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Sinfonia de um Homem Comum :: “Aprendi sobre esse universo ao fazer o filme”, diz José Joffily (Exclusivo)

Publicado por
Marcelo Müller

José Joffily é um cineasta experiente, do qual podemos esperar sempre projetos instigantes e com consistência cinematográfica. Seu mais novo filme, Sinfonia de um Homem Comum (2022), teve passagem destacada pelo É Tudo Verdade 2022, o maior evento de obras documentais da América Latina, e agora está prestes a chegar aos cinemas. O protagonista é José Mauricio Bustani, primeiro diretor geral da OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas). O brasileiro foi demitido por pressão dos norte-americanos que não queriam perder a desculpa para invadir o Iraque a fim de pulverizar a soberania do país médio-oriental e assim abrir espaço às empresas ocidentais que gostariam de lucrar naquele território. É um filme que parte de alguém e desenvolve um diagnóstico bastante cortante sobre o atual panorama geopolítico mundial, sobretudo da violência decorrente do comportamento imperialista dos Estados Unidos.. Para saber como se deu o processo de Sinfonia de um Homem Comum, conversamos remotamente com José Joffily. O resultado você confere agora em mais este Papo de Cinema exclusivo.

Você diria que esse é um filme de processo, ou seja, que aconteceu enquanto era realizado?
Em linhas gerais, escutei a história do Bustani em 2002. Era uma trama inacreditável. Mas, os anos passaram e os fatos comprovaram tudo. O Iraque não tinha armas de destruição em massa, aquilo era uma jogada para justificar a invasão norte-americana. Tanto que, à frente no tempo, o então presidente George W. Bush e o Colin Powell reconheceram que realmente não havia armamentos do tipo no Iraque, justificando com um “fomos mal informados”. Eu sabia que esse arco existia, mas também era fundamental não falar disso levianamente. Não queria abordar levianamente a tragédia da destruição de um país. Milhares de mortes aconteceram e trilhões de dólares foram gastos nessa barbaridade.

Imagino que o desafio também era ter testemunhas confiáveis, a não ser o próprio Bustani…
Pois é, começamos a detalhar a história e a escolher pessoas que poderiam conferir veracidade àquilo que estava sendo afirmado. A primeira pessoa que procuramos foi o porta-voz do governo norte-americano na época da invasão ao Iraque, um homem que justificava a demissão do Bustani por conta de uma suposta incompetência do brasileiro como gestor. Uma incompetência fake e super mal “justificada”, por sinal. Atualmente, o próprio Bush reconhece que houve mentiras nesse processo. Quando escutamos o depoimento do inspetor da ONU, quase caímos para trás por conta da coragem com a qual ele fez acusações gravíssimas que se comprovaram ao longo da filmagem. Cada personagem comprovava a barbárie. A trama foi ganhando ritmo e entendimento mais profundos ao longo da realização. Eu mesmo não sabia nem o que era OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas) em 2002.

Ou seja, de fato era um processo vivo, sempre acrescido de novidades.
Sim, com certeza, até porque fomos entendendo os meandros, os personagens, as responsabilidades, e ganhamos coragem para fazer certas afirmações que, do contrário, seriam meramente jogadas. Por exemplo, de alguma forma, a queda das torres gêmeas em 11 de setembro de 2001 foi muito interessante para os Estados Unidos, sobretudo do ponto de vista geopolítico. Morreram cerca de cinco mil pessoas na ocasião e não poderíamos falar levianamente disso, era preciso contextualizar. De fato, havia muitas empresas norte-americanas interessadas em explorar o Iraque economicamente. Empresas que levaram Bush e companhia ao poder. Não são organismos maus, são conduzidos por um sistema capitalista que assim funciona. Para falar isso tudo, e de tal forma que seja atraente, é preciso se armar bem, entrar bem calçado para não quebrar a cara. Isto é algo em curso, não que as organizações multilaterais foram manipuladas por países hegemônicos no passado. Está acontecendo hoje. Efetivamente a manipulação parte dos países fortes, mas precisamos de voz e de consciência para interferir nesse processo.

E a sua colocação como personagem estava prevista desde o início? Você é o narrador e sua presença física nos lembra de que há um viés, mas isso era vital desde o começo para você?
A linguagem foi nascendo nesse processo, havia pouca coisa pré-determinada. No início, dois amigos atores tinham feito essa leitura do texto em construção. É um assunto muito complexo e espinhoso. Meu depoimento era uma forma de assumir a responsabilidade por aquilo que o filme estava dizendo. É preciso ter uma base sólida para afirmar certas coisas delicadíssimas. Mas, no fim das contas, achei que a leitura pelo ator dava uma distância que não funcionava bem. Enfim, o filme estava editado assim, mas não fiquei satisfeito. Aí refiz com outro ator, mas também não me satisfiz. Foi uma jornada muito trabalhosa (risos). Aí resolvi tentar fazer eu próprio uma gravação doméstica, com o meu celular mesmo.

E como foi ocupar esse lugar de voz do filme?
Difícil, pois não encontrava o tom que me parecia adequado. Não queria ser professoral, até porque não sou especialista no assunto, estava aprendendo sobre esse universo junto com o filme. Ao mesmo tempo, não posso me distanciar. Por isso começo revelando minha amizade com o Bustani. Aliás, ele é um personagem muito intrigante. O Bustani é o cara mais teimoso que conheci. Os norte-americanos deram azar (risos). Se fosse outro diplomata…se fosse eu, duvido que teria esse empenho de bater de frente. E o Bustani virou um homem bomba para os estadunidenses. Mas, voltando às minhas gravações, fiz tudo umas cinco vezes. Até que finalmente resolvi chamar meu amigo ator Silvio Guindane para me dirigir. Não sabia mais o que fazer antes de ele entrar em cena.

Já que você falou, essa teimosia do Bustani é um traço fundamental do filme…
Por isso fiz questão de enfatiza-la no primeiro ato do filme. O Bustani tem esse temperamento e queria apresenta-lo ao espectador para que ele soubesse com quem estava lidando (risos). O Bustani me questionou várias vezes sobre os motivos que me levaram a registrar aquelas partes musicais, com ele tocando piano. Eu disse: “Bustani, calma, você é o documentado e eu sou o documentarista” (risos). O Bustani é uma pessoa de temperamento dominador. E isso é bom, somente foi ruim para os Estados Unidos (risos). Mas, era também importante capturar a frustração dele, pois não houve meios de impedir a invasão descabida do Iraque.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.