é de Bordeaux, na França, e lá permanece um centro muito forte. Onde shoppings não entram. Nem mesmo carros. Mas os shoppings existem, e estão nos arredores, nas regiões próximas, subúrbios. Em Paris é a mesma coisa. Os centros das cidades são para você andar na rua, com todas aquelas lojas e atrações. Mas no Recife, infelizmente, o dinheiro enterrou tudo. Junto com os cinemas.
Não é apenas uma subtração, né? É também um apagamento.
Exatamente. Como no caso do administrador do prédio que afirma com todas as letras que ali nunca houve tais escritórios, sendo que de fato existiram. E com muita autoridade, como se o errado fosse eu. “Não, estou aqui há mais de dez anos”, me disse ele, sendo que eu estava falando de algo da década de 1970! Um bom exemplo é o caso do CD. Eu gosto do CD. Só que para ele existir, precisou apagar o vinil. Por que não ter os dois? Mas o capitalismo mandou se desfazer de um para que o outro pudesse existir. E foi todo mundo jogar fora os seus vinis. Minha família fez o contrário: guardou os vinis e comprou os CDs. Até hoje tenho os dois – aliás, tenho mais vinis do que CDs. E hoje tenho CDs que nem tocam mais, pois descascaram, e vinis com mais de 50 ou 60 anos que seguem tocando perfeitamente. É resultado de uma campanha de apagamento. E o filme é sobre isso. Mas não de uma forma saudosista. É bem papo reto. Uma maneira de fotografar o tempo.
E é, também, um filme pessoal. Tu te coloca muito em cena. Teve algum momento de dúvida, de achar que estava demais, ou pelo contrário, de assumir ainda mais essa presença?
Claro que fiquei preocupado. O filme não poderia ser sobre mim, por mais que tivesse o meu ponto de vista. Talvez, no começo, alguém possa sentir receio de estar diante de algo particular. Mas isso passa. Fica claro que é só uma base emocional para falar de outras coisas. Acho estranho, às vezes, você ver um filme com um cara na beira de um vulcão em erupção. Eu me pergunto: “como você chegou aí?”. Quero entender por que está se colocando naquela situação. Como se partisse do pressuposto de que é normal alguém estar ali. E não é. Por que você está fazendo isso? Mas, enfim, é só um alicerce. Não é sobre mim. É sobre cinema.
Falando de cinema, Retratos Fantasmas teve sua primeira exibição no Brasil na abertura do 51º Festival de Cinema de Gramado. Você tem uma relação longa com esse evento. Como surgiu esse convite e o que significa esse retorno à Serra Gaúcha?
Nossas datas, desde Aquarius, de lançamento, são sempre no final de agosto. Gostamos dessa época do ano. Vim a Gramado, pela primeira vez, vinte e cinco anos atrás, como crítico de cinema. E voltei muitas vezes depois. Portanto, tenho uma relação que considero boa, saudável, com o festival. O Crítico foi programado em uma sessão à tarde pelo curador José Carlos Avellar. O Som ao Redor passou em competição. Aquarius, Bacurau e Retratos Fantasmas foram exibidos na noite de abertura. Acho que é um bom destaque para o filme. Gramado tem uma imprensa que é presente, e gosto de um certo tom, um tanto tradicional do festival, que por vezes meio que entra em conflito com o próprio filme. Passar Bacurau aqui, por exemplo, foi interessante. É uma provocação saudável, eu diria. No caso do Retratos Fantasmas, é um filme pernambucano, que fala de Recife, mas que tem sido muito bem recebido no extremo sul do Brasil. E logo com essa coincidência, em um momento em que um político de expressão nacional decide falar em separar o país. É uma ideia tão vergonhosa. O bom é o Brasil inteiro. Portanto, um filme de Pernambuco, sendo bem recebido em Gramado, pra mim, faz todo sentido.
Entrevista feita ao vivo em Gramado, em agosto de 2023, durante o 51º Festival de Cinema de Gramado