Como nos conta nesta entrevista exclusiva, o cineasta Petrônio Lorena tinha a ideia de fazer um documentário sobre o Ibis, time pernambucano considerado o pior do mundo do futebol. Mas, a gente sabe que nem sempre planos se concretizam, por diversas razões, então o realizador foi buscar na sua infância os insumos para dar outro formato a Sapato 36 (2021), filme que chega aos cinemas do Brasil no dia 04 de agosto. O foco acabou sendo o futebol de várzea praticado tradicionalmente no bairro de Santo Amaro, um dos mais conhecidos da cidade do Recife. A câmera de Petrônio demonstra curiosidade pelas histórias de homens e mulheres que tiveram sonhos frustrados, mas que continuam exercendo a sua paixão nas quatro linhas. Já outros personagens sobressaem por ter conseguido alcançar o oásis futebolístico que para muitos não passa de uma miragem em meio a um deserto de escassas oportunidades. Para saber um pouco mais sobre escolhas, desafios e detalhes da produção, conversamos remotamente com Petrônio Lorena. O resultado dessa entrevista exclusiva com o diretor de Sapato 36 você confere imediatamente abaixo.
Como aconteceu o seu interesse por esse mundo do futebol de várzea? É algo que vem de muito tempo ou um objeto de interesse mais recente?
Esse interesse vem de muito tempo. Quando eu era criança, lembro bem que meu pai gostava de ver a turma jogar bola. Na verdade, ele era o dono da bola (risos). Eu ia com ele para os lugares e ele formava os times, isso em Serra Talhada, cidade do interior do Pernambuco onde nasci. Influenciado por essas memórias, fui acompanhar de perto situações que sempre presencio de passagem pela Avenida Agamenon Magalhães, que é o acontecimento de jogos em quadras informais. No meio disso, entrando no bairro de Santo Amaro, temos o campo do Onze, considerado um símbolo para quem não quer parar de jogar futebol, independentemente de qualquer coisa. É uma forma de eles apostarem uma grana, ganhar algum, há os apostadores paralelos que investem, os organizados que têm patrocínio e os times que se bancam. Uma doideira. De modo mambembe, essas pessoas criam relações até para angariar jogadores. Mergulhando nesse universo, fazendo essa conexão entre a infância e o tempo de agora, encontrei uma realidade da várzea que movimenta aspectos do comércio local. Além disso tudo, esses espaços são ameaçados pela especulação imobiliária que deseja construir espigões em terrenos de campos de várzea. É a diversão da rapaziada, para eles não pirarem, pois esses campos são em áreas suburbanas, em áreas às quais nem todos querem ir.
E foi tranquilo filmar nessas áreas consideradas mais perigosas?
Alguns desses lugares gozam de uma má impressão junto às pessoas. Conseguimos filmar lá com relativa tranquilidade, entrando na periferia com permissão. Ninguém nos incomodou. Às vezes éramos uma equipe com mais de 10 pessoas e mesmo assim tudo fluiu com tranquilidade. Essas comunidades sofrem com um preconceito enorme, todos os dias. O bairro de Santo Amaro, por exemplo, é considerado uma das localidades mais perigosas do Recife, na qual você testemunha gente cheirando cola, entre várias outras coisas. Alguns moradores têm como meio de vida a mendicância. No entanto, Santo Amaro é um bairro plural, no qual convivem diversas realidades.
E esse universo é bastante rico. Você poderia fazer filmes de diversos ângulos, a partir de inúmeras perspectivas. Como se deu o recorte que vemos na telona?
Nesse filme, as histórias me levaram por completo. A ideia inicial era diferente e foi se transformando até chegar ao que temos. Por exemplo, o filme promove o reencontro de grandes dicotomias, como o tetracampeão mundial Ricardo Rocha e o ex-atleta do Ibis Mauro Shampoo. Eles tiveram carreiras muito diferentes depois de jogarem juntos. Existe ali também a relação entre a segunda divisão profissional e o futebol de várzea. Um jogador pode transitar entre essas esferas. Há gente que joga no Ibis e em quase 10 times de bairro. Então, posso dizer que foi esse emaranhado de histórias que foi me conduzindo.
E a construção narrativa do filme? Em vários momentos você parece querer se distanciar das lógicas mais comuns do documentário jornalístico. Como se deu essa construção?
O tema determina a abordagem. Não poderia fazer um filme com uma ruptura de linguagem muito forte para o tema futebol. Se tivesse abordando um artista plástico ou uma cidade, por exemplo, já me permitiria viajar mais. Dessa vez, senti que deveria fazer um filme popular e não exagerar na ruptura da linguagem mais clássica. Mesmo assim, há o momento do sonho, as taças desfocadas, a projeção de Mauro Shampoo dentro do universo do futebol de botão. A minha resposta para fugir das obviedades foi trabalhar a imaginação de uma pessoa que não teve a chance de concretizar seus sonhos. E o lado onírico também está em outros personagens. Minha ideia foi trabalhar as imagens que as pessoas compreendem de futebol e buscar elementos diferentes. Era importante me adequar às situações, por exemplo, da faixa etária de personagens que deveriam estar confortáveis. Meu trabalho é este: adequar a linguagem ao tema. Me parece que este é o grande desafio do artista, a não ser que sua opção seja fazer algo muito descolado.
E filmar o futebol carrega alguns desafios particulares, certo? Como você definiu especificamente a abordagem do que acontecia dentro das quatro linhas?
Assisti a alguns filmes sobre o tema, como Subterrâneos do Futebol (1965), Garrincha: Alegria do Povo (1962), Campo de Jogo (2015), entre outros. A ideia era buscar as diferenças. Percebi que a realidade estava me transportando. Inicialmente, o filme era sobre o Ibis, o pior time do mundo, mas isso não foi possível. Achei que o tema ficou mais aberto, você consegue ver a mulher, que é pouco abordada nesse universo. Em Recife não há uma quantidade significativa de times de várzea femininos, elas já entram para a segunda ou à primeira divisão. Mas, elas treinam em jogam numa realidade de várzea. Meu exercício era conhecer os espaços previamente e decupá-los. Não quis utilizar drones, por exemplo. Tivemos problemas, como uma das câmeras que perdeu parte do material. O que me destaca nesse eixo é a mistura do futebol de várzea com os times da primeira e da segunda divisão.
O futebol nos remete ao sucesso dos grandes times e jogadores, mas sabemos que essa realidade é percentualmente ínfima diante das dificuldades e da miséria da maioria. Como foi para você equilibrar essa paixão do futebol de várzea com o residual de sonhos frustrados?
É aí que o autor se mistura com a obra. A ralação de um jogador é a mesma do cineasta, do músico, daquele que deseja levar uma vida fazendo o seu caminho. Há a convivência entre a melancolia e a alegria, mesmo que seja a alegria num campo de barro. O importante é ter a sensação de vitória. É como curtir o carnaval. As pessoas trabalham o ano inteiro, são exploradas, enfrentam mil dificuldades no trabalho e no transporte. E no carnaval essas pessoas se reconhecem no clube, na escola de samba, no bloco. Comparo isso tudo a partir da necessidade de se sentir gente, de se sentir vivo e de se sentir respeitado. Assim como no carnaval, em que você atinge identificação ao desfilar por muito tempo sob determinada bandeira, no futebol de várzea as pessoas procuram reconhecimento.
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