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Slalom :: “Nos casos de abuso sexual, a palavra começa a se liberar agora”, explica Charlène Favier

Publicado por
Bruno Carmelo

Em seu primeiro longa-metragem como diretora, Charlène Favier conquistou a proeza de uma seleção na competição oficial do Festival de Cannes 2020. O filme que chamou tamanha atenção do comitê de seleção foi Slalom (2020), drama parcialmente inspirado na vida da própria cineasta. O projeto acompanha a trajetória de Liz (Noée Abita), jovem promessa do esqui francês, que passa os dias no centro de treinamento se preparando para as competições.

 

 

No entanto, a relação com o treinador Fred (Jérémie Renier) se torna cada vez mais intensa, até se converter em manipulação emocional, abuso físico e concretização do estupro. Longe dos pais e dos amigos, e perto de conquistar seu maior troféu, a adolescente de 15 anos de idade não sabe como reagir aos fatos. O resultado é um drama forte, visando alertar o espectador sobre as violências existentes dentro do esporte profissional.

O espectador brasileiro pode assistir a Slalom no Festival Varilux de Cinema Francês, disponível nas salas de cinema em dezenas de cidades brasileiras. O Papo de Cinema conversou com a cineasta sobre o projeto corajoso:

 

A diretora Charlène Favier

 

Em que medida o filme reflete sua experiência de vida?
Este é um filme muito pessoal, filmado na cidade onde eu cresci. Muitos cenários, como o apartamento da vizinha, correspondem a espaços reais que eu frequentava. O ambiente do esporte profissional, tudo isso fez parte da minha vida. O cenário é bastante familiar para mim. Liz sou eu aos quinze anos de idade: esse temperamento forte, a postura teimosa. A história da menina que quer ir ao limite de suas possibilidades, mesmo correndo o risco de queimar as asas, é algo que eu vivi. Esta não é exatamente a minha trajetória, mas ela tem muitas questões pessoais.

 

Qual estrutura existe no esporte para lidar com casos de abuso sexual hoje, em comparação com a sua juventude?
Não tenho a impressão de que a situação tenha se transformado radicalmente entre a minha adolescência e 2017, quando filmamos. No entanto, em 2017, a palavra começou a ser liberada. Em 2019, muitas atletas ousaram compartilhar os abusos que sofreram, mas até o início das filmagens, dois anos antes, o cenário não tinha se transformado tanto assim. Enquanto eu fazia buscas por cenários em instalações esportivas reais, eu questionava sobre o assunto, esperando que as coisas tivessem mudado. Mas na verdade, estava tudo igual. Acredito que apenas agora esta transformação tenha se iniciado graças a algumas atletas que tiveram a coragem de falar a respeito. Graças ao filme, acredito que mais pessoas possam conversar a respeito também: tenho percebido uma movimentação após as sessões. A atual Ministra dos Esportes decidiu utilizá-lo para discutir a violência sexual no esporte.
A partir de 2020, os treinadores finalmente terão que passar por uma formação sobre os limites da relação entre a equipe técnica e os atletas. Tudo isso é muito recente. Em 2017, enquanto eu filmava Slalom, a Ministra dos Esportes da época afirmou que não havia casos de violência sexual no esporte francês. Zero. Simplesmente não haveria problema algum. Era uma negação total, três anos atrás. A palavra começa a se liberar agora, e por isso acredito que Slalom tenha um impacto tão forte. Escreveram muito a respeito do filme na crítica e na imprensa. A possibilidade de ver esta história em imagens e se confrontar às histórias reais serve de alerta às pessoas. Talvez se o filme tivesse estreado em 2017, ninguém teria falado a respeito. Ele provavelmente nem teria sido selecionado em festivais. Existe uma pertinência na data de lançamento em relação ao que acontece na sociedade.

 

Slalom

 

Você disse que encontrou muitas dificuldades e preconceitos para produzir o filme.
Tive a sorte de encontrar um produtor rapidamente, assim que concluí o curso de roteiro da FÉMIS [prestigiosa escola de cinema em Paris]. Ele logo compreendeu que esta era uma história importante, um tema forte e muito pessoal para mim. No entanto, para financiar, foi dificílimo. Comecei a escrever a história em 2014. Nos anos seguintes, até 2017, ninguém queria ouvir falar nesta história. O tema incomodava as pessoas. Os produtores me davam a desculpa de que este era um filme sobre o esporte, e que isso nunca dá dinheiro. Mas não é um filme sobre o esporte, obviamente. Outra reclamação dizia respeito aos personagens: o vilão precisava ser mais malvado, e a vítima, mais inocente. Diziam que o público não entenderia se o treinador não fosse bem malvado. Existem outros filmes sobre abuso sexual e manipulação psicológica, eu não sou a primeira a abordar o assunto. Mas estes casos eram muito mais maniqueístas e simplistas. Logo, usavam estes argumentos para desqualificar o meu projeto e não financiar o filme. Tivemos pouquíssimo dinheiro. Nenhum grande canal de televisão que costuma investir no cinema francês comprou a ideia. Conseguimos apenas um pequeno apoio do CNC [Centro Nacional do Cinema, equivalente à Ancine francesa]. Filmamos em modo kamikaze. A maior ironia foi ver que, depois da exibição de Slalom em festivais, estes mesmos produtores vieram conversar comigo, dizendo que era extraordinário, fabuloso. Eu respondi: “Procurei vocês há dois, três anos, e vocês me disseram não”. Então me disseram que tinham se enganado.

 

A sua atriz principal, Noée Abita, já era maior de idade durante as filmagens, embora pareça muito jovem.
Noée foi descoberta durante o processo de escolha de elenco de um filme chamado Ava (2017), quando buscavam atrizes sem experiência. Eu descobri Noée no Festival de Cannes 2017, junto de todo mundo, assistindo a esse filme. Foi a primeira experiência dela no cinema. Mas eu me enxergava em Noée: ela tem algo muito selvagem e espontâneo, além de parecer bem mais jovem. Imediatamente, pensei que seria uma boa escolha para a minha esquiadora. Na época, fiz um curta-metragem que me permitiu testar a direção das cenas de estupro. Tinha muito medo de filmar cenas do tipo, e queria ter a experiência de fazer isso num curta-metragem antes, porque sabia dos grandes riscos que corria. Propus a Noée o papel, e ela aceitou na hora. Surgiu uma grande afinidade amigável e profissional: ela compreendeu imediatamente tudo o que eu queria. Noée entendeu a personagem quando viu o curta-metragem, e acredito que tenha vivências semelhantes com a história, assim como eu também tenho. Ela tinha muita vontade de contar esta história, defender a personagem e compartilhar o que tinha vivido.

 

Slalom

 

Que precauções tomou com o elenco, especialmente para as cenas de estupro?
Precisei encontrar um método para as cenas difíceis. Dividi estes momentos no número mínimo de imagens necessárias para se compreender a ação. A cena de estupro no ginásio tem apenas três planos: no início, quando o treinador a derruba, em seguida vem a penetração, e o ato em si, focado no rosto dela. Fiquei me perguntando: o que seria indispensável para a compreensão? Decidi me focar apenas no estado emocional de Noée. Não queria erotizar os corpos, nem filmar do ponto de vista do agressor. Como todo filme é contado pelo ponto de vista de Liz, me perguntei como poderia contar esta cena do ponto de vista dela, com o mínimo de imagens necessárias, para poupar os atores da exposição a estas ações. Não queria que durasse muito tempo para a filmagem das cenas de estupro. Em 30 minutos, fizemos tudo. Foi muito rápido. Calculamos exatamente o que filmaríamos antes para proteger os atores, não queria colocá-los numa situação violenta desnecessariamente. No final, foi rápido e sucinto, sem dificuldades, como uma coreografia.

 

Como trabalhou com Jérémie Renier para trazer complexidade ao treinador?
Jérémie foi maravilhoso. Quando o roteiro estava pronto, ele me disse que aceitou o personagem pelo fato de não ser um abusador em série. Fred também tem remorsos, arrependimentos. Ele não consegue controlar as suas pulsões, e Jérémie é fascinado por questões do tipo. Todos os meus curtas-metragens abordavam pulsões impossíveis de controlar, e quando você vê a filmografia do Jérémie, percebe que ele sempre escolhe estes personagens com um lado sombrio e outro mais solar, ambos se debatendo no mesmo corpo. Ele se tornou uma evidência: tanto ele quanto Noée aceitaram o projeto rapidamente. Além disso, existia a compreensão de que a princípio, trata-se de um treinador sério, que tenta fazer seu trabalho da melhor maneira possível, com uma vida familiar estável. Não é um pedófilo perverso, um doente mental. É um homem normal que perde o controle. Mas como um sujeito normal perde o controle a esse ponto? Compreendi que isso ocorre porque ele faz parte de um sistema. Ele também é vítima, de certa maneira, do sistema que obriga a vitória a qualquer preço. O treinador se frustrou no passado, por causa de uma lesão que nunca o permitiu voltar ao esporte profissional. O filme não denuncia apenas as falhas de um indivíduo, mas os problemas de um sistema que carece de controle e atenção.

 

Slalom

 

A família de Liz é bastante ausente. Como vê o papel dos pais nos abusos sofridos por ela?
É verdade que o filme é bastante focado em Liz e Fred. Era isso que me interessava: a relação de dependência e manipulação psicológica. Não queria mergulhar a fundo em outros personagens, porque isso tirava a atenção do conflito principal. Além disso, esta é uma viagem mental na experiência de Liz, que é uma jovem muito solitária. Ela não fala com ninguém sobre o que vivencia, primeiro porque não tem as palavras necessárias para expressar isso, e segundo, porque ninguém acreditaria nela. Liz está sozinha. Quis trabalhar isso: como ela está solitária, e nós vemos o mundo através de seus olhos, também não enxergamos muito os outros personagens. É verdade que Justine, a melhor amiga, tem certa compreensão, além de uma atração física por Liz, porque ela está em processo de autodescoberta. Mesmo assim, isso é algo discreto. Como a protagonista não dá muita importância a esta amizade, não queria que ela tomasse espaço excessivo no filme.
Quanto à mãe, ela é inspirada das personagens femininas de Xavier Dolan e Pedro Almodóvar. Almodóvar é o cineasta que meu deu vontade de fazer cinema. Adoro as mães dos filmes dele, e penso que a minha é parecida: uma mulher bastante carismática e extrovertida. A mãe do filme encontrou um namorado e pensa: “Faz tempo que crio esta garota sozinha, mas agora quero ter a minha vida! Estou envelhecendo, esta é a minha oportunidade de aproveitar”. Além disso, a mãe pensa que a filha está contente, dentro de uma ótima instituição esportiva. Os pais que deixam os filhos nestes lugares costumam pensar assim: o esporte funciona desta maneira, ele exige dedicação total, e não traz problemas. Queria mostrar a falta de vigilância relacionada a estes casos. Existe muita intimidade violada, relações de manipulação com os jovens. Eu adoro a personagem da mãe. Algumas pessoas reclamaram comigo, dizendo que ela é uma pessoa horrível. Mas eu adoro as falhas: gosto de pessoas que têm falhas. Quando eu me olho no espelho, percebo várias falhas, e me digo que é preciso aceitar isso. Existe certa demagogia na França: todo mundo precisa fingir que está contente com a própria imagem. Não é real. A beleza das pessoas se encontra nas falhas e nas fragilidades. Esta é a falha desta mãe: ter encontrado um namorado. Ela também tem o direito de procurar o amor, certo?

 

Slalom

 

Dolan e Almodóvar são diretores que trabalham com muita música, cores, catarse. Já Slalom é glacial, elegante.
Isso vem do pudor. Queria fazer um filme minimalista, intimista, repleto de pudor. Afinal, este é um tema difícil de abordar. Muitos sentimentos passam pelo rosto de Liz, e se eu exagerasse nas imagens, isso tiraria a intensidade do universo íntimo da personagem. Era preciso ter cuidado com isso. O que me inspira no cinema e na criação artística são a pintura e a fotografia. Ambos carregam um aspecto místico, fixo, posado. Inconscientemente, isso me inspira nas imagens. Ao mesmo tempo, quis estar mais próxima da vida real neste filme. Fiz curtas-metragens ainda mais frios e estáticos anteriormente. No caso deste longa-metragem, sabia que precisava ter mais vida, por isso alternei entre as imagens com a câmera no ombro e outras mais estáticas, representando os sentimentos reprimidos dela.

 

É impressionante ter um primeiro longa-metragem selecionado em Cannes.
Foi maravilhoso. Fiquei muito contente, porque sou autodidata, não venho do meio do cinema. Tive um percurso de guerreira para concretizar esse filme. É verdade que não existiu o festival de fato [por causa da pandemia de Covid-19], mas ao mesmo tempo, a experiência do “selo Cannes 2020” trouxe algo mais terno. Ao invés de uma grande edição, houve “pequenos festivais de Cannes” espalhados dentro de outros festivais, o que tornou a experiência mais calorosa, menos voltada ao glamour e aos negócios. Eu gosto de fazer os filmes com atenção, mas também não me levo a sério demais. O cinema não vai salvar vidas, é preciso se divertir, relaxar, experimentar. Sem o evento presencial, houve algo menos cerimonial, e isso me agradou bastante. Em paralelo, os filmes de diretores estreantes receberam mais atenção do que teriam na edição tradicional. O festival nos tratou muito bem, acompanhando com cuidado as exibições do filme.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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