No último Festival de Berlim, um dos principais destaques da mostra competitiva veio do Japão. Roda do Destino (2021) é um drama composto por três histórias diferentes: uma modelo descobre que sua melhor amiga está saindo com um rapaz por quem já foi apaixonada; o aluno de uma universidade desafia sua namorada a seduzir o professor; e uma mulher lésbica reencontra por acaso seu antigo amor platônico pelas ruas da cidade.
Em comum, as histórias são marcadas pelos diálogos afiadíssimos, o senso de humor e o talento excepcional de cronista do diretor Ryûsuke Hamaguchi. Os episódios apresentam figuras solitárias ou abandonadas, tomando atitudes drásticas para se sentirem únicos e amados. Leia a nossa crítica. Em 6 de janeiro, o filme chega aos cinemas brasileiros pela Pandora Filmes. O Papo de Cinema aproveitou para conversar com o premiado cineasta a respeito do projeto:
Asako I & II já trazia uma história dividida em duas partes. Roda do Destino se divide em três. O que te interessa nessa estrutura episódica?
Em Asako I & II, nunca tive a intenção de separar o filme em duas partes. Este título corresponde a uma estratégia de divulgação. Entendo que se enxerguem como duas histórias, mas para mim, é uma história só. Em Roda do Destino, eu proponho um exercício que considero muito importante, de desenvolver novos curtas-metragens. Isso acaba sendo um espaço de experimentação para o que pretendo fazer nos longas-metragens mais tarde. Mas no Japão, curtas-metragens são difíceis de lançar e exibir comercialmente. Por isso, como não conseguiria mostrar estes curtas separadamente, decidi juntá-los para chegar à duração de um longa-metragem.
Por que se dedica tanto aos planos fixos, com zooms agressivos ocasionalmente?
Eu sempre usei a câmera fixa, no tripé. Nem saberia como filmar de outra maneira! O zoom também tem sido um elemento presente em toda a minha carreira. Ele reforça alguma expressão dos atores, ou prepara a composição da cena em si. Em Roda do Destino, uso o zoom para reforçar o caráter fictício das histórias. O zoom explicita o fato que existe alguém contando a história. Eu maximizo esse elemento, como se perguntasse ao espectador: “Essa é uma ficção, mas você é capaz de acreditar nela”? É isso que eu quis transmitir através deste estilo.
Os textos e as falas remetem à literatura. Podemos considerar estes episódios como contos, crônicas ou mesmo fábulas?
Não considero um texto literário. Fico me perguntando por que as pessoas sempre apontam este fator a respeito dos meus filmes — talvez seja pela grande quantidade de diálogos. Se for por isso, é verdade que uso muitas palavras mesmo. Mas não desejo passar nenhuma mensagem específica através disso. Os vários diálogos servem como ferramentas para ativar o ator. Esta é a forma que eu uso para que os atores consigam se expressar da melhor maneira. Mas se o roteiro parece literário ou não é uma pergunta que faço sempre a mim mesmo.
O filme aborda questões sérias com leveza. Como dosou a abertura ao humor?
Talvez esta leveza que você menciona venha da temática: este é um filme sobre o acaso, a coincidência. Estes são temas pequenos, que acontecem de modo abrupto e transformam o mundo. Isso traz um aspecto cômico, talvez. O acaso muda o rumo da história de maneira rápida e drástica. A velocidade das transformações também favorece a leveza. A história em si é uma ficção, mas carrega um aspecto bastante naturalista, por causa da atuação do elenco. Esta é a força e a expressividade que estes atores conseguem mostrar.
Estes relacionamentos são típicos dos nossos tempos? Como se transformaram em relação às gerações passadas?
Pessoalmente, não sei se a maneira como retrato esses relacionamentos reflete uma configuração mais moderna. Eu retratei as pessoas conversando face a face. Isso é algo que acontecia antes do coronavírus, mas hoje às pessoas se falam dessa maneira com menos frequência. Talvez por isso, os vários encontros pessoais tragam a impressão de um relacionamento mais moderno. Mas eu acredito que trabalho com as relações de modo clássico. Não sei se isso é moderno, ou contemporâneo, para ser sincero. Entendo que muitos aspectos possam ter mudado, mas um lado meu finge que não, e tenta se focar nas coisas que permanecem iguais.
A vontade de retratar relacionamentos face a face justifica a decisão de eliminar celulares, computadores e a nova tecnologia?
Isso acontece porque acredito que isso seja o cinema. Um diretor chinês chegou a elaborar recentemente uma cartilha para filmar pessoas com telefones celulares, quando não precisam estar face a face para se comunicar. Eu vivi os anos 2000, quando o celular começou a se tornar popular. Acredito que não seja preciso criar uma comodidade maior do que essa. É claro que, hoje em dia, imaginar uma comunicação sem colocar estes meios tecnológicos resulta numa configuração mais estranha para nós. Criar um filme com estes diálogos adquire um aspecto de provocação, como se eu dissesse ao espectador: “Não acha a comunicação pessoal melhor, mais divertida”? Estou nadando contra a corrente neste sentido.
Estas histórias e encontros refletem uma cultura tipicamente japonesa, ou podem ser compreendidas de maneira universal, em todos os países?
Recebo muitos comentários de que esse filme retrata bastante a sociedade japonesa. Eu carrego um traço bem característico dos japoneses: a repressão dos desejos. Esse aspecto dá a impressão de que Roda do Destino representa um funcionamento tipicamente japonês. Por outro lado, não recebi nenhum comentário sugerindo que o projeto fosse universal. Em geral, posso dizer que este é um filme sobre pessoas que não sabem o que querem. Elas estão perdidas no mundo, e por acaso, encontram outras pessoas que mudam o rumo de suas vidas. Qualquer ser humano possui emoções reprimidas, que não consegue expressar. Sem desejos reprimidos, não existiriam tantas ficções no mundo. Pensando por este aspecto, o filme é universal.