Nascido em Belo Horizonte, Leandro Lara estudou Artes e Comunicação na PUC-MG e Direção de Fotografia no Instituto Cubano – Escuela Internacional de Cine y Televisión, em San Antonio de Los Baños. Também designer gráfico, trabalhou com instalações, projetos de televisão, publicidade e documentários. Sua estreia como realizador de ficção no cinema se dá agora, com o longa-metragem Rodantes. Exibido pela primeira vez fora de competição durante o Festival de Cinema de Brasília de 2019, tinha estreia prevista para o início de abril de 2020, mas teve seu lançamento adiado em mais de um ano devido à pandemia do Covid-19. Finalmente em cartaz, o longa filmado em Rondônia, no norte do Brasil, fala de três personagens – Tatiane, uma jovem com passado traumático, Odair, um rapaz que está se descobrindo sua orientação sexual, e Henry, um imigrante hatiano – em meio ao caos de uma terra sem lei. Foi durante essa passagem pela capital federal que o cineasta conversou com o Papo de Cinema, em um bate-papo inédito e exclusivo. Confira!
Como surgiu a ideia de Rodantes e como esses três personagens chegaram até você?
Em 2006 fui convidado por uma revista italiana, a Colors Magazine, pra fazer uma reportagem sobre a Amazônia. Era uma edição especial, toda sobre aquela região, e fui cobrir Rondônia. Fiquei alguns meses por lá, sempre atrás das histórias mais absurdas que você puder imaginar: tráfico de gente, evasão de terra indígena, garimpo ilegal, desmatamento, queimadas, prostituição infantil. Tive contato com experiências humanas incríveis. Pessoas que haviam se colocado nessas situações, ou estavam sendo abusadas nesse sentido. O meu foco era o lado humano desses relatos. Anos depois, quando surgiu a oportunidade de fazer um roteiro para o cinema, por causa do incentivo do Fundo Setorial, decidi revisitar esse material. Era um argumento que estava pronto, esperando por mim. Ao todo, haviam dez personagens narrando seus eventos. A partir disso, escrevi um decálogo. O Rodantes, portanto, é o final dessa saga, quando todos se encontram. Não tem uma definição exata de personagens. Claro que a da Caroline Abras tem um certo protagonismo, há outros dois também fortes, mas há um âmbito maior sendo contato. O título inicial era Afluentes, um projeto mais ambicioso, que talvez ainda venha a realizar um dia.
Desses dez personagens originais, o que esses três tinham de mais forte?
A história do haitiano é muito impressionante. Chegam esperando uma coisa e são pegos como servos, no meio da mata. Tudo televisionado. A tevê do Acre filmava os caras sendo partidos igual a um boi. A da Carol veio de uma menina que havia sido estuprada por um policial que havia lhe tirado de uma invasão. Quando consegue fugir, parte para encontrar essa avó, que nem existe. É só uma desculpa para ir embora. É quando consegue fazer o aborto, desse filho natimorto. O passado dela é muito duro. O filme não necessariamente aborda isso, estou apenas discorrendo sobre as relações com esses personagens, o fato real e o que permaneceu na ficção. Você parte de uma ideia e vai adiante, num mergulho. O filme é desconstruído a partir dessa proposta. Não é a trajetória do herói. É um transe em si.
Rodantes é muito sensorial. O desenho das imagens, do som. Como foi trabalhar um roteiro que não está preocupado com um formato tradicional?
O filme que escrevi é o que está na tela. O Fernando Stutz, nosso montador, sempre esteve muito presente. Eu vim da videoarte, antes de me enveredar pelo documentário. Hoje em dia tenho uma produtora de publicidade. Essa desconstrução, portanto, estava prevista no roteiro. Já contava, por exemplo, com esses pulos temporais. Elipses, flashbacks. Sou metódico nessas coisas. Adoro improvisar, por outro lado. Então, fugindo um pouco da tradição brasileira, não é um longa verborrágico. Está longe de ser novelesco, de se apoiar na palavra, no verbo ser um componente importante. Rodantes vai por outra vertente, de um cinema através da proposição narrativa, da experimentação da linguagem. Lógico que na sala de edição nascem coisas que são importantes, que não haviam sido previstas no roteiro, mas o ponto de partida estava escrito.
É isso que te instiga enquanto contador de histórias, a experimentação?
Amo cinema estrutural europeu. Viajo nessas coisas. Gosto de mexer no filme, a textura me conta coisas, a fotografia tem papel fundamental na narrativa. Pra achar a lente que usei nas filmagens demorou um ano. Era importante o artifício para dar aquele resultado. Nesse sentido, sim, mas é pensado, estudado. Sou designer gráfico de formação, e isso é importante pra mim. Todos os aspectos imagéticos compõem a narrativa. Mas a história em si é a pedra principal. O drama humano.
Os corpos estão sempre muito expostos. Como foi trabalhar essa abordagem com os atores?
Foi muito difícil. Decidi colocar uma atriz super experiente, um jovem ator e um não ator para intercalarem-se num certo protagonismo. Aprendi com eles, e acho que também aprenderam coisas importantes. Foi revelador enquanto experiência humana. Imagina aquela cena do estupro, com o caminhoneiro? Como fazer aquilo? Teve que ser em um único take, de uma só vez, não dava pra repetir. Um processo complexo, delicado. Tenso para todo mundo. E foram mais de dez situações como essa durante os dias de filmagens. É um filme sobre abuso, em última instância. É um palíndromo. Você abusa e é abusado. O ambiente a sua volta é abusado. A floresta em si vai sumindo. Você se coloca nesse lugar. É tudo muito triste, nesse sentido.
Rodantes não se encerra nesse filme, correto?
Pois é. Tenho uma ideia de realizar uma série de debates sobre esse ser que tá ali na Amazônia. Esse ser-humano fronteiriço que é levado a essa situação. Não adianta falar da selva sem mencionar a pessoa que vive aquilo, que faz parte desse mundo caótico. Pretendo também lançar o livro do filme, com fotos e making of. Fiz uma coisa bem doida e diferente: realizei nove curtas, soltos, bem experimentais, de diferentes tamanho, que estarão reunidos no site do filme. Se quiser compartilhar dessa experiência de um ponto de vista ainda mais poético, ao lado da Tatiane, do Odair ou do Henry, vai ter essa oportunidade. São elementos à parte, mas do mesmo universo.
O filme começa com uma definição bem catedrática do que é Rodantes. Pra ti, o que esse termo significa?
Sempre achei que era esse espírito que te leva. No fundo, rodantes é o destino. Essa entidade que te conduz. Um termo usado no candomblé, uma pessoa que incorpora é rodante. Não foi exatamente essa expressão, mas serve também como um dos significados. Mas o filme acaba gerando outras leituras sobre o que é Rodantes. Tanto é que o título só é visto no final. Foi a última coisa que fiz, e não foi racional. “Onde vou enfiar esse nome?”, sabe? Gera muito impacto aparecer só no final, depois de ter vivido aquela história inteira. É um significado para você, espectador, elaborar. Cada um terá a sua ideia. Eu, mesmo, não sei.
(Entrevista feita ao vivo em Brasília em novembro de 2019)