Contentes com a première brasileira de Severina na noite anterior, durante a programação do Festival do Rio 2017, os atores argentinos Carla Quevedo e Javier Drolas receberam o Papo de Cinema para uma conversa no lobby do hotel em que as atividades paralelas do evento carioca aconteciam. Muito simpáticos e devidamente trajados de acordo com vibe tropical (estava um calorão danado neste dia), como turistas à vontade depois do trabalho bem realizado, eles conversaram conosco acerca das particularidades de seus personagens nesta que é mais nova produção do cineasta Felipe Hirsch. Carla interpreta Ana, mulher misteriosa e vulnerável que conhece fortuitamente R, personagem de Drolas, ao roubar livros de seu estabelecimento, algo que, sabemos mais adiante, é uma prática habitual. Uma verdadeira homenagem à literatura e à construção dos mundos fantasiosos aos quais invariavelmente escapamos constantemente, Severina deve boa parte de seu brilho ao trabalho dos dois, que apresentam um entrosamento sobressalente em cena. Sem mais delongas, vamos ao Papo de Cinema que tivemos com os argentinos Carla Quevedo e Javier Drolas. Confira!
Como se deu o convite para vocês embarcarem em Severina?
Javier Drolas: Muitas vezes, quando o Felipe fala, acho que é brincadeira. Mas, normalmente ele cumpre (risos). Aos poucos fui conhecendo ele. Se não me engano, o convite aconteceu por WhatsApp, do tipo “vamos fazer um filme?”, e respondi “vamos”. Foi bem desse jeito.
Carla Quevedo: Felipe me contatou diretamente. Ele buscava uma atriz argentina para o filme, e não estava encontrando. A esposa dele, Mariana, me viu numa minissérie norte-americana chamada Show me a Hero – não sei como ela sabia que eu era argentina – e me indicou a ele. O Felipe viu o programa e gostou do meu trabalho, logo depois entrando diretamente em contato comigo. Aí, mandou o roteiro e propôs minha participação no Severina.
E o que te chamou mais a atenção na leitura do roteiro, Carla?
C: Eu disse que queria fazer o filme antes mesmo de ler o roteiro. O texto estava em português e, para decidir, teria de esperar a tradução. Nesse meio tempo, Felipe enviou para mim o livro do Rodrigo Rey Rosa, sinalizando que o longa seria uma adaptação dele. A leitura me fascinou. Acabei ela em, mais ou menos, uma hora e meia. O assunto me soou bastante interessante. Depois, obviamente, li o roteiro (risos). Me encantei por essa história de amor que mescla realidade e ficção. A personagem me pareceu um desafio instigante.
Javier, como foi a delineação desse personagem extremamente romântico?
J: A preparação foi excelente. Tenho um amigo livreiro em Buenos Aires. Fui estudar com ele a arte da “livraria” (aspas do ator). Ele me mostrou todos os métodos da profissão, desde como evitar roubos até de que maneiras ordenar e limpar os livros. Quando cheguei ao set foi um caos, porque a livraria era completamente diferente (risos). Fomos ao Uruguai uma semana antes de começar a rodar. Felipe já havia dito que o diretor de arte era magnífico e que estava fazendo um trabalho incrível. Peguei elementos do meu próprio escritório, pedi a inclusão de algumas coisas, isso tecnicamente falando. Quanto a outros aspectos, Felipe me guiou, não só porque é ciente das minhas possibilidades expressivas, mas também porque me conhece. Ele extraiu de mim a candura, essa empatia, algo intrínseco ao personagem, determinante ao seu romantismo. Por amor, esse homem chega fazer coisas extremas e muito loucas. Então, era necessário estabelecer um pacto entre a obra e o espectador.
Carla, como foi criar essa personagem tão enigmática quanto frágil?
C: A Ana foi criada muito na filmagem. Partindo do roteiro, eu tinha uma ideia completamente diferente sobre ela. No roteiro sobressaia a angústia. Na hora de filmar, o Felipe disse que esse sentimento poderia aparecer em apenas numa cena, pois Ana deveria estar sempre no limite. Eu tinha de sobrepor a angústia com risadas e uma leveza, criando contrastes. Sou uma atriz muito metódica e estudiosa. Precisei colocar de lado todo o trabalho prévio, feito a partir do roteiro. Tive medo de não conseguir tornar críveis o suficiente as reações, porque a todo o momento a Ana pode dar uma guinada a outro lado, dizer coisas, não por sentir, mas exatamente para provocar o personagem do Javier. Então, a dificuldade foi construí-la sabendo que ela não tinha a coerência própria de uma persona.
Como foi o estabelecimento dessa intimidade entre vocês?
J: Foi ótimo.
C: Saímos para comer churrasco no Uruguai (risos).
J: Conversamos bastante, tentamos compartilhar inquietudes, dificuldades e medos. Nos abrimos bastante um com outro. Acredito que isso deu o tom da intimidade.
Qual a maior dificuldade para realizar o Severina?
C: Minha maior dificuldade foi o idioma. Mas, também, acabou sendo a maior riqueza. Não falo português, então tive problemas nas primeiras semanas de filmagem, especialmente para estabelecer uma comunicação precisa, falando idiomas diferentes. Foi uma experiência singular. Isso do diretor falar outra língua gerou um efeito curioso, como se o Felipe nos observasse de lugares distintos, justamente por não somente escutar as palavras, mas pela necessidade de prestar atenção à melodia delas, privilegiando muitas vezes a gestualidade e não necessariamente o texto. O filme ganha com isso, especialmente nos momentos de silêncio, quando não há diálogos e as cenas são feitas de olhares e sutilezas.
J: Formalmente falando, o filme é muito bonito, vide o comportamento da câmera, os cenários, entre outras coisas. O aspecto plástico é muito forte. Para mim, o mais difícil foi estar em 98% dos planos (risos), e às vezes ter a câmera a cinco centímetros do rosto. Fazia muito frio em Montevidéu e tínhamos jornadas de trabalho bem extensas. No fim dos dias, eu realmente estava cansado. Fazíamos muitos takes para cada cena, pois as coreografias eram complicadas, especialmente as dos planos-sequência. Por outro lado – não sei se demonstro segurança ou insegurança falando isso ao jornalista (nesse momento, Javier olha para Carla e sorri) –, mas a gente acaba não sabendo bem que está fazendo na filmagem. É preciso confiar muito no diretor, como diriam os psicólogos, nessa transferência. No plano macro, há coisas que estão somente na cabeça do diretor, que apenas ele sabe.
Vocês tiveram liberdade para improvisar e propor ideias?
J: Sim, absolutamente. Na maioria das vezes, o Felipe trazia uma ideia de como seria o plano e a partir disso construíamos em conjunto.
Levando em consideração que livro é uma coisa muito pessoal, qual exemplar vocês dariam aos seus personagens?
C: Que difícil (risos).
J: Que pergunta complicada (risos). Não me sinto à vontade para responder, sério. Sempre me aterroriza a ideia dessas perguntas do tipo “que livros você levaria para uma ilha deserta?”. Seu questionamento me soa muito parecido (risos). Simplesmente não consigo responder. Há tantos livros… e todos os meus amigos sabem que sou um indeciso (risos)
C: Eu daria Os Belos e Malditos: Retrato de Uma Geração, de F. Scott Fitzgerald, para Ana. Primeiro, porque é um dos meus livros favoritos, e sou muito egoísta (risos). Segundo, porque nele há uma heroína muito especial, muito Ana. Me parece alguém de quem ela poderia roubar diversas coisas para a vida.
E que livro você daria ao Felipe, Carla?
C: Para o Felipe não sei se é possível. Ele é um intelectual, deve ter lido mais que (Jorge Luis) Borges (risos). Na verdade, dei ao Felipe um livro que roubei numa livraria uruguaia (risos). Quando chegamos a Uruguai, fui a algumas livrarias e roubei livros de verdade. Não contei ao Felipe até terminarmos, óbvio (risos). Depois, voltei os lugares e paguei por eles, claro (risos). Para mim, era importante experimentar a sensação, a excitação, aprender de que maneiras esconder um livro roubado. Senti que tinha de saber isso de verdade. Quando voltei para pagar, os livreiros acabaram rindo de tudo isso. O livro que dei ao Felipe é um bem pequeno, de poesias tiradas de muros durante a revolução francesa.
Para vocês, sobre o que, especificamente, fala o Severina?
J: É uma grande homenagem à literatura. Tenho a sensação de que ao ver esse filme o cérebro cria uma experiência muito parecida com a da leitura.
C: Concordo com o Javier. O filme fala sobre porque lemos, porque vamos ao cinema, porque nos apaixonamos. Ele aborda essa necessidade de escapar ao real, ao mundano, à rotina e de construir mundos a partir de fantasias.
(Entrevista concedida ao vivo, no Rio de Janeiro, em outubro de 2017)
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