Sebastian Silva é, antes de qualquer coisa, um provocador. Um dos seus primeiros longas, A Criada (2009), abordava a luta de uma empregada doméstica em se manter no emprego após servir a mesma família por mais de duas décadas, enfrentando humilhações e desafios em um Chile em constante mudanças. Pelo resultado, foi indicado ao Globo de Ouro e ao Spirit, além de premiado nos festivais de Havana, Miami, Sundance, Sydney, Taipei, Huelva, Cartagena, Lima, Paris e tantos outros. A esse sucesso seguiu com investidas em Hollywood – Nasty Baby (2015) foi premiado no Festival de Berlim – ao mesmo tempo em que se aventurava também como ator e roteirista. Seu mais recente projeto, que combina todos esses talentos, é Rotting in the Sun (2023), que chegou recentemente ao Brasil com exclusividade na MUBI. Em cena, mostra como seria sua própria morte, além de um destino ainda mais trágico, com seu corpo apodrecendo em céu aberto, enquanto familiares e amigos procuram pelo seu paradeiro. Para saber mais dessa aposta arriscada, que tem conquistado tanto aplausos quanto detratores, nós conversamos com o diretor, intérprete e escritor sobre suas motivações, parcerias profissionais e sua relação com o Brasil. Confira!
Olá, Sebastian. O título Rotting in the Sun é bastante indicativo do que acontece na trama. A história nasceu a partir dele? Como é o teu processo criativo?
Bom, como tu sabe, além de diretor e ator, sou também um dos roteiristas. Escrevi com o Pedro Peirano, um amigo com quem havia trabalhado em outras ocasiões. Nos entendemos bem, as ideias fluem tranquilas entre nós. Neste projeto, especificamente, foi fundamental ter essa ajuda, pois como apareço em frente às câmeras, era importante contar com alguém que conseguisse manter certa distância do resultado, entende? Ele foi o olhar objetivo, portanto. Mas, em geral, nesses filmes com os quais me envolvo sob todos os aspectos, meu processo criativo tem início a partir das coisas que estão ao meu redor. São elas que me servem como inspirações. Realmente estava morando na Cidade do México, aquele era o meu cachorro, aquele era, de fato, o meu amigo Mateo, aquela era a praça onde costumo passar meu tempo. Então, ao menos nesse filme, minha fonte de criatividade era tudo o que conhecia e estava perto de mim.
Rotting in the Sun é um filme inquieto, que não permite que o espectador permaneça impassível diante do que assiste. Era essa a tua intenção?
O filme nasce de um desejo de mostrar o quão cansado estou em relação ao mundo em que vivemos. Claro que faço isso através da comédia, então não quer dizer que, necessariamente, fico reclamando o tempo todo, mas esse subtexto é inegável. É terrível isso pelo qual estamos passando. Estamos, de um jeito ou de outro, apodrecendo sob o sol.
Foi a partir desse desejo que o título nasceu?
O título não foi ideia minha, preciso confessar. Foi o meu amigo Mateo, que inclusive está no filme, quem fez a sugestão. Ele mora, de fato, no interior, e está sempre envolvido com mil coisas ao mesmo tempo. Quando o convidei para filmarmos juntos, houve um momento de confronto, de inadequação. Foi quando virou para mim e perguntou: “o que estamos fazendo aqui? Estamos todos apodrecendo sob o sol?” (risos). E foi assim que o nome do filme surgiu.
Catalina Saavedra foi revelada em A Criada, o primeiro trabalho de vocês dois. Rotting in the Sun foi pensado com ela em mente?
Sim, com certeza. Ou, melhor dizendo, mais ou menos. Afinal, a senhora Vero é uma pessoa de verdade, que existe. Essa senhora, que trabalha com limpeza, tem esse nome e trabalha no exato prédio onde filmamos. Então, a personagem que vemos no filme é baseada em uma figura real. Lembro, ainda na fase do roteiro, em discutir a respeito de quem poderia interpretá-la, quem eu conhecia que era talentosa o suficiente para vivê-la em cena, e minha mente foi direto para Catalina. O problema, ao menos naquele ponto, é que ela é chilena, e os sotaques são diferentes. Então, o que fiz foi consultá-la, perguntar o que achava da ideia, se seria possível. E foi muito receptiva desde o começo. A única coisa foi que riu de mim, me acusando de estereotipá-la, como se fosse capaz de fazer apenas um tipo de personagem. Mas deu certo, teve aulas com um técnico mexicano para adaptar sua dicção, e funcionou. Ao ser exibido aqui no México, ninguém na audiência poderia afirmar que ela não era mexicana. Ficou convincente.
Vamos falar sobre essa a parceria com Catalina Saavedra. Como se dá o trabalho entre vocês?
A nossa sorte é que temos uma maneira de ver a vida parecida. Nós somos cínicos, de um modo crítico. Penso que, profissionalmente, é o meu tipo favorito de atriz. Muito pé no chão, entende? Muito lúcida. Não chega a ser de método, mas também não é de perder tempo com distrações. É confiante de suas habilidades, sensível e esperta. Estuda a respeito das motivações e dos medos dos personagens. Isso é algo que a gente discute no começo, e daí saio do caminho e a deixo fazer seu trabalho. Sempre entrega com tanta realidade, mas também com charme e uma comicidade particular. Ninguém poderia ter feito a senhora Vero melhor do que ela.
Outro destaque é Jordan Firstman, que surge no meio da trama e rouba a cena para si. Como se deu essa colaboração?
A gente tinha se visto, ocasionalmente, quando nos encontramos naquela mesma praça que aparece no filme. Antes disso, tínhamos conversado em algumas festas em Nova York, quando fiquei sabendo que tínhamos amigos em comum. Quando o conheci, percebi que não era, necessariamente, o personagem que está no filme. Não era nenhum tipo de influencer, por exemplo. Estava procurando por um gringo irritante, enxerido. Mas ao conhecê-lo, fiquei inspirado por sua personalidade. Sua relação com as redes sociais, com sua própria vida sexual e como a compartilha, os detalhes. Passamos alguns dias juntos até convidá-lo a participar do filme. Ficou empolgado de imediato. Foi uma grande colaboração.
Rotting in the Sun possui cenas bastante explícitas, de sexo e nudez. Como tem percebido as reações dos espectadores diante do filme em diferentes lugares do mundo?
Isso é algo que chama atenção, com certeza. Afinal, com todos aqueles caralhos de um lado para outro em cena, é difícil passar desapercebido. Mas é engraçado, pois tem quem comente, mas também quem logo esqueça e se concentre em outras coisas. Ainda que eu saiba que pode ser chocante ver um pênis de verdade ou pessoas transando pra valer, acho que, nesse caso, a história do filme e o que a gente de fato queria discutir, essa luta da senhora Vero, acaba se sobrepondo aos paus balançando. Há quem ache engraçado toda essa gente pelada, mas na maioria das vezes as pessoas se envolvem com a trama, ficando além da nudez.
Desde o início essa exposição foi calculada?
Pelo contrário. Ainda que não tenha sido uma decisão consciente expor essas genitais, por causa dessa hipocrisia em relação ao sexo no cinema, de um jeito ou de outro acaba chamando atenção. Fiz nove filmes, e em nenhum deles há sexo. Não é algo que me importe. Até que em Rotting in the Sun decido mostrar muito sexo, e há quem só fale disso. Mesmo que essas cenas não sejam sexies. Não são eróticas, nem parte da narrativa – ao contrário do que geralmente acontece. Quando está assistindo a um filme e os protagonistas começam a se mover na cama para fazer amor, pra mim é a parte mais chata da história. Completamente desnecessária.
Qual é a tua relação com o sexo no cinema?
Não lembro do Woody Allen ter filmado uma única cena de sexo em toda a sua carreira. Ainda que ele não seja a melhor pessoa a ser citada nesse momento e sobre esse tema (risos). Enfim, mas nesse filme, o sexo que é mostrado é como parte da vida do Jordan. Achei necessário essa exibição para melhor entendê-lo. Era específico e engraçado. Então, sim, tenho me deparado com algumas reações fortes, tanto do público, como de jornalistas. Isso fala muito sobre eles, certo? O quanto essas genitais permanecem na mente dessas pessoas. O quanto falam sobre caralhos reflete o que sentem sobre a sua própria nudez em geral.
A despeito dessa nudez, você acredita ter atingido tuas intenções com Rotting in the Sun? Ficou satisfeito com o resultado?
Sim, com certeza. Talvez mais do que com meus filmes anteriores. Foi uma experiência um tanto catártica. Esse processo de escrever, me colocar em cena e mostrar a minha morte, foi muita exposição. Ali estão meus desejos de morte, meu lado sombrio, meus vícios – alguns nem são reais, mas parte de um imaginário – o que mostra que eu poderia ter seguido por aquele caminho. Facilmente ter me tornado esse tipo suicida, amargo e idiota. Foi algo que me deixou vulnerável, mas também foi terapêutico. Quanto ao filme em si, estou orgulhoso do que temos. Quem consegue entender o que quis dizer, vejo quase como parte da minha família. É algo específico e fala de coisas pessoais. Meu relacionamento com a morte e com a vida. É um filme muito particular, que representa meu senso de humor e meu olhar crítico sobre nós mesmos. Estou satisfeito com o longa que agora apresentamos.
Conhece o Brasil? Já esteve por aqui?
Na verdade, sim. Já estive no Rio de Janeiro e em São Paulo, que foi, particularmente, incrível. Fui convidado para fazer parte do júri do Festival Mix Brasil. Durante essa estadia tive a oportunidade de conhecer pessoas incríveis, além de ter assistido a alguns filmes maravilhosos. Consegui experimentar uma imersão muito positiva na comunidade do cinema queer de São Paulo. Adoraria voltar, só preciso de um novo convite!
E sobre o cinema brasileiro?
Bom, lembro de ter assistido aos filmes que estavam nos festival. Mas, em geral, adoro sair do lugar comum e me aventurar por outros tipos de cinema. Então, com certeza, já devo ter visto muitos filmes brasileiros, só não consigo me lembrar quais. Mas claro, Fernando Meirelles, Walter Salles, conheço suas obras. Madame Satã (2001) foi um que me marcou muito. Não lembro quem o dirigiu, mas sim de ter gostado bastante.
Já pensou em filmar aqui?
Uau, adoraria. Confesso que nunca pensei a respeito, pois nunca passei tempo suficiente no Brasil para criar esse tipo de raiz e entendimento a respeito do país. Mas se tivesse a possibilidade de passar um ano morando aí, certamente faria um filme. Morei no México por dois anos, e eis o filme que fiz por lá. Só preciso arrumar uma desculpa para voltar ao Brasil. Tenho certeza que seria divertido.
(Entrevista feita ao vivo via zoom em julho de 2023)