Mineira de Belo Horizonte, Ísis Valverde completou há pouco trinta anos, mas já é um nome consagrado na dramaturgia nacional. Estrela de mais de uma dezena de novelas, minisséries e programas especiais na televisão, foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro por seu primeiro trabalho na tela grande, como a determinada Maria Lúcia de Faroeste Caboclo (2013). Depois de duas comédias – uma romântica (Amor.com, 2017), e outra mais folclórica (Malasartes e o Duelo com a Morte, 2017) – ela está agora de volta ao lado do seu grande parceiro, Fabrício Boliveira, na cinebiografia Simonal (2018), que reconta a trajetória do cantor que dominou a atenção do público nos anos 1970, para pouco tempo depois cair em desgraça junto aos mesmos fãs que tanto o admiravam. Para falar um pouco mais sobre esse projeto, a atriz foi ao Festival de Gramado, onde o filme conquistou três kikitos, e aproveitou a ocasião para conversar com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Ísis. Segundo o diretor Leonardo Domingues, a grande diferença de Simonal para as outras versões da vida do artista é justamente a Tereza, tua personagem. Como foi assumir esse desafio?
Primeiro, um pouco complicado, né? Afinal, não a conhecia. Só tive a oportunidade de conversar com ela uma única vez, e por telefone. E mesmo esse contato foi um tanto superficial, pois os filhos cuidam muito dela, não gostam de expô-la em pública, é uma mulher muito reservada. E seria como reabrir uma ferida, um movimento desnecessário. Consegui, catando os retalhos que ela deixou pelo caminho, montar a minha Tereza. Uma ajuda muito importante que tive foi deles, dos filhos. Eram a minha principal orientação. Perguntava muito sobre ela, e eles estavam a toda hora me dando conselhos. Chegou ao ponto de eu enfrentar uma enxaqueca durante as filmagens, e depois descobrir que ela também tinha enxaquecas frequentes. Nessa hora percebi que estava no caminho certo. Através da história de vida dela, de todas essas situações, é que consegui sentir quem era a Tereza, por tudo que ela havia vivido.
Isso não te deu, por outro lado, mais liberdade nessa composição?
Não, pois tentei, mesmo, copiar essa pessoa. Afinal, é uma biografia. Não tem como criar do zero uma mulher que já existe. A frustração do ator é que nunca conseguimos. Posso lhe dizer: “vou fazer você”, mas irá ficar diferente, por mais que me esforce. A minha frustração é não conseguir entrar no seu corpo e ser você. A gente fica louco, pois a nossa vontade é arrancar nossa pele e vestir a sua. Não basta apenas atuar, queremos ser. Só que não tem como. Portanto, o personagem sempre vai ter um toque do ator. O mesmo personagem, feito por outra atriz, vai ser completamente diferente.
Porém, como não era possível imitar, você se viu obrigada a criar a tua própria Tereza.
Pois então, dito isso, é claro que a Tereza tem a minha assinatura. Mas tentei seguir fielmente tudo o que foi passado, recriando essa fragilidade, mas sem deixar de lado a voz forte que ela também possui. Às vezes, a vontade que tinha era de ir abraçá-la e dizer: “vem cá, você não está sozinha”. No início, estava um pouco triste por não tê-la conhecido, mas depois até gostei, percebei que não seria influenciada pela pessoa que ela é hoje. Não é mais aquela mulher de 19 anos, afinal. Eu a interpretei num arco de quase 20 anos, até os 38 dela. Havia um peso dramático muito forte, até para lidar com o transtorno dela. Essa bipolaridade foi se exacerbando ao longo dos acontecimentos da vida dela.
Como se deu a relação com os três filhos dela e do Simonal, o Simoninha, o Max de Castro e a Patricia Simonal?
Bom, quando os três assistiram ao filme, foram unânimes em me dizer que era a mãe que estava diante deles. O Simoninha, por exemplo, dizia sempre que viam muito mais a mãe do que o pai quando pequenos. Era ela que estava em casa, com eles, afinal. A Patricia, quando o filme terminou, estava chorando. Claro, tinha toda a história do pai, mas a primeira coisa que disse foi: “fiquei com tanto dó da minha mãe”. Eu tava grávida na época, super sensível, comecei a chorar junto. Foi muito forte ouvir isso. “Fico tão triste de ver tudo o que ela passou”, continuou. Puxa, a Patricia mora com a mãe, é ela que tá cuidando dela hoje. Perceber que, de uma forma ou de outra, foi o meu trabalho que causou isso neles, é tanto um elogio quanto um peso. Fico me sentindo culpada também. Afinal, estava buscando essa reação deles.
Vamos falar dessa relação com o Fabrício Boliveira. Afinal, é o segundo filme em que vocês dois aparecem juntos, e novamente como um casal.
Isso é amor! (risos) E teve mais, pois começamos juntos, na novela Sinhá Moça (2006), e depois fizemos ainda Boogie Oogie (2014), outra novela. E o Faroeste Caboclo (2013). É uma parceria ótima, adoro trabalhar com o Fabrício. Teve uma cena em Boogie Oogie que simplesmente não saía. O diretor queria nos matar, pois pintamos e bordamos, literalmente. Fizemos de tudo, e não conseguíamos nos concentrar. Você sai do texto, zoa um do outro… bom, tivemos uma crise de riso, né? Foi um vexame, mas é sempre maravilhoso.
Em Simonal, assim como no Faroeste Caboclo, não houve muito espaço para comédia. É mais fácil se entregar ao personagem quando é ao lado de um parceiro conhecido?
Posso falar a verdade? É muito mais fácil. Mas o importante, mesmo, é ter ao seu lado um ator bom, mais do que se ele é ou não um parceiro antigo. Muitas cenas se apoiam nas intimidades dos atores, então são necessários encontros antes de rodar um filme, uma série, uma novela. É preciso essa interação entre o elenco, mas não necessariamente ser amigo ou conhecido de anos. Agora, ter um bom ator com você, em cena, pode lhe levar ao sucesso ou ao fracasso. Um diálogo é feito entre duas pessoas. Se dependesse só de uma, seria um monólogo.
Tem um outro filme teu, que gosto muito, que é o Amor.com (2017), uma comédia romântica bem mais leve. Você, enquanto atriz, sente necessidade de transitar por ambientes mais solares, no meio de tanto drama?
Vou te dizer que comédia romântica não é um gênero que gosto de fazer. Mas faço de vez em quando, e antes desse filme que você citou, havia feito apenas em novelas, na televisão. No cinema, sempre busquei me aprofundar nas partes mais densas, por assim dizer. Mas fico feliz por você ter lembrado do Amor.com, pois é um trabalho que gosto muito. Foi uma ótima surpresa. Enquanto buscava personagens mais complexos, me encantou a possibilidade de apenas participar. Me envolvi com o roteiro, com a produção, foi um processo bem coletivo. Ajudei em tudo. A Anita Barbosa, nossa diretora, foi uma fofa. Usei muito o meu estado de criação nesse filme, pensando em como montar cada cena, colaborando com os takes, pensando como cada passagem seria feita. Um dia ainda quero dirigir, mas ainda me considero nova para isso. Quem sabe lá pelos 40 anos? Se fosse hoje, seria capaz de empurrar a atriz para o canto e acabar fazendo eu mesmo o papel dela (risos). Esse filme me permitiu brincar, pois era mais leve, bem estilo Hollywood. Tinha tudo para ser vazio, mas ao mesmo tempo apresenta questões interessantes. Só que sem forçar nada.
Como você acha que o público irá receber Simonal? Acredita que o filme cumpre essa tarefa de oferecer um novo olhar sobre o artista?
Acho que a ideia do Leo (o diretor) nem era tanto oferecer um novo olhar, mas mostrar, sem pretensão, uma visão por trás da cortina. O documentário Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei (2009) era voltado para o lado profissional, e a gente aborda um viés mais íntimo. Ele queria mostrar dentro de casa, como eram essas relações, como se deu tudo isso. O Simonal fez muita coisa errada, mas também se arrependeu. Puxa, não se manda bater em alguém, a tortura não pode ser tolerada em hipótese alguma. Então, querendo ou não, ele foi contra a lei. Mas agora você, enquanto espectador, irá conseguir entender um pouco melhor tudo que ele passou. Quem são esses filhos? Quem foi esse cara, onde vivia, como era o casamento com essa mulher? Quando o diretor me disse que seria um filme com um olhar por trás das câmeras, me interessei muito. O Simonal que fez sucesso, “meu limão meu limoeiro”, com um monte de gente em volta, isso já conhecia.
E quem era a Tereza nisso tudo?
A Tereza era uma mulher sonhadora. Ela tinha um problema psicológico, um transtorno que hoje seria facilmente tratável, mas que naquela época não era bem assim. Realmente, você viver com essa condição bipolar é difícil. Não sei ao certo como deve ser, mas imagino que seja muito complicado. Vejo a Tereza como uma mulher que nasceu, infelizmente, no tempo errado. Se fosse nos dias de hoje, penso que seria mais feliz. Ela era uma artista. Provavelmente, poderia ter sido uma dançarina de sucesso. Talvez tivesse dançado nos shows do Simonal e teria sido a mulher mais feliz e realizada do mundo. Ela não era uma mulher de família, como o pai dizia. Precisava se expor. Mas foi obrigada a ser o que os outros esperavam dela, e com isso, acabou se anulando. Pra viver dentro de uma sociedade, para ser a esposa de uma grande estrela. É muito dolorido, e tudo por amor. É uma mulher além do tempo dela.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2018)