Nascido em Porto Alegre no dia 13 de agosto de 1988 – ou seja, há menos de 30 anos – Davi Pretto faz parte daquela que poderia ser chamada “novíssima geração” do cinema gaúcho. Ainda que reconheça a importância dos pioneiros da produção cinematográfica no sul do país, Pretto faz um cinema diferenciado, mais contemporâneo, com a cara e as emoções locais, seja no campo ou na cidade. Após uma série de curtas, ele estreou no formato longa-metragem com o docudrama Castanha (2014), que teve estreia mundial no Festival de Berlim e foi premiado no extinto Festival de Paulínia. Dois anos depois, voltou às telas com o faroeste pampeano Rifle (2016), que após uma exitosa carreira por festivais no Brasil e no exterior, chega, enfim, ao circuito comercial exibidor de todo o país através da Sessão Vitrine. E foi justamente sobre seu mais recente trabalho que o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Davi, como foi fazer o Rifle, tão no interior do Rio Grande do Sul?
A ideia, quem teve, foi o Richard Tavares, meu roteirista e sócio. Ele que veio me convidar. Esse foi um projeto que chegou até mim em 2010, antes mesmo do Castanha, meu longa de estreia. O Richard me convidou para dirigir, e de 2010 até 2013, mais ou menos, ficamos escrevendo o roteiro, em conjunto. Paramos para fazer o Castanha, que meio que nos atropelou, e depois retomamos. Já tínhamos vários tratamentos no texto, muitas ideias estavam sendo discutidas. Parte do financiamento também havia sido assegurado, e comecei a me dedicar à pesquisa. Uma coisa que sabia é que queria encontrar o elenco lá nas mesmas localidades onde seriam as filmagens, e não trazer de outro lugar. Um produtor passou várias semanas por aquela região, fazendo um mapeamento bem amplo, até termos definido o que queríamos. E ele percorreu o Rio Grande do Sul quase por inteiro. Foi incrível.
E vocês acabaram optando por uma região de fronteira, certo?
Sim, é próximo de Dom Pedrito. A maioria das cidades de fronteira no Rio Grande do Sul, como Livramento, Chuí ou Jaguarão, a cidade é a própria fronteira. As únicas que não são assim são Bagé e Dom Pedrito, que ficam antes, quase uma hora antes de estrada da fronteira. Depois delas, não tem nada, só campo. Vacaiquá, esse povoado que escolhemos, fica após Dom Pedrito, em direção à fronteira. Basicamente, estrada de chão e campo, sem asfalto, de difícil acesso.
Vocês não possuíam nenhuma ligação anterior com essa localidade?
Não, nenhuma. A única coisa que sabíamos é que teria que ser no sul do Rio Grande do Sul. Quando o Richard teve essa ideia, estávamos voltando de uma viagem, e passamos por uma região muito parecida. Vimos essas casas, esses lugares abandonados, e começou a despertar o nosso interesse. A partir disso, tivemos certeza que queríamos filmar por lá, mas só fomos conhecer, mesmo, depois, durante as filmagens.
Quanto tempo duraram as filmagens?
Foram, ao todo, quatro semanas. Esse povoado, para se ter uma ideia, ficava a uma hora e meia de Dom Pedrito – ou seja, a uma hora e meia do hotel onde teríamos que nos hospedar. Então tivemos que arrumar uma casa ali perto para montarmos base, porque se tivesse que fazer esse caminho todos os dias, não teria como. E, se chovesse, seria pior ainda, pois fica tudo alagado e não tem como passar.
O elenco é formado basicamente por estreantes, certo?
Eu não gosto muito dessa coisa do “não-ator”, acho que acaba denegrindo, não me parece legal. Pra mim, são atores – com mais ou menos experiência, mas, ainda assim, atores. Eles nunca trabalharam, esse é o primeiro filme deles, mas estão atuando. O Dione, o protagonista, tinha vontade de ser ator. Quando fiz a primeira entrevista com ele, percebi esse interesse, um olho que brilhava. Com os outros a gente foi desenvolvendo. Os primeiros contatos foram em março, e as filmagens foram ocorrer só em novembro, isso em 2015. Durante todo esse tempo, fui várias vezes até lá, chegava a passar semanas com eles, para irmos trabalhando, fazendo pequenas filmagens, ir experimentando. Criou-se, neles, um interesse por se ver na imagem. É um processo de descoberta.
Vocês chegaram a fazer ensaios?
Não, foi mais na base da intuição. Eu falava como seria a história, o que queria deles, como a equipe iria se portar. Fazia jogos com a câmera, editava e mostrava o resultado. Eram jogos de interpretação, mas não necessariamente cenas do filme. Durante as filmagens foi um pouco diferente. Mostrava como ficaria a câmera, a gente passava os diálogos juntos, mas avisava que não precisavam decorar, pois queria vê-los dizendo aquele texto com suas próprias palavras. O importante era a ideia de cada fala. E assim fomos fazendo, quantas vezes quanto fosse necessário, ajustando aos poucos. E se percebe em cena como vão evoluindo. A história foi filmada linearmente, do início ao fim, e dá pra ver como estão diferentes no final. Eles sentiam muito a história. Estava experimentando a história, a vivência da trama.
O Castanha é um filme urbano, já o Rifle é do campo. Você, enquanto realizador, sente mais afinidade por qual ambiente?
Eu sou nascido e criado na cidade. Mas tenho parentes no interior. Nunca havia trabalhado no campo. Meu pai até tem um sitiozinho, e gostava de ir para lá, mas como lazer, nunca como necessidade. Pra mim, o Castanha e o Rifle possuem o mesmo processo, que é de viagem, como digo. Os dois filmes me obrigaram a transitar e ir até um lugar que não faz parte do meu cotidiano. O Castanha se passa numa Porto Alegre que não é a minha Porto Alegre. É um lugar afastado de onde vivo, em ruas que não costumo frequentar, e que fui descobrindo à medida em que ia pesquisando. Isso é que me interessa. E com o Rifle foi a mesma coisa. Tive que ir a uma região que não conhecia, não havia vivido, não foi onde cresci, e precisei me ambientar. Essa pesquisa, essa imersão, essa descoberta me interessava muito.
Na tua forma de fazer cinema, o que acha que mudou do Castanha para o Rifle?
Quando você faz um filme, não só longas, mas curtas também, as coisas começam a ecoar. O set de filmagem é muito técnico. Por mais que tenha vivência, é um ambiente técnico. Coisas dão certo, outras dão errado, chove, faz frio, faz calor, e você precisa ir se adaptando. Nesse sentido, para buscar estas soluções, a gente vai ficando preparado. Estamos mais acostumados, sabemos que várias coisas não vão sair como planejado, e é preciso se virar. Você fica mais tranquilo. O feedback que tive da equipe, também, muita gente disse que, no Rifle, eu parecia mais calmo. Eu sou um cara calmo no meu dia a dia, de qualquer forma, mas existia uma coisa da ansiedade do primeiro longa que agora não tinha mais. Estava mais à vontade. Pude desfrutar do processo.
Como você percebeu a recepção que o Castanha teve?
Foi ótimo. Nossos filmes anteriores, os curtas que fizemos, tinham circulado, mas não tanto quanto o Castanha. O curta que mais circulou foi O Teto Sobre Nós (2015), que saiu quase ao mesmo tempo. Quando você está fazendo um filme, não tem a menor ideia do que vai acontecer, se vai dar certo ou errado. Não tem como saber. O Castanha já gerou umas 3 ou 4 teses de mestrado. Incrível, né? Pensar que alguém se interessou pelo que você fez a ponto de passar dois anos escrevendo a respeito, é muito estranho.
Você acha que o Rifle pode alcançar a mesma repercussão do Castanha?
Sempre foi um sonho, por exemplo, participar do Festival de Brasília. Desde que comecei a fazer cinema, pensava nisso. E só conseguimos isso com o Rifle. Então, pra mim, já foi uma vitória, tanto como cineasta quanto como cinéfilo. E tivemos uma agenda cheia, passamos por vários outros festivais. Foi uma carreira muito bonita, não só pelo Brasil, como também no exterior.
Rifle é um filme composto por imagens muito fortes. Como você as encaixou na narrativa que pretendia contar?
Isso tem a ver com o que experimentamos com o Castanha. O plano de abertura, por exemplo, com o João caminhando ensanguentado, era uma tentativa de traduzir em imagens não só os sentimentos dos personagens, mas também os nossos perante a eles, as angústias que buscamos no filme. Essas imagens, para nós, eram uma maneira de tentar resumir a história. A minha ideia, quando filmei o Castanha, é que quem visse o primeiro plano, mas não pudesse ver o resto, já tivesse um impacto tão forte como se tivesse visto o filme inteiro. É claro que isso nunca dá certo, mas era a minha vontade. O carro pegando fogo, do Rifle, era um pouco isso também. Veio muito cedo no roteiro, e para mim traduzia essa angústia e esse embate do homem com a máquina, desses carros que rasgam o campo e ficam cortando, literalmente, a paisagem. O fogo no campo é muito forte, pois tem a ver com as queimadas, com as temporadas das plantações, com os crimes ambientais. Enfim, simbolizava muita coisa para nós.
Geralmente, quando vemos o interior do Rio Grande do Sul no cinema, nos deparamos com produções históricas, mais tradicionais…
Sempre que vejo filmes do meu estado, o que me instigava é que queria ver histórias contemporâneas, interpretadas por pessoas dessas regiões, próprias do interior. Sempre tinha essa coisa de trazer atores de fora – do Rio de Janeiro, de São Paulo, até mesmo de Porto Alegre, para interpretar gente do interior. Queria ver um filme com as pessoas de lá. Então pensei: “vou fazer eu esse filme”. Essas pessoas têm muito a contar já nos próprios rostos. Nos traços, nos olhares, é muito forte. Eu não me identifico com esses outros filmes. Lá do sul, me vejo em filmes como Morro do Céu (2009), do Gustavo Spolidoro, ou Beira-Mar (2015), do Marcio Reolon e do Filipe Matzembacher. Tem essa coisa de filmar com as pessoas do próprio lugar. E eu passo por aí.
Pois então, o Rifle, assim como o recente Mulher do Pai (2016), propõe uma quebra. Como você vê o teu cinema dentro do cenário cinematográfico gaúcho?
O novo pode ser um pouco redundante, mas tem tanta gente surgindo, a todo instante, e os processos estão cada vez mais facilitados. Veja o caso do Eles Vieram e Roubaram a Sua Alma (2016), do Daniel de Bem, que é super independente, lida bastante com essa coisa autobiográfica, do realizador, e com atores desconhecidos ou começando suas carreiras. Acho muito interessante, instigante. O cinema gaúcho, assim como o brasileiro, precisa ser cada vez mais plural e positivamente contraditório. Precisamos ter contradições nessas abordagens. Porque senão fica sempre a mesma ideia mitificada. E isso nunca é bom.
Ao mesmo tempo, o Rifle é uma coprodução com a Casa de Cinema de Porto Alegre, que é uma das produtoras gaúchas mais tradicionais…
A Casa de Cinema é um exemplo muito feliz e apropriado de como uma outra geração tem se comunicado com essa turma mais jovem que está chegando. Eles tem uma atenção incrível com a gente. O Jorge (Furtado), a Ana (Luiza Azevedo), a Nora (Goulart), o Giba (Assis Brasil)… são todos incríveis. Eles foram coprodutores do Castanha e do Rifle, e desde a parte do roteiro foram super participativos, opinando, colaborando. Tive duas horas de conversa com eles, uma vez, após um primeiro corte, só discutindo outras opções, falando sobre cinema. E não é só comigo. Aí, sim, é muito saudável, quando as gerações dialogam e podem produzir coisas novas juntas.
(Entrevista feita ao vivo em Brasília em setembro de 2016)
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