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Sheena667 :: “O humor do absurdo é universal”, defende Grigoriy Dobrygin

Publicado por
Bruno Carmelo

Para os russos, Grigoriy Dobrygin é conhecido principalmente como ator de filmes populares, a exemplo de Como Terminei Este Verão (2010), O Homem Mais Procurado (2014), Mar Negro (2014) e Nosso Fiel Traidor (2016). No entanto, ele também tem uma carreira consolidada como diretor e produtor dotado de um humor particularmente ácido. No 2º Festival de Cinema Russo, que ocorre de modo online e gratuito até este domingo, 10 de outubro, ele apresenta seu primeiro longa-metragem, Sheena667 (2019).
A trama apresenta o casal Vadim (Vladimir Svirskiy) e Olga (Yuliya Peresild), que vive numa cidadezinha interiorana, à beira de uma estrada perigosa. Ele aproveita os acidentes frequentes no local para abrir uma pequena oficina mecânica, enquanto ela, funcionária dos correios, tenta fraudar os jogos da lotérica. Os dois sonham em comprar um caminhão e trabalharem com frete, mas algo transforma os planos do casal: a paixão repentina de Vadim por Sheena667 (Jordan Frye), uma garota que conhece apenas pela Internet, num site de shows eróticos. Obcecado pela jovem norte-americana, começa a nutrir planos de abandonar a esposa e viver com sua amada no Estado da Geórgia, nos Estados Unidos.
Dobrygin aproveita essa tragicomédia para discutir nossos sonhos e o absurdo dos relacionamentos contemporâneos. Nós conversamos com o diretor sobre o projeto:

O diretor e ator Grigoriy Dobrygin

Por que decidiu contar a história deste casal de baixa renda, praticando pequenos atos ilegais para sobreviver?
Bom, eu não diria que esta é uma história específica sobre pessoas de baixa renda, apenas sobre pessoas que vivem numa cidade pequena e isolada na Rússia, longe de uma megalópole. Essa era a ideia inicial. Afinal, Vadim ainda tem sua pequena oficina mecânica, e Olga trabalha nos correios, por isso não os condicionei tanto pela classe social. É o caso típico de uma cidade provincial. Numa cidade maior, teria barulho demais, e isso não deixaria o público se concentrar na ideia central do projeto.

Gosto do símbolo da Estrada da Morte, perto da qual os personagens vivem. O que esse elemento representa para você?
Curiosamente, as pessoas não morrem com frequência nesta estrada. Elas apenas abandonam seu caminho quando passam ali. O nome “estrada da morte” carrega certa ironia – enquanto para alguns, esta via representa um problema, para o protagonista, esta é sua principal fonte de renda.  Além disso, depende do ponto de vista: algumas pessoas enxergam neste caminho uma tragédia, mas para outros, se trata de uma estrada comum. No final, depende do olhar de quem vê.

Sheena667

Diria que o filme fornece um olhar crítico aos relacionamentos na Internet?
Não acredito que seja uma crítica, apenas meu ponto de vista e minha visão sobre o tema, que eu queria compartilhar com os espectadores. A maior parte da minha vida é passada nos dispositivos virtuais, então não poderia criticá-los: é assim que vivemos hoje em dia. O que posso fazer é propor uma reflexão sobre o fato de que nós transferimos parte considerável de nossas interações ao espaço da Internet. Eu mesmo passo oito, nove horas por dia na Internet, e também me questiono a respeito dessa utilização. Isso seria normal? A vida, nessas circunstâncias, é normal?

Por que levou o codinome Sheena667 ao título?
Isso me pareceu natural! Esta é a forma comum de chamar pessoas na Internet. Fiquei pensando que ela poderia ser simplesmente Sheena, mas certamente já haveria muitas outras Sheenas antes dela, então precisou acrescentar outros números para encontrar seu login. Além disso, Sheena é o nome real da personagem. Na verdade, seu nome de batismo é Sheena Winters, e achei isso interessante, porque refletiu o tempo do ano em que filmamos, no inverno (“winter”, em inglês). Até pensamos em outros títulos, mas fiquei preso a essa ideia que me agradava.

O desejo de fuga de Vadim para os Estados Unidos representa uma versão irônica do sonho americano? Isso é comum em cidades provincianas na Rússia?
Seria complicado eu falar em nome de todas as pequenas cidades russas, porque este é um país enorme. Mas posso dizer que os acontecimentos dos últimos anos não têm sido muito favoráveis, e diversas pessoas começam a pensar em abandonar o país. Eu queria expressar a ideia de um sonho, uma oportunidade de ir para outro lugar, que nem precisava ser os Estados Unidos. Poderia ser qualquer país distante, de difícil acesso. Acabei escolhendo os Estados Unidos porque conheço o perfil das pessoas que moram na Geórgia. Além disso, não queria que o protagonista tivesse razões muito evidentes para sair do país. Queria que ele tivesse uma esposa linda, e condições de vida razoáveis, sem fornecer motivos graves para ele desejar sair da Rússia. Pretendia despertar no espectador esta pergunta fundamental: “Por que o protagonista fez isso?”. Quando desejamos algo muito longe, muito exótico, paramos de pensar nos detalhes, na viabilidade dos planos. Vadim não pensa que, quando chegar ao outro país e encontrar Sheena, pode viver em condições idênticas àquela da cidade pequena onde se encontra – talvez seja até pior. A distância torna a imagem idealizada.

Por que separou a história em capítulos com nomes independentes: Amigo, Irmão, Traição etc.?
Eu adoro esse formato literário! Gosto da estrutura dos romances, divididos em capítulos. Isso desperta o sentimento agradável de trabalho cumprido a cada vez que se termina uma parte. Sabe quando você percebe que terminou uma parte e já pode começar outra parte nova? Eu sou um leitor preguiçoso! As pausas e a música permitem trazer minha visão, enquanto torna o resultado final menos sério. 

Sheena667 aposta num raro humor de pessoas sérias. Como trabalhou o tom da ironia com os atores?
Em primeiro lugar, sempre gostei de trabalhar a autoironia como material principal. Em relação à equipe em geral, não apenas o elenco, eu sempre me questionei: será que estamos nos comunicando bem? Meus colegas de equipe enxergam este humor da mesma maneira que eu; riem das mesmas coisas? Sobre os atores, até o último momento, eles não sabiam como ficaria o filme no final. Eu nunca mostro para eles o material gravado depois de cada tomada, então descobriram o resultado apenas na estreia, com a versão final. O Vladimir Svirskiy, nosso protagonista, até o último momento, nem sabia que a intérprete da Sheena é uma atriz de fato. Ele pensou que a gente tinha procurado uma garota que realmente se apresenta em sites pornográficos online. Ele sequer desconfiava que ela fala russo perfeitamente!

Costuma-se dizer que o humor tem mais dificuldade de viajar, sendo muito específico a cada país. Como vê o fato de Sheena667 chegar ao público brasileiro, pelo Festival de Cinema Russo?
Eu sempre pensei no humor como algo universal. Nossa capacidade de rir sobre os relacionamentos é algo que pode nos unir. O humor do absurdo, dentro de nós e ao nosso redor, é universal. É uma alegria muito grande descobrir as reações dos espectadores de outros países. Quando eu exibi Sheena667 nos Estados Unidos, as pessoas gargalhavam, e isso foi impressionante para mim. Eu senti que tinha feito alguma comédia com Sacha Baron Cohen ou Zach Galifianakis. Esse grau de identificação com o nosso humor foi formidável. Eles me diziam: “Esses russos são incríveis!”. Por isso, acredito que o humor desse filme pode ser compreendido em qualquer lugar do mundo. Estou ansioso para saber como ele vai ser recebido no Brasil. Adoro conversar sobre o filme, porque estas conversas me despertam reflexões que eu mesmo não tinha formulado.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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