“Esta é uma produção brasileira”, aparece escrito nos finais dos créditos de Sobre Futebol e Barreiras, documentário que está sendo lançado agora nos cinemas. E o aviso faz todo sentido, pois qualquer desavisado iria apostar em qualquer outra nacionalidade, menos a canarinho. Isso porque as filmagens foram inteiramente feitas em Israel e na Palestina, e quase a totalidade dos entrevistados fala em um inglês bastante amador ou em alguma das línguas da região. Agora, o que esse povo historicamente dividido tem a ver com futebol? Foi o que os diretores João Carlos Assumpção (JCA), jornalista, auxiliar de produção e de pesquisa, José Menezes (JM), cineasta, Lucas Justiniano (LJ), cineasta, e Arturo Hartmann (AH), jornalista, tentaram responder nessa conversa que tivemos num sábado de manhã em Porto Alegre, primeira cidade de todo o Brasil em que o longa foi exibido comercialmente.
Por que escolher o futebol como ponto de partida de uma discussão sobre o conflito entre Israel e Palestina?
AH. Como jornalista, já havia escrito sobre o tema há algum tempo, visitado a região e tal. Tinha uma visão mais pessoal desta situação. Numa destas idas fui assistir a um jogo de futebol do lado de um palestino. O jogo era Egito e Argélia, pela Copa Africana de Seleções. Todos os palestinos estavam torcendo pela Argélia, contra o Egito, porque na época o presidente do Egito ajudava Israel a fazer o cerco à Gaza. Por isso, pela questão política, eles torciam pela Argélia. Daí o palestino falou: “tu tem que ver isso durante a Copa do Mundo, as torcidas são muito fortes”. Foi aí que surgiu a ideia do filme. É mais uma tentativa de encarar o simbolismo do futebol como um dado cultural, relacionando-o dessa forma. Sendo a Copa do Mundo uma competição de nacionalidades, quando israelenses e palestinos torcem para um time ou outro, independente do motivo, isso já era um ponto de partida para discutirmos as próprias nacionalidades destes povos!
Como vocês encontraram os personagens que estão no filme?
LJ. Muito foi ao acaso, foi pura sorte, mesmo. Quando a gente começou a desenvolver a ideia, o Arturo ficou mais de um mês viajando por lá, sozinho, e já procurando as pessoas certas para falarem conosco. Muitos dos nossos contatos vieram dessa primeira viagem.
AH. Depois disso voltei ao Brasil e juntos começamos, os quatro, a trabalhar no conceito do filme. Quando isso estava pronto, voltamos para lá e ficamos mais dois meses pesquisando. Isso foi 15 dias antes da Copa do Mundo de 2010. Foi quando encontramos as últimas pessoas que completaram o filme.
LJ. Ao todo entrevistamos 23 pessoas, e 11 estão no corte final.
Como foi definir quem entraria e quem sairia da versão final do filme?
JCA. Dependia de vários fatores, até de quais seleções estavam indo melhor na Copa! Dependia do que falavam em termos de política, do dia a dia deles, das personalidades de cada um. Quem tinha mais conteúdo da história e do cotidiano da região. E tem o lance dos times. Teve uma hora que cheguei a ficar preocupado que fosse parecer um filme de argentinos, porque tinha muitos torcedores da Argentina! Mas a questão é que o núcleo dos argentinos rendeu mais do que esperávamos!
Pois então, isso eu percebi. Mesmo sendo um filme brasileiro, se vê pouco do Brasil na tela…
AH. Isso é resultado de um jogo duplo. Teve um momento do corte em que ficamos com medo de que o filme ficasse muito brasileiro. Daí tiramos tanto que agora nem parece mais que é daqui! O objetivo era equilibrar, não queríamos tantos brasileiros falando. No decorrer dos trabalhos os personagens foram ganhando corpo, outras dimensões, e quando percebemos nenhum dos brasileiros tinha sido tão interessante a esse ponto. O único de todos os entrevistados que torcia para o Brasil era um ex-jogador, que chegou a fazer muito sucesso nos anos 80. Só que a discussão com ele era outra, era muito mais importante falar sobre o tempo em que ele jogava do que os porquês dele torcer para o Brasil. No final, nos créditos, até tem algumas cenas dele torcendo, mas é só. Tem um momento do filme em que ele diz, após o jogo do Brasil e Holanda: “o primeiro tempo é dos jogadores, o segundo é do técnico”. Foi o que aconteceu, quando no segundo tempo o Brasil perdeu e caiu fora da Copa.
AH. O problema é que a nossa seleção não ajudou muito, também! Quando a gente viu, o Brasil já tinha saído da Copa! E ainda tínhamos entrevistas a fazer! Ou seja, não foi uma decisão “vamos ou não vamos falar do Brasil”. Simplesmente aconteceu desse jeito que mostramos agora.
Assim como era uma preocupação não ser Brasil demais, e por isso acabou sendo de menos, também era uma orientação entre vocês não ser futebol demais? Porque o filme me parece ser muito mais sobre as barreiras entre aqueles povos, e o futebol é só uma desculpa, um pano de fundo…
LJ. Exatamente, era essa a ideia. A cena da barbearia, que abre o filme, mostra bem essa questão. Ali a gente prepara para o que vai ser o filme. Quando chegamos lá, começamos a falar de futebol, mas quando vimos já estávamos falando de política, de religião… as coisas foram naturalmente indo para esse lado. Como é dito no filme, por um dos personagens: “torcer é uma questão política”. Tudo lá é política. O futebol foi só a porta de entrada.
AH. A política e a religião estão presentes em todos os momentos das vidas dessas pessoas. Não importa o assunto, em algum momento ele irá se tornar sobre política e religião. E o mesmo acontece quando se fala de futebol. Na verdade o filme é sobre bandeiras, sobre nacionalidades. A gente quis trazer para um espaço com o qual nos identificamos mais, que é a Copa do Mundo, um tema mais acessível aos brasileiros. E mesmo qualquer pessoa que esteja fora de Israel, quem for italiano, alemão e que goste de futebol vai entender o que tentamos fazer. O debate principal é a bandeira, e sendo a bandeira a vida cotidiana dessas pessoas.
JCA. E isso acontece em todos os níveis. Eu me lembro da Copa do Mundo de 2006, no jogo entre Brasil e Croácia. Eu estava lá, e a torcida da Croácia era muito mais motivada do que a nossa. E aquilo nos incomodando. Até que o Brasil fez o primeiro gol, e para implicar com os croatas, nós gritamos: “Sérvia!”. Nossa, foi impressionante, porque teve um croata que largou tudo e veio furioso pra cima de nós. Logo chegou o pessoal do “deixa disso” tentando acalmar o cara, e falamos “é que nem pra nós, entre Brasil e Argentina”, e o croata respondeu: “não, tu não entende, porque eu perdi a minha família na guerra contra a Sérvia, entraram na minha casa e mataram todos, meus pais, irmãos, na minha frente. Tu não sabe o que isso significa para nós”. E realmente a gente não sabe. A coisa, pra eles, é muito mais pesada e séria. E é uma discussão que surgiu a partir do futebol, e é o que a gente quer provocar com o filme.
JM. Todas as nossas entrevistas começavam falando sobre futebol. Eram eles, os entrevistados, que invariavelmente passavam a falar de política, de religião. Não era forçado. Sempre que a gente tentou direcionar para um assunto, nos demos mal.
Como foi para quatro brasileiros realizarem um filme em Israel?
JCA. Foi muito fácil, mais do que pensávamos. Bastava vestir a camiseta da Seleção Brasileira e toda as portas se abriam.
JM. O jogador de futebol, por exemplo, cujo depoimento é super importante no filme, ele a gente só encontrou por causa da camiseta da Seleção Brasileira! A gente tava caminhando, no meio da rua, com a camiseta, e um cara veio nos cumprimentar, puxar assunto. Daí falamos quem éramos e o que fazíamos lá, e o cara esse era radialista e conhecia o jogador. Ele que nos indicou e nos levou até ele. Daí gravamos a entrevista sem grandes pretensões. Depois é que descobrimos quem na verdade ele era e a importância dele. Os outros entrevistados é que nos esclareceram. Tipo, a gente tinha entrevistado o Pelé deles! Teve gente que não acreditava quando falávamos dessa entrevista, só foram acreditar agora, vendo o filme pronto!
Como foi a logística de produção do documentário? Em muitos momentos vocês chegaram a se dividir?
AH. No começo a gente trabalhou muito junto, durante as classificações. Mas depois tivemos que nos dividir. No entanto, somente na final o nosso objetivo era capturar reações diferentes em relação ao resultado de um mesmo jogo. De resto, sempre que a gente se divida era porque era preciso entrevistar mais pessoas num mesmo período, que foi muito curto. Nós trabalhamos com duas câmeras, então foi possível formar duas equipes, e cada um ia para um lado.
Como foi dirigir um filme a oito mãos?
JCA. Olha, é claro que teve polêmicas, mas no todo foi muito tranquilo.
LJ. A direção é dos quatro, mas o roteiro, que foi feito depois das entrevistas já gravadas, quem fez a versão final fui eu e o Arturo, e a montagem ficou só comigo. Todo mundo podia opinar sobre o que era apresentado, mas na sala de edição estava somente eu. E se dissesse: “isso não tem como”, os outros respeitavam. Mas a gente conversava muito, durante todo o processo.
AH. A ideia geral do filme, a questão das bandeiras, isso estava muito acertado entre todos nós. Então a gente sabia muito bem o que queria do filme. Não tivemos problemas.
O filme possui uma mensagem fechada, quer passar uma ideia única, ou é somente o início de uma discussão?
AH. A proposta é uma, mas cada um, mesmo entre nós quatro, tem a sua opinião.
JM. O grande barato desse filme é que ele é muito humano. Nós fugimos destas discussões muito polarizadas. O que a gente buscou foi mostrar como estes povos vivem no dia a dia e como se relacionam – ou não se relacionam – entre si.
JCA. A impressão que tive é que todos os lados, mesmo não se conhecendo entre si, possuem um discurso muito parecido entre si. O que querem é muito similar ao que todo mundo almeja: segurança, liberdade. Querem ter paz, conforto, tranquilidade. O que atrapalha é a questão política. A diferença conosco é que se um brasileiro fala mal do governo, se critica a Dilma, por exemplo, faz isso porque quer o melhor para o Brasil. Lá, se um judeu critica o governo de Israel, é considerado inimigo do país! As pessoas lá precisam ter cuidado ao se manifestarem, ao emitirem suas opiniões. Às vezes o que querem é algo muito simples, como ir à praia – e nem isso conseguem. Quando a gente vai falar com o povo, com o cidadão do dia a dia, a situação muda de figura.
JM. É muito curioso, porque nem eles se conhecem entre si. Os judeus não sabem como os palestinos vivem, e nem vice-versa. Eles estão a 30 km de distância uns dos outros, a 5 minutos de carro em alguns pontos, e não sabe nem como é o dinheiro que cada um utiliza! É outro mundo!
JCA. Nos dois lados, entre judeus e entre palestinos, fomos ver os jogos em bares, junto à população, e o mesmo aconteceu: em minutos já estava todo mundo junto, torcendo e comentando. Como no Brasil. Mas isso até certo ponto. Numa ocasião, pra se ter ideia, estávamos conversando sobre o filme até que chegou um jovem judeu, que tinha saído do exército há pouco, e enquanto o jogo rolava na televisão ele me disse: “eu já matei dois palestinos, olha aqui no meu celular as fotos”. É um choque de realidade! Eu não sei se era verdade ou não, mas aquilo me acordou, é algo que me fez colocar os pés no chão e me dar conta de que estávamos num lugar muito diferente.
O acabamento estético do filme é muito bonito. Mesmo com duas equipes, vocês filmando em lugares diferentes, com equipamentos distintos, o resultado é bastante uniforme. Como foi alcançar esse efeito?
JM. Inicialmente a gente até queria fazer um filme com um visual mais saturado. Mas ao chegar lá e perceber que as cores eram muito bonitas, fomos aos poucos mudando de opinião. Fomos puxando as cores. Na parte israelense usamos mais o azul, e na palestina abusávamos das outras cores, evitando propositalmente o azul. Teve um momento em particular, numa manifestação, que a gente se deu conta que era uma quebra, meio que fora do filme, foi muito tenso. Daí a gente sentiu a necessidade de dar um tom diferente, e por isso que apenas ali é tudo saturado, a trilha é mais pesada, com uma bateria. Usamos todas as quebras possíveis para pontuar bastante.
Como está sendo o lançamento do filme?
AH. Já passamos pelo festival de Florianópolis, pela Mostra de SP, no Rio de Janeiro… Estamos fazendo o circuito dos festivais. A estreia nacional, pra valer em circuito comercial, está sendo agora, em Porto Alegre! Depois, na semana que vem, vamos para Erechim, no interior do RS, participar de um debate na universidade de lá. É uma produção independente, vai aos poucos. Não teve como ser diferente. Mas tá bacana.
Filmes esportivos, em geral, não funcionam junto ao público no Brasil. Vocês esperam superar mais essa barreira?
JCA. Eu acho que o próprio cenário está mudando. Nesta mesma semana estamos presenciando a estreia nacional de um documentário esportivo, que está sendo lançado em mais de 100 salas em todo o país, que é o Anderson Silva: Como Água. Isso é algo completamente inédito! Depois, no final do mês, tem o lançamento do Heleno, com o Rodrigo Santoro. Acho que isso tudo tem a ver com a proximidade das Olimpíadas e da Copa do Mundo aqui no Brasil, e cada vez mais se falará sobre esportes por aqui, tanto no cinema como na literatura, na música, no teatro. Tendo boas histórias, é claro que é válido! Isso sem falar naqueles documentários sobre conquistas dos times de futebol, que teve do Internacional, do Grêmio, do São Paulo, do Bahia, do Corinthians… todos com grande retorno de público!
AH. Mas o Sobre Futebol e Barreiras não se encaixa neste filão. Não é um filme esportivo. Talvez a única aproximação que se poderia fazer é quando o futebol possui uma densidade dramática, quando consegue provocar outros discursos e reações. Isso é o que buscamos com esse filme. Não é um documentário sobre futebol. O nosso filme é mais sobre o conflito do que sobre o esporte.
LJ. Teve quem pensasse que o nosso filme seria sobre “como o futebol une as pessoas”, e não é por aí. Acho que o futebol mais explicita as diferenças do que acaba com elas. E foi isso que fomos buscar.
Agora com o filme está pronto, entrando em cartaz, nas primeiras exibições. O que vocês estão achando das reações do público?
JM. Eu acho que está indo super bem. Até esperava mais polêmica, te confesso. Dos dois lados, sabe?
JCA. A recepção está sendo ótima, principalmente de quem é de fora, quem não está diretamente ligado aos assuntos que estamos discutindo e consegue ter uma visão mais imparcial. Algumas pessoas, quando estão muito envolvidas com um lado ou outro, de repente não gostam disso ou daquilo. Já aconteceu. Mas são casos específicos.
AH. Tem duas atitudes de quem é muito ligado: ou não gosta e não quer nem ver a nossa cara, ou se apaixona. Já vimos reações de pessoas que choraram, emocionadas. Num debate com a juventude judaica, em São Paulo, teve um casal de jovens que veio nos agradecer, dizendo que era algo que eles “precisavam ver”. É aquela coisa, o filme é o início de uma conversa. Ele não fecha nada, é aberto. Para provocar opiniões e ideias.
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