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Sócrates :: Entrevista exclusiva com Alex Moratto

Publicado por
Bruno Carmelo

O drama brasileiro Sócrates traçou um caminho muito especial no circuito cinematográfico. Mesmo contando com uma produção limitada e um elenco pouco conhecido até então (hoje Christian Malheiros brilha na série Sintonia, da Netflix), a produção despertou a atenção de mais de 15 festivais internacionais, especialmente a premiação do Independent Spirit Awards, onde o diretor Alex Moratto venceu o prêmio “Someone to Watch” (espécie de troféu revelação) enquanto Malheiros foi indicado ao prêmio de melhor ator.

O projeto traz a história de um garoto menor de idade, morador da periferia de Santos. Quando a mãe morre, ele se vê sozinho pela cidade, em busca desesperada por comida, trabalho e afeto – além dos recursos necessários para sepultar a mãe propriamente. Este garoto negro e homossexual ainda descobre os sentimentos por um trabalhador da construção civil (Tales Ordakji), que recusa suas investidas. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta sobre o belo filme, que chega aos cinemas dia 26 de setembro (leia a nossa crítica):

 

Antes mesmo de conhecermos Sócrates, presenciamos a cena da morte da mãe. De onde veio esta escolha tão brutal quanto silenciosa?
Sempre quis que começasse com a morte da mãe imediatamente, para jogar o espectador dentro do filme de forma intensa e abrupta. Isso se justifica porque a morte também é intensa e abrupta para o protagonista. Deste modo, nós conhecemos Sócrates aos poucos, no decorrer da história. Sempre gosto quando o filme me pega assim, já dentro da ação, e só então conhecemos o mundo do personagem através da jornada.
Sobre a questão do silêncio, na verdade nós até fazemos uso frequente de trilha sonora, mas ela aparece de maneira sutil e pontual. O Felipe Puperi e o Tiago Abrahão fizeram um trabalho incrível de trilha. Eles são dois compositores gaúchos, e sempre gostei da instrumentação sutil que costumam fazer. Assim, ao invés de incluir a trilha em cenas de grande impacto emocional, a música aparece em momentos sutis, para abrir a dor que ele está sentindo, sem reforçar a dor evidente. A gente nem percebe que ela está ali, o que, para mim, constitui o melhor elogio.

Você adota uma câmera sempre colada ao rosto do personagem. Como nasceu essa decisão, e que efeito ela produz no retrato dramático do garoto?
A gente queria que a câmera sempre estivesse seguindo ele, em muitos momentos no rosto dele, para colocar o espectador na perspectiva de mundo do personagem. Trabalhamos isso no desenho de som, inclusive. Essa foi uma linguagem visual e sonora muito pensada com a equipe. Foi muito importante para mim porque queria que o Sócrates fosse uma âncora para a câmera, sempre puxando a imagem e determinando uma espécie de coreografia, como um balé virtual. Uma das razões pelas quais o João Gabriel de Queiroz foi a pessoa ideal para fazer esse filme foi a experiência dele com balé. Ele coloca a câmera muito perto do corpo, e cada movimento parecia uma dança moderna com a câmera.
O mais importante para mim, com esta escolha, era não glorificar o que ele estava vivendo, não transformar a vida dele em algo fetichizado. Eu somente queria salientar a resiliência de Sócrates, a força para superar a situação, para encontrar emprego, para não cair nas drogas. Se você reparar bem, ele não assalta ninguém, não vende drogas. Eu fazia questão que fosse assim: a gente quer contar uma história respeitosa sobre as milhares de pessoas que passam por essa situação todos os dias no Brasil e no mundo inteiro.

 

De que maneira escolheu Christian Malheiros, e como trabalharam todas as lacunas da história – o passado com a mãe, a descoberta da homossexualidade?
O Christian nasceu e foi criado num bairro bem próximo de onde filmamos. Ele conseguiu trazer algo muito próximo àquela realidade. Além disso, o filme foi co-roteirizado por uma jovem de 18 anos, que também foi nascida e criada numa situação periférica. Isso trouxe uma verdade muito importante para mim. Essa vida precisava estar presente não apenas na história, mas também na produção, por trás das telas.
Sobre as lacunas, deixamos tantas informações em aberto porque a gente queria que cada espectador colocasse sua própria história no filme, do mesmo modo que a narrativa termina sem uma conclusão fechada. O tipo de cinema que me interessa é aquele em que o espectador pode colocar um pouco de si no filme. Cada um tem uma opinião, e eu gosto disso. A leitura do filme depende do que funciona para cada pessoa.

De que maneira a premiação no Independent Spirit Awards contribuiu à recepção do filme, especialmente nesta época tão difícil para a produção e distribuição do cinema nacional?
A imprensa internacional e os festivais destacaram especialmente o fato de se tratar de uma história muito pessoal para mim, enquanto realizador. Sentiram e perceberam que era algo íntimo, que tinha me marcado. As críticas de fora sublinharam sobretudo a forma como o longa-metragem foi produzido. Mas este não é um filme sobre mim, e sim sobre pessoas que raramente têm a oportunidade de serem representadas no cinema. O filme é bastante específico na localidade, porém os sentimentos são universais. Por isso, ele conseguiu ser tão bem recebido lá fora também, acredito eu.
Sobre a situação atual do cinema brasileiro, a gente tem que procurar acrescentar meios de patrocínio, porque o cinema depende disso. Temos que defender a qualquer custo a liberdade de expressão e o controle criativo. Pela temática da homossexualidade, por exemplo, fomos muito transparentes com toda a equipe na fase de produção. Sempre dissemos que se tratava de um menino gay, e a vivência dele após a perda da mãe. Se algum ator não quisesse participar dos testes por causa disso, teria o direito de não fazer, é claro, mas a maioria estava a favor. Em algum momento, uma pessoa da equipe se sentiu ameaçada por participar de um projeto com esta temática, mas fizemos o possível para sermos transparentes e proteger a nossa equipe. Fiquei surpreso, inclusive, porque algumas pessoas que eu pensei que não topariam fazer testes de modo algum acabaram aceitando, enquanto outras para quem acreditei que seria tranquilo, não aceitaram.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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