Apesar de ter nascido no Rio de Janeiro, Felipe Hirsch é uma pessoa do mundo. Eleito pelo jornal O Globo um dos pensadores mais influentes do Brasil, é, ao mesmo tempo, de uma simplicidade tranquilizante. Conversar com Hirsch é prazeroso, nunca uma disputa de egos. Ele não parece nem um pouco interessado em mostrar o quanto sabe e dizer tudo o que pode sobre seu próprio filme – pelo contrário, parece mais interessado em ouvir o que temos a dizer, perguntar ou até mesmo refletir em conjunto. Um dos diretores teatrais mais aclamados do país, interrompeu um jejum de quase uma década para lançar Severina (2017), seu segundo trabalho como cineasta e o primeiro sozinho – o de estreia, Insolação (2009), foi co-dirigido por Daniela Thomas. Severina, por sua vez, é uma produção da brasileira RT Features – a mesma de Me Chame Pelo Seu Nome (2017) e Frances Ha (2012), entre tantos outros – e, baseada no livro homônimo do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, foi filmada em Montevidéu, contando com os argentinos Javier Drolas e Carla Quevedo como protagonistas. E para saber um pouco mais sobre esse projeto, já premiado no Festival de Milão e selecionado para o Festival de Locarno, encontrei Hirsch no café do Espaço Itaú de Cinemas do shopping Frei Caneca, em São Paulo. Confira, abaixo, como foi nossa conversa:
Bom, para quem é do sul do Brasil, como eu, assistir ao Severina proporciona uma identificação muito forte, uma vez que as filmagens foram no Uruguai…
Mas você sabe onde o Severina seria filmado? Em Porto Alegre! Afinal, é a cidade brasileira onde ainda encontramos livrarias nas ruas. Estão acabando, eu sei, mas em São Paulo você não encontra mais. Proporcionalmente, nem no Rio de Janeiro tem mais. Porto Alegre, por sua vez, tem muito ainda. Aqueles sebos maravilhosos…
Mas você chegou a fazer pesquisa em Porto Alegre?
Não, até porque conheço muito bem a cidade. Quando ia escrevendo o roteiro, achava que as filmagens seriam no Brasil. Nunca pensei em fazer no exterior. E, justamente por isso, pensava em Porto Alegre o tempo todo. Pensava na rua Riachuelo, naquela área atrás do Theatro São Pedro. Tinha isso muito vivo na minha cabeça. Só depois é que tive que adaptar para Montevidéu.
Por causa do Javier Drolas, lembrei direto do Medianeras (2011), e durante grande parte da história, imaginei que fosse Buenos Aires. Você chegou a cogitar a possibilidade de filmar na Argentina?
Não, a gente foi direto para Montevidéu. Na verdade, foi uma questão de produção. Esse filme seria feito no Brasil. Mas, em dado momento, perdemos um incentivo. Foi um momento de muita dúvida, até se o filme seria ou não feito. Foi o Rodrigo Teixeira, da RT Features, que tinha acabado de filmar O Silêncio do Céu (2016) no Uruguai, que sugeriu essa possibilidade. Ele já tinha os parceiros certos, com uma co-produtora muito boa, e se encaixava perfeitamente para um filme pequeno como o nosso. Quando me perguntou: “Você topa fazer em Montevidéu?”, a primeira coisa que pensei, foi: “bom, o texto original já é em espanhol, o autor é latino-americano, e também estou super envolvido com isso, tendo trabalhado há pouco com atores argentinos e chilenos no teatro, até que faz sentido essa troca”. Acho que, no final das contas, foi até melhor, pois diz mais respeito ao momento que estava passando artisticamente, com todas essas conexões com a América Latina.
A Carla Quevedo vinha de uma temporada trabalhando nos Estados Unidos, o Javier Drolas é argentino, você é brasileiro… como foi a comunicação entre vocês no set?
Olha, a gente tem um idioma em comum que é o portunhol, né? (risos) Ele deve ser oficializado nos próximos tempos, espero! Para nós, brasileiros, pode até ser mais fácil entendê-los, mas, com o passar do tempo, essa barreira desaparece. Leio, hoje, muito bem em espanhol! Entendo bem, e consigo dirigir atores em espanhol, mas sei que não falo bem – falo portunhol! E com eles acontece a mesma coisa. Até podem ter mais dificuldade para entender o português, mas as ideias se estabelecem, num nível emocional. Para a Carla, acredito que tenha sido um pouco mais complicado, porque ela estava há oito anos fora da Argentina. Eu a conheci por causa da série Show Me a Hero (2015), que assisti após terem me indicado, e fiquei encantado. Por isso a chamei, e quando chegou houve um estranhamento inicial, mas muito rápido. Quase um susto, apenas. É meio patético ter que falar inglês entre um brasileiro e um argentino, e vez que outra isso até aconteceu, mas pouco.
Falta ao Brasil se dar conta que também é parte da América Latina, não?
Essa questão do Brasil ser isolado pela língua, não é exatamente uma verdade absoluta. A gente coloca muito nessa conta, por falarmos português e o resto do continente, espanhol. Só que a verdade é que o Brasil, principalmente as classes mais ricas, tem uma relação muito forte com o way of life norte-americano, e acha um pouco kitsch esses vizinhos latino-americanos. E isso é uma pena, pois há um tesouro cultural, uma riqueza muito além do vulgar que a gente está acostumado, com os padrões europeus e americanos. Passamos por questões sócio-políticas semelhantes, por ditaduras semelhantes, com tanta coisa a aprender e trocar. Temos um universo literário assombroso, por exemplo, que o mundo precisa conhecer. Então, é uma desculpa esfarrapada ficar nessa ideia de que apenas a língua é responsável por esse distanciamento. A língua é uma das barreiras, e não mais do que isso. E nem sei se é a maior.
Voltando ao tema do Severina, gostaria de te perguntar: que livro você roubaria de uma livraria?
Puxa, acho que não resistiria e teria que roubar, se visse na minha frente, um daqueles livros que o Julio Plaza fez da obra do Augusto e do Haroldo de Campos, sabe? Se encontrasse uma edição original do Reduchamp, por exemplo, seria bem complicado. Mas é claro, voltaria no dia seguinte, arrependido, e pagaria. Mas se não tivesse um outro jeito, seria um “Deus me perdoe”, pois um volume desses não dá pra deixar passar (risos).
Entre o Insolação e o Severina se passou quase uma década. O anterior, além de ter sido feito em parceria com a Daniela Thomas, era bem mais hermético. Havia, agora, uma vontade de se comunicar com um público maior?
Na verdade, não. Acho que esses dois filmes, e mesmo a minissérie A Menina Sem Qualidades (2013), são todos relacionados com o momento da minha vida naquela situação em que foram feitos. Acho que ainda não fiz um filme – e penso que farei, em breve – que eu pensasse em algo que começasse e acabasse nele. O Insolação estava ligado à época em que me relacionava com um assunto que dizia respeito à Brasília. Era uma série de fotografias de um fotógrafo alemão – que se você me perguntar agora não lembrarei o nome – sobre os arredores dos grandes monumentos da nossa capital federal. Eram ruínas, ou lugares que começaram a ser construídos e foram abandonados. E também tinha muito sobre a utopia política que existia naquele lugar, não do JK, mas algo que perdura até hoje. A utopia de verdade, dos arquitetos, que tende a falir. Comparei muito com uma paixão, pois ela também tem um final. Essa relação com o inacabado, e desses lugares sendo reaproveitados para um novo começo de vida, uma nova paixão, um primeiro amor, que também tende a acabar e quedar inacabado, aquilo tudo me tocou.
O Severina nasce de uma vontade de refletir cinematograficamente sobre o que você está passando agora?
Isso mesmo. O Severina reflete essa minha relação com a América Latina, tendo feito um trabalho para a Feira de Frankfurt sobre a literatura brasileira, na sequência estendendo isso a todo o continente. Depois, escrevi uma minissérie, que ainda está inédita, com vinte escritores latino-americanos. Tudo isso me levou ao Severina. Ou seja, são dois filmes muito relacionados ao meu momento. Não chega a ser uma opção fazer tal tipo de filme mais ou menos hermético. E, pra concluir a tua pergunta anterior, o que aconteceu também com o Insolação é que eu e a Daniela juntos, numa mesma sala, por oito meses, não poderia resultar em uma coisa muito boa (risos). Quer dizer, daria em algo bom, mas não muito do bem (risos). Porque, de alguma maneira, a gente provoca uma reflexão, sem concessão, a um extremo, para que o filme, de alguma maneira, perdure. Acho que o Insolação se estabeleceu na cinematografia brasileira no estilo “ame ou odeie”. Tem gente que ama, a ponto dele ser estudado na UNB (Universidade Nacional de Brasília), por exemplo, e tem também quem não tolere um filme como aquele de modo algum.
Severina é um filme com uma ambientação muito teatral. Sendo você um dos grandes diretores de teatro do Brasil, não pensou antes em fazer uma peça? Ou a vontade sempre foi de ver essa história no cinema?
Cara, nunca imaginei fazer Severina nos palcos. Poderia, claro, pois acho que até uma lista telefônica pode ser levada para o teatro – aliás, acho que hoje em dia estou mais próximo de adaptar uma lista telefônica do que um livro como Severina (risos) como peça, essa é a verdade. Mas sempre me veio uma carga muito forte dos ambientes, essas ruas vazias. E tem uma outra questão. Em oito anos, você pensa em fazer milhares de filmes. Cada dia é um diferente que surge na nossa cabeça.
Durante todo esse tempo, você chegava a se perguntar quando voltaria a fazer cinema?
Não exatamente quando, mas ficava pensando em filmes o tempo todo. Só que, de alguma maneira, eles se resolviam na minha cabeça. E isso tirava a minha vontade de fazê-los. E com o Severina isso não aconteceu. Não sabia porque ele me atraía. Até hoje, se você me perguntar o por quê de ter feito esse filme, não vou conseguir te dar uma boa resposta. E não considero isso uma coisa ruim. Aceitei esse mistério. O que sabia, e era um statement, é que não queria fazer algo no zeitgeist, não queria fazer um filme retroativo. Tava fazendo muito disso no teatro, politicamente. Queria que o filme durasse um pouco mais. Tanto para quem o assistisse, como também para mim. Talvez, se se tivesse seguido essa mesma linha, não estivesse tão feliz nesse momento como estou agora.
Reconheci, assistindo ao Severina, o Daniel Hendler e o Alfredo Castro, ambos em participações especiais. Os demais coadjuvantes também foram escolhidos a dedo?
Com certeza. Tenho a cara de pau de chegar para o Hendler e dizer: “vem aqui fazer uma cena do filme”. Puxa, falo isso para um dos melhores atores do mundo! Mas pensa bem, é uma oportunidade de termos um bom papo, de se encontrar, de projetar algo para o futuro, de pensar em coisas juntos. Então, por que não? O máximo que ele pode me dizer é “não to a fim”. Mas ele veio, e foi uma delícia. Sem falar que ele é uruguaio, apesar de morar há muitos anos na Argentina. Uma curiosidade: aqueles amigos que se reúnem na livraria, como o Hendler, o Nacho Mendy, o Gonzalo Delgado, que faz aquele texto do Ray Bradbury – e que, inclusive, é o diretor de arte do filme – todos são da mesma turma do 25 Watts (2001). Sem falar que o Gonzalo escreveu o roteiro do Whisky (2004), os outros produziram. Ou seja, foram eles que fundaram o novo cinema uruguaio.
Bom, não são todos atores, então. Como foi trabalhar com eles?
A gente ficou muito próximo, adorava escutá-los falando esse espanhol italianado, discutindo ideias incríveis. Os chamei para fazer dois dias inteiros de improvisações. O que está no filme com eles foi tudo improvisado, mesmo. Nada estava no roteiro. Estão falando por eles, tanto nas cenas de discussão, entre os amigos, como nas de leitura. O que eu fazia? Distribuía alguns papeizinhos, com sugestões de assuntos. Eles liam e guardavam. Daí os deixava falando, e chegava a gravar meia-hora direto de câmera. Eles falando, bem livres, e depois a gente editava.
A trilha sonora é do gaúcho Arthur de Faria. Como foi desenvolver a música do filme?
O Arthur é um gênio. Nós já fizemos dez peças juntos. O problema, agora, é não o convidar. Quando vou começar um novo trabalho, ele já me pergunta: “ok, a gente começa quando?”. Nem preciso falar mais nada, entende? O legal é que desenvolvemos um sistema de trabalho muito nosso. Essa presença do Arthur é muito forte em tudo que faço. Por isso, levei o Arthur para o Uruguai, e ele ficou lá, se juntou com alguns músicos da cena local, e começaram a criar a trilha praticamente no set. Enquanto íamos filmando. Eu dava dicas do que queria, e ele ia tocando em paralelo. E pedi que gravasse lá, pois não queria editar com uma outra música como referência. Não sei como as pessoas fazem isso, nunca entendi. A trilha foi feita em três países diferentes – Brasil, Uruguai e Argentina – com mais de 40 músicos. Só que, quando a gente chegou na edição, achei que tinha música demais. Por uma série de razões. Queria não que a música conduzisse o público a uma reação, mas que, de fato, ressoasse a criação de um livro. Se aquilo tudo é um livro sendo criado, ainda que não fique claro no filme, queria que a música fosse um eco disso. E não simplesmente um condutor emocional para o público.
Outros parceiros do teatro você levou também para o Severina?
Sim, alguns. O Bruno Alzaga, meu assistente, que é da minha companhia, a Ultralíricos. Estávamos todos muito juntos, na real. Você comentou: “esse é o seu primeiro filme solo, sem a Daniela”. Sim e não, sabe? Pois é difícil mensurar o quanto a Daniela participou de todo esse processo. E também estive muito próximo do Vazante (2017), o filme que ela lançou no ano passado. Temos todos uma intimidade muito grande, trabalhamos juntos sempre, mesmo quando não trabalhamos. Isso tudo conta.
Um autor da Guatemala, um diretor do Brasil, atores da Argentina, filmado no Uruguai. Qual a nacionalidade de Severina?
É, essa é mesmo uma questão que deixa muita gente em dúvida. Por exemplo, alguns festivais internacionais, interessados em filmes brasileiros, não nos selecionaram por não nos considerarem… “brasileiros”. Não me afeto muito com isso, no entanto. O problema vem quando deixamos de lado as co-produções. E nem falo do aspecto ‘genético’ do filme, digamos assim. Falo da produção, mesmo. E isso é uma coisa que acontece no mundo todo. Se pegarmos um filme que concorre em Cannes, por exemplo, ele provavelmente será uma co-produção entre o Egito, Estados Unidos, Alemanha, Itália e França, por exemplo. E vai ser falado da maneira que o artista, e a produção, acharem melhor. Esse é o cinema hoje. Não existe mais essa rigidez purista, de ser conectado a um só lugar. O Severina é, sim, um filme brasileiro. Mas é também uruguaio. E, num outro aspecto, é latino-americano, pois envolve talentos de chilenos, guatemaltecos, argentinos… tem uma amplitude grande.
Mas qual seria a essência desse filme?
Essa é uma questão de clima. Aquelas ruas são brasileiras? São lugares brasileiros? Se você tem uma intimidade com Porto Alegre, talvez até ache que sim. Mas até mesmo Porto Alegre não tem esse estereótipo de como o Brasil é vendido no mundo todo. As pessoas também vão achar estranho. Que Brasil é esse? Temos dificuldade para entender esse Brasil do Sul, que faz frio. Nesse aspecto, até posso entender quem estranhe. Mas o Brasil é tudo isso. É um país do tamanho de um continente. Norte não é Nordeste, e também não é Centro-Oeste. As ‘caras’ do Brasil precisam aparecer mais, para que percebam nossa diversidade. Então, se dizem “é um filme uruguaio”, respondo “é um filme uruguaio também”. Mas é produzido por um brasileiro, dirigido por um brasileiro, com música de um brasileiro… é muita coisa.
Vamos ter que esperar mais oito anos até um novo filme, Felipe?
(risos) Não, espero que não. Estou pensando em filmar novamente, talvez daqui um ou dois anos. Tenho algumas ideias, mas nenhuma pra dizer “olha, vou por aí”. Mas tenho a certeza de que preciso rapidamente chegar a essa conclusão. Primeiro, porque adoro filmar. Segundo, porque não sou um cara ‘mordido’ pelas séries. Não vejo televisão. Por isso que é muito importante, pra mim, nesse momento, fazer cinema. Preciso de me definir, me decidir, e me aprofundar com mais rapidez do que em oito anos. Sei disso. Por isso, posso dizer, com certeza, que daqui há uns dois ou três anos já estarei com um novo filme.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em abril de 2018)
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