Este ano, o 8 1/2 Festa do Cinema Italiano 2021 apresenta ao público onze pré-estreias, além de obras raras no Foco Alice Rohrwacher. Até 27 de junho, as sessões online e gratuitas no site do festival permitem descobrir novas vozes do cinema, muitas delas premiadas nos festivais de Berlim e Veneza, além dos novos trabalhos de veteranos como Gabriel Salvatores, vencedor do Oscar.
Mas como foi feita a seleção? Havia preocupações de representatividade de gênero, diversidade temática e geográfica? De que maneira o cinema de autor pode encontrar um público mais amplo? O Papo de Cinema conversou com Stefano Savio, diretor e curador da Festa do Cinema Italiano, a respeito do processo de seleção neste segundo ano pandêmico:
Quais foram os principais critérios da seleção? Era importante que os filmes se comunicassem com um público amplo?
Tentamos atrair um público amplo para mostrar o cinema de autor. Era importante que a nossa seleção tivesse alta qualidade de filmes, mas ao mesmo tempo, escolhemos títulos que pudessem atingir um público mais vasto do que o nicho dos cinéfilos. A própria maneira como a Festa do Cinema Italiano é divulgada, com seus códigos e linguagem, acena a um público mais abrangente. Ao final, o que resta é a qualidade cinéfila. Tirando alguns poucos filmes da seleção – em especial, uma comédia -, os demais títulos correspondem ao cinema independente. A ideia é capturar o espectador e despertar a curiosidade para mostrar conteúdo de qualidade.
A seleção deste ano tem muitos diretores novos, tanto estreantes quanto novos em idade. Existe a preocupação de retratar a renovação do cinema italiano?
Não sei se foi feito de propósito. Podemos dizer que existem ótimos estreantes na seleção: o Phaim Bhuiyan, de Bangla, o Pietro Castellitto, de Os Predadores, além do Matteo Rovere, que faz praticamente uma estreia com Rômulo e Remo: O Primeiro Rei, porque ele era basicamente um produtor antes disso. Tem os irmãos D’Innocenzo, de Fábulas Sombrias, e o Igort Tuveri, um especialista em quadrinhos, com 5 É o Número Perfeito – esta é a estreia dele na sétima arte. Os únicos veteranos são os Salvatores e o Maresco, provavelmente, e também o Giorgio Diritti. É muito interessante observar por este lado, com certeza.
Você escolheu dois filmes premiados em Berlim, e três exibidos em Veneza. Qual é a importância das grandes premiações neste recorte?
É uma estratégia. Percebo isso por experiência, com a divulgação do festival: no nicho do cinema de autor, os prêmios fazem diferença. Dentro das centenas de milhares de filmes independentes produzidos, um prêmio num festival de nível A (Cannes, Berlim e Veneza) permite maior visibilidade por este público específico. Além da qualidade, escolhemos também filmes com um percurso e uma trajetória de destaque. Prestamos atenção à resposta dos críticos, ao espaço na mídia, aos prêmios recebidos. Tudo isso faz parte do processo de seleção: são elementos que se combinam para, no final, resultarem num título de grande visibilidade. No que diz respeito ao prestígio do festival, termos uma seleção de onze filmes onde quase todos estrearam em grandes festivais. Isso é muito importante. Este é um festival de cinema italiano, mas queremos proporcionar a experiência de um festival de cinema internacional, ou seja, esses filmes poderiam estar na Mostra de São Paulo, no Festival do Rio, entre outros. Não mostramos apenas o cinema italiano, e sim um recorte de obras que têm qualidade suficiente para voarem sozinhas, sem o rótulo de sua nacionalidade.
Era importante ter uma seleção diversa? A Festa se abriu com a obra de uma mulher, e tem o foco Alice Rohrwacher. Existia em paralelo a preocupação de retratar várias partes da Itália?
Nós não forçamos muito a representatividade territorial, nem de gênero. Prefiro apenas retratar o que está acontecendo. Neste momento, como dissemos, existem bons estreantes, além de obras com um olhar feminino forte e uma representação mais abrangente da Itália, do norte ao sul. Essas são qualidades do cinema italiano atual que não precisamos sublinhar: não criamos cotas para cada um desses setores. Simplesmente vemos um filme, tanto enquanto críticos quanto pelo olhar de espectadores, para decidir: “Isso tem qualidade, então entra”. Por acaso, as obras de qualidade são agora feitas por mulheres, são diversas, propostas por novas vozes. Quando acaba a seleção, eu percebo as linhas da curadoria. No início, o raciocínio é mais imediato: qual é um filme forte? Qual deles funciona? Qual é bonito, qual tem qualidade? Depois que estão juntos, percebemos as ligações dentro da seleção. Teve um ano em que, dos dez filmes escolhidos, nove abordavam as relações entre pais e filhos. Não foi de propósito: por acaso, tínhamos nove ótimos filmes com essa temática.
De fato, gostaria de saber se você percebe novos movimentos e temáticas recorrentes na produção italiana contemporânea de modo geral.
A Itália está crescendo, se diversificando, enquanto lida com questões igualmente comuns a outras partes do mundo: a imigração, a diversidade de gênero, o desemprego etc. É interessante ver como o cinema italiano costuma ser “de fantasia”. Não sei se este seria o termo mais adequado, mas faço referência à forma poética, emotiva e fantástica de retratar a realidade que os diretores veem. Mesmo assim, o pano de fundo da produção é a realidade italiana, que está mudando em todos os países. Agora entram em cena obras sobre temáticas não exclusivas à Itália: a imigração em Bangla, a dificuldade de mulheres no mercado de trabalho em Troca Tudo.
Percebemos também um crossover, ou seja, um cruzamento cada vez mais forte entre linguagens e formas artísticas diferentes. 5 É o Número Perfeito vem de uma graphic novel; As Irmãs Macaluso parte de uma das peças teatrais mais importantes dos últimos anos. Por fim, representamos uma Itália produtiva, criativa, repleta de novos atores com olhares não convencionais – vide Fábulas Sombrias. A abordagem dos D’Innocenzo é muito diferente, assim como a de Pietro Castellitto em Os Predadores, trazendo algo bastante subversivo ao que se costuma chamar de comédia italiana. Rômulo e Remo: O Primeiro Rei traz algo inédito: um épico de autor. Nunca tinha visto algo assim. O retrato da formação de Roma poderia ficar próximo de Gladiador (2000), de Ridley Scott, por exemplo, mas este filme vai para o caminho contrário. O Matteo Rovere usa uma estratégia narrativa inusitada, inserindo esta história dentro do cinema de autor. Esta é uma das iniciativas mais importantes da Itália nos últimos anos.
Como decidiu pelo Foco na filmografia de Alice Rohrwacher?
Ela é um dos nomes mais emblemáticos do novo cinema italiano. Junto dos D’Innocenzo e de outros autores italianos dessa geração, ela se destacou por uma linguagem bastante específica. A Alice conseguiu, de maneira muito poética e naïf, representar mundos pessoais com qualidades universais. Em As Maravilhas (2014) e Lazzaro Felice (2018), ela encontra um universo infantil e bucólico. Ela transmite uma variedade única de emoções e estímulos, e agora apresenta em Cannes um novo projeto interessante, uma série de documentários sobre a percepção do futuro, do trabalho e do amor pelas novas gerações italianas. Ela é uma artista muito importante no cinema italiano, e queria promover o trabalho dela.
De que modo vê a percepção dos brasileiros sobre o cinema italiano?
Ainda existem muitos estereótipos, claro – e nada contra. Ainda se pensa muito em A Vida É Bela (1997), Cinema Paradiso (1988), Fellini. Nós também exploramos isso, não podemos negar. Não rejeitamos aquilo que foi tão marcante no nosso cinema, e para o público. Nosso trabalho é criar uma ligação entre a herança deixada nos espectadores mundiais e as obras diferentes. Sinto a falta de algo muito difícil de fazer, que praticamente nenhum país tem conseguido executar, com exceção dos Estados Unidos: a criação de um star system. São estas figuras transversais e reconhecidas de atores e diretores cujo nome já basta para despertar interesse. Tivemos o Nanni Moretti, cujo nome costuma chamar muita atenção. Temos o Toni Servillo, mas não sei o quão transversal ele consegue ser.
Para além de bons filmes, precisamos construir um imaginário do cinema contemporâneo italiano que fique na cabeça das pessoas. É complicado: isso exige uma grande indústria, e uma capacidade simbólica para conseguir exportar um imaginário fílmico. Os Estados Unidos ocupam 95% desse espaço, digamos, e fica difícil competir com eles. Mas o nosso trabalho modesto, com a Festa do Cinema Italiano, é criar uma espécie de continuidade com os atores que promovemos dentro do cinema italiano. Por isso, entre o nosso mini nicho, criamos uma base de referências para o público estrangeiro, que passa a reconhecer Valerio Mastandrea, Valeria Golino e outros atores frequentes no cinema italiano. Precisamos fazer esse trabalho de criar uma ideia generalizada do que é o cinema contemporâneo italiano nesse momento. Pode ser uma comédia, ou talvez um filme de máfia, que sempre tivemos. Dramaturgicamente, a máfia é um tesouro sem fim porque fala de crime e família ao mesmo tempo. Podemos criar 1500 filmes dentro deste mesmo gênero, contanto que sejam bons.
Precisamos de grandes sucessos: mais um A Grande Beleza (2013), mais um A Vida É Bela, e filmes que saem do nicho do cinema independente de autor para chegarem ao grande público. Luca Guadagnino poderia ser este nome, mas ele não faz apenas cinema italiano. Antigamente, o grande cinema italiano era mais uniforme. Dentro do mesmo período, havia o neorrealismo, e todo mundo fazia neorrealismo; depois a comédia italiana, e todos faziam comédia italiana; então veio o grande cinema de gênero, e todos faziam cinema de gênero, com Bava, Argento. Agora, temos muitos autores sós – todos muito interessantes, com obras de alto nível, mas que não criam uma visão clara quando estão em conjunto.
Percebe desafios específicos para fazer a curadoria de um festival online?
Há um lado positivo e um lado negativo: o público já se acostumou aos eventos online, mas ao mesmo tempo, ele também se cansou deste formato. Agora, existe a grande vontade de sair de casa e assistir aos filmes dentro da sala de cinema. Percebo isso porque também gerencio uma plataforma de cinema online em Portugal. Reparamos que a pandemia trouxe enorme interesse do público a princípio, mas agora, se possível e dentro dos protocolos de segurança, eles querem voltar às salas.
Provavelmente, o festival físico e presencial vai voltar a ser o ponto de partida, e depois uma plataforma online poderá expandi-lo. O futuro deve ser híbrido: haverá um público que deseja sair de casa, ir ao cinema, pagar o preço do ingresso e sentar na poltrona da sala de cinema, e um público interessado em assistir a algo em casa. Esperamos que a situação se resolva no próximo ano, e que todos possam voltar para as salas. Devemos ter um festival híbrido, primeiro ocupando o máximo de cidades possível, mas depois, ficando online com outros filmes, ou com uma parte do que foi apresentado fisicamente durante o festival. Neste momento, trazer Alice Rohrwacher, Gabriele Salvatores ou Emma Dante ao Brasil seria caríssimo. Mas foi possível proporcionar encontros virtuais com o público, porque existem ferramentas digitais excelentes. Em contrapartida, todo festival online perde alguma coisa.
Existe uma vantagem: estamos em Portugal agora, e sem sair daqui, podemos proporcionar a todo o Brasil, gratuitamente, filmes muito fortes, enquanto o festival presencial exigiria uma estrutura enorme, e seria muito mais cansativo. Ao mesmo tempo, percebemos que o encontro físico, e o encontro entre filme, espectador e realizadores deve acontecer dentro da sala, especialmente para o tipo de cinema que valorizamos. O digital deve ser um complemento. Queremos dar um momento de prestígio para um filme a nível físico, e depois explorar outros nichos através do online.
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