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Sauvage :: “Não é um filme gay. É outra coisa. É sobre um homem livre que está apaixonado”, revela o diretor Camille Vidal-Naquet

Publicado por
Robledo Milani

Apesar de Sauvage (conhecido também pelo título em português, Selvagem, como foi exibido pela primeira vez no país durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2019) ser seu primeiro longa, Camille Vidal-Naquete está longe de ser um novato. Realizador de curtas, projetos para a televisão e de documentários, o cineasta francês decidiu estrear em uma trama de ficção abordando um tema que ainda é tabu para muita gente: a prostituição masculina. “Houve sessões do filme que homens chegaram até mim, após a exibição, e me questionaram por qual razão eu havia inventado tudo o que tinham visto. Sendo que muito pouco veio da minha imaginação, a maior parte veio das minhas pesquisas e observações dessa realidade. Quem me fazia essas perguntas simplesmente não acreditavam que homens podiam se prostituir, apenas mulheres”, o realizador chegou a declarar durante essa conversa, inédita e exclusiva, que teve conosco do Papo de Cinema agora que o longa finalmente foi oficialmente lançado no Brasil – encontra-se disponível na plataforma de streaming Reserva Imovision. Confira, a seguir, como foi nosso bate-papo:

 

Olá, Camille. Assisti ao Sauvage dois ou três anos atrás, quando exibido na Mostra SP, e revi ontem, para essa conversa contigo. Minha surpresa foi quanto o filme cresceu nesse período. Você imaginava ainda estar falando sobre ele tanto tempo após o seu lançamento?
Sim, essa é uma pergunta interessante. A questão é: não sabia, desde o início, se conseguiria sequer fazer o filme. Conhecia meu produtor há tempo, e foi quem me disse que teria que contar essa história. Pois achava que seria impossível. Ele quem me convenceu que, sim, haveria como. É uma abordagem muito crua, a que escolhemos. Depois, quando ficou pronto, veio outra dúvida: não sabia se seria distribuído, ou mesmo lançado. Cada conquista que tivemos foi uma surpresa. A estreia foi na França, em 2018, e viajamos por todo o mundo por dois ou três anos. Encontrei muita gente legal durante esse tempo, mas, claro, nada foi esperado.

O diretor Camille Vidal-Naquet

Como o vê agora?
Tudo isso que aconteceu foi fantástico, afinal, era com o meu filme que estava acontecendo. Todas essas pessoas ofereceram novas percepções sobre o meu trabalho, e foi o que permitiu que ele se mantivesse vivo por tanto tempo. Faz anos que não o vejo, e talvez fosse interessante assisti-lo novamente. Quando falo a respeito, sinto como se tivesse sido ontem. Nunca parou de me dar boas notícias. Mas já fui adiante, estou fazendo outra coisa, ainda que esses personagens tenham seguido comigo. Lembro que foi uma experiência maravilhosa.

 

Você é também autor do roteiro. Como surgiu a história do Leo?
Havia feito alguns curtas-metragens antes, e todos se desenvolviam em torno desses mesmos personagens. Era esse jovem contra a violência do mundo, se tratava de um rapaz perdido. Queria falar sobre esse garoto que não tinha nada, não tem casa, nem um telefone. Algo que não é comum hoje em dia. Ao mesmo tempo, não tem medo de nada. Por trás dessa fragilidade, há muita força. Ele tem uma sede por liberdade que ninguém pode parar. Era sobre essa energia que queria escrever. Comecei, primeiro, a escrever sobre alguém que vivia nas ruas. Aos poucos, estava falando desse carinho entre homens, e me perguntei porque todo mundo fala sobre prostituição feminina, como se fosse normal – o que não é – mas ninguém fala sobre prostituição masculina. É normal para as mulheres, mas não para os homens? Os homens também se prostituem nas ruas, não só na internet. Isso me intrigou. Qual era a cena por trás disso? Saí em campo, testemunhei essa realidade, e vi que era exatamente assim que acontecia.

 

O personagem chega a afirmar em cena o quão é importante para ele estar livre, poder “respirar”.
Eu vi isso acontecer. Quando falamos de liberdade, há concepções muito erradas a respeito. Não é correr em câmera lenta sem destino. A liberdade real é não ter limites, ninguém pode decidir por você. Essa é uma força sem igual. Achei que seria um interessante ponto de vista. Ele escolhe onde ficar, mesmo sem identificar suas razões. O que o faz feliz é estar em contato com a natureza. É a escolha dele. No final, você vê o personagem decidir. Ninguém pode controlar o que irá fazer. Veja, por exemplo, como ele reage no começo do filme. Na cena em que está com um cliente que finge ser médico. Esse pergunta se ele beija, e a resposta é afirmativa. Mas não naquele caso. Pois ele beija, mas só ele sabe quem e quando. Ninguém escolhe por ele.

 

Há cenas bastante gráficas no filme. Essa foi uma escolha consciente?
A ideia é mostrar o cotidiano de um trabalhador de sexo. As pessoas tem uma ideia vaga sobre o que é ser prostituto. Queria mostrar o dia a dia deles. É um trabalho, afinal. Se você for olhar para um padeiro, o mostraria fazendo pão. Aqui é a mesma coisa. O que fazem é prover sexo, e amor. É algo ordinário para eles. Não foi com uma intenção gratuita, afinal são profissionais, então só filmamos, sem julgamento. Mas nós, os espectadores, não estamos acostumados a ver sexo desse jeito. Para mim, no entanto, era comum. É o jeito que dirigi os atores. Não deveria ser expositivo, mas normal.

Eric Bernard, Camille Vidal-Naquet e Felix Maritaud, no Festival de Cannes

Como foi o trabalho com o ator Felix Maritaud e demais rapazes do elenco? Houve uso de próteses e efeitos de câmera, ou havia essa liberdade no set?
Esse é o segredo do filme. E deve permanecer assim. Todos trabalhamos na mesma vibração. Filmamos as cenas de sexo da mesma maneira que todas as outras, do mesmo jeito. E os atores sabiam disso, por isso se tranquilizaram. Fiz um workshop com comediantes e com um coreógrafo, junto aos atores, para que vissem, através da dança, como lidar com o corpo sem ter medo de mostrá-lo. Se pedisse para viram ao set e solicitasse que ficassem nus, poderia ser estranho. Então tive que treiná-los para isso. De uma forma artística, como iniciá-los nesse mundo. Não se pode ter medo, pois estão interpretando profissionais de sexo. O engraçado é que não fiz o mesmo workshop com os atores que faziam os clientes. Eles chegaram despreparados. Enquanto que os prostitutos estavam prontos. Há um balé se desenvolvendo entre eles. A cena com o cadeirante mostra bem isso. A linguagem dos corpos possui uma identidade. Isso era importante.

 

Duas cenas são particularmente marcantes: o abraço na médica e quando Leo bebe da sarjeta. Uma delicadeza sutil numa, e uma violência inesperada na outra. Era essa a tua intenção, contrapor esses momentos?
Você pode ter achado perturbador ele beber da sarjeta, mas para o personagem não. Para ele, é algo simples. Ele não tem mais nada. Ou seja, o problema não é com ele, mas para quem o vê. Ele não se importa com a prostituição. Trabalhamos muito a imagem do cachorro. Ele dorme na rua, apanha, e mesmo assim volta. É como um cão. E também bebe da rua. É um animal, muito fiel. Foi essa a nossa abordagem. Ele tem sede, ali tem água, então bebe. Está com fome, vê uma maçã, então come. E sobre a médica, é uma das poucas personagens que realmente se interessam por ele. Não está julgando, só tenta entendê-lo.

 

Apesar dela estar em apenas uma cena, se percebe a importância dela na história.
É baseada em uma pessoa que conheço. E ela é exatamente assim como essa médica. Você não faz ideia de quantas vezes tive vontade de abraçá-la. Já me salvou tantas vezes. É alguém que cuida de mim. Para o filme, pedi que a minha médica fosse consultora dessa cena. Me ajudou a escrever os diálogos. É uma personagem maravilhosa, que projeta algo imediato no Léo. Ele não se move pelas convenções, por isso se sente livre para abraçá-la. O que mexe comigo é que ela o abraça de volta. O aceita, não o rejeita. É muito tocante.

Felix Maritaud, em cena de Sauvage

Vamos falar sobre o final e sobre o título, mas sem dar spoilers. Selvagem é também uma inabilidade de lidar com o social? É pura emoção e pouca lógica?
O filme é chamado Selvagem porque esse personagem é assim. Talvez a melhor tradução fosse Untamed, ou indomável. Algumas pessoas simplesmente não se encaixam. O problema não é deles, mas da sociedade, que não pensa neles. Não existem regras para eles. Os trabalhadores de sexo trabalham nas matas, na natureza. É perigoso, e afastado. Por isso era importante chamar o filme de Selvagem. Você pensa nessa prostituição como algo longe de nós, mas, na verdade, está abaixo dos nossos olhos. Os homens, em Paris, estão se prostituindo nas estações de metrô. É a energia do filme. Queria que a câmera fosse instintiva, assim como a montagem. Sem intelectualizar muito. Tinha que sentir a vibração de cada tomada. Refletir a vida desses personagem.

 

Como foi a recepção do filme na França? Com o crescente conservadorismo no mundo, Sauvage chegou a sofrer algum tipo de ataque?
Para ser honesto, as reações foram bem menos controversas, perto do que poderia ter esperado. Achei que seria mais. As pessoas se chocaram mais em ver uma pessoa nessas condições, vivendo nas ruas, do que pelo lado sexual. Claro, alguns protestaram quanto a isso. E os entendo. Mas ninguém quis nos censurar, por exemplo, então fiquei tranquilo. Se não quer assistir, não veja, e pronto. Mas, em geral, foi bem recebido. Fiquei feliz. Me encheu de esperança, podemos falar sobre algo assim, e fazer um filme sobre o tema. O que me chocou foi quem negou que homens prostitutos sequer existem. Em algumas projeções, pessoas vinham até mim conversar depois da sessão. Teve um homem na audiência, certa vez, que me disse que eu deveria ter feito pesquisa, pois aquilo não existia. Ele dizia que não era verdade, sendo que fiz 3 anos de pesquisas antes do filme! Como pode ser tão difícil imaginar essa realidade? É perturbador para muitos se dar conta que algo assim pode acontecer, e não apenas com mulheres. É um filme sobre homens, mas fala também sobre a situação das mulheres. Para a maioria, vê-las assim seria normal. Mas ver homens se prostituindo, muitos consideram inacreditável. Sendo que existe e está nas ruas.

 

Conhece o Brasil? E o cinema brasileiro?
Nunca estive no Brasil. O que é uma pena. Isso seria um convite? Adoraria ir (risos). Não sou um especialista sobre cinema brasileiro, mas preciso conhecer mais. Lembro de ter visto Bacurau (2019), que é extraordinário. Tinta Bruta (2018) foi outro que gostei muito.

 

Como espera que o público brasileiro reaja ao Sauvage?
Quando foi lançado na Polônia, que é um país muito conservador, achei muito corajoso dos distribuidores. E o mesmo sinto sobre o Brasil. Sauvage não é um filme gay, ou LGBT, mas que aponta uma situação que existe no mundo todo. Léo é um homem gay, mas não creio que o tema do filme seja a condição dele. É outra coisa. É sobre um homem livre que está apaixonado. Não estou falando sobre a comunidade gay. Mas sobre um personagem específico, e sobre um trabalho específico. É sobre trabalhadores de sexo. Queria que fosse algo a mais, que inclui a cena gay. Mas entendo essa percepção, e, claro, entendo quem o considera um filme gay.

Camille Vidal-Naquet e Felix Maritaud

Como tem sido a vida pós-Sauvage?
Fiz dois documentários após Sauvage. Um deles é sobre como lidamos com a morte, e estou desenvolvendo uma série de televisão sobre o mesmo tema. É um assunto que me interessa. Como pode ver, fui em uma direção completamente diferente. Mas não foi um passo calculado. Apenas fui atrás de algo que me interessava. A percepção a respeito do que faço é algo que não posso ter controle, então deixo para a audiência. Se querem me caracterizar como um cineasta gay, ok. Sauvage é gay, os documentários não. São coisas diferentes, mas cada um fala sobre uma parte de mim. Vamos ver o que virá a seguir.

(Entrevista feita por telefone, entre Brasil e França, em junho de 2021)

 

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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