Sofá é uma comédia feita de estranhezas. Não é nada comum ver Ingrid Guimarães no papel de uma moradora de rua, catando objetos num lixão, ou Chay Suede como um pirata caolho que rouba barcos na Baía de Guanabara. A trama se desenvolve a partir de um objeto pescado pela dupla – no caso, o sofá de Joana (Ingrid Guimarães), uma professora cuja casa foi demolida pelo governo Eduardo Paes para a construção da Cidade Olímpica, no Rio de Janeiro.
O diretor Bruno Safadi encontrou uma maneira muito singular de discutir política, não apenas pelo absurdo da situação, mas pelas imagens multicoloridas, em tela quadrada, com direito a cenas de ponta-cabeça e diálogos repetidos. Na plateia da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a plateia ria meio envergonhada, sem saber ao certo quando se divertir com esta paródia de uma tragédia. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o projeto:
Sofá se define como “paródia tropical”. O que o termo significa para você?
Bom, é uma paródia evidente, mas inicialmente eu pensava em uma paródia modernista, com um olhar bidimensional, distanciado do objeto, mas se referindo a ele. Depois, avancei nessa ideia pelo conceito do tropicalismo, no sentido de ter um olhar regionalizado, ou seja, o modernismo regionalizado numa tradição brasileira, que atravessa o concretismo e chega ao tropicalismo. Essa trajetória me influencia desde que comecei a fazer cinema. Desde Oswald de Andrade e dos irmãos Campos, há um cinema paralelo à ideia tropicalista dos anos 1960. Isso me parecia ainda mais apropriado do que uma comédia modernista. O moderno nasce com Manet, e no final do século XIX, a pintura estava avançadíssima. Para eles, a ideia de ilusão era completamente estabelecida, e Manet fez o caminho oposto: ao invés da tridimensionalidade, ele traz a bidimensionalidade de volta às pinturas, evidenciando a cor e o traço. Ele ressalta o dispositivo da pintura dentro da pintura, e este gesto forma o moderno. Isso fez sentido para mim na hora de aplicar o termo de um modernismo à brasileira.
O quanto da estética multicolorida vinha de um conceito prévio, e o quanto nasceu na pós-produção?
Já existia, desde a ideia original, a vontade de fazer um filme todo colorido, com as viragens de cinema mudo. Mas a decisão de qual cor entraria em cada cena foi um processo experimental. Precisei tentar entender a função da cor dentro do filme. O que se aproximou de mim foi a ideia da cor enquanto forma simbólica, com uma carga emotiva. Isso é diferente do código do cinema mudo, porque nele as cores estavam associadas a mostrar que era noite, dia ou tarde, por exemplo. No Sofá, percebi que as cores estariam associadas aos personagens, e ao que cada um representaria dentro da trama, com sua carga emocional. Isso surgiu ao longo do processo.
Por que escolheu atores famosos, como Ingrid Guimarães e Chay Suede, para interpretar figuras populares, sem moradia?
Foi uma junção de fatores. Com o Chay, em especial, sempre houve um desejo muito grande de fazer um filme juntos, um projeto autoral. Eles são atores de verdade, e não querem estar restritos a um tipo único de papel. Então havia um desejo deles em fazer um filme do tipo, e havia um desejo meu de criar essa contradição, deslocar atores associados a determinada produção de imagem para colocá-los em outro lugar, buscando entender os limites da aceitação, tanto de um lado quanto do outro. Então tinha o desejo de testar limites, testar incongruências, e trazer dificuldades para o processo, inclusive dificuldades de aceitação. É nessas fricções que pode surgir algo novo e singular.
De que maneira este humor muito específico dialoga com a realidade carioca? Você cita as remoções de casa durante as obras da Cidade Olímpica, cita Eduardo Paes…
A gente aprende muito ao exibir o filme. Percebo que o humor do filme vai constrangendo o espectador. Você percebe que existe um humor muito pesado, que carrega em si o destino de uma tragédia. O filme transita neste contraste entre o humor e o trágico. Essa é a força de qualquer arte: causar emoções no espectador, e manipulá-las. Acredito que o filme seja feliz nessa narrativa: ele tem humor enquanto conta uma história de tragédia. Você articula dois polos dentro do espectador. Fico muito feliz de ver o que ele provoca no público, porque apesar de ser fabular, ele tem uma carga realista muito grande. Esta é uma paródia, mas neste momento do Brasil, se confunde com a realidade. O filme está transitando pelo mundo que vivemos hoje, onde tudo é tão surreal que, visto a uma distância, poderia ser uma paródia, enquanto a paródia poderia ser vista como algo realista. Acabamos sendo bastante sensíveis à própria época, e também à ideia de inatualidade, porque o contemporâneo é inatual também. O inatual é o que sobrevive, o que perpassa as épocas.
Por que desejou que a história fosse comandada por duas figuras míticas: Joana d’Arc e um Faraó?
A Joana d’Arc vem da carga simbólica que traz à ideia do mártir. A personagem é uma mártir: ela doa a própria vida por uma causa. Isso é muito raro de acontecer. Por que mais que se perca uma casa, e que se brigue na justiça, uma hora se aceita o dinheiro ou o terreno, seja onde for. Decidir morar na rua em nome de uma causa é algo raro, e depois visitar o prefeito e se sacrificar pela causa é algo especial. O nome Joana d’Arc vem daí. O Faraó é uma brincadeira do Chay. Ele vem do Espírito Santo, e tem um cantor de rap-funk por lá de quem ele é fã. O Chay quis homenagear o cantor colocando o nome no personagem. Na cena de apresentação, ele canta a música do Faraó. O filme nasceu junto com os atores, eles participaram da criação do roteiro também. A concepção do Faraó, incluindo composição de voz e jeito de caminhar, veio muito do Chay.
Qual é o papel do sofá enquanto personagem?
O sofá, para mim, é um símbolo de pertencimento. É um objeto de afeto, de sobrevivência e de resistência. Ele simboliza a vida dessa mulher, a memória dela. É por isso que ela não abandona o sofá de jeito nenhum. Quando a Joana tem a oportunidade de deixar o sofá para fugir do tiroteio, ela prefere ficar no tiroteio para não deixar o sofá. Ela vai à prefeitura com o sofá. O sofá é ela, a vida dela. É um objeto que simboliza uma vida.
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