Argentina de nascimento, direto de Buenos Aires, Ana Katz é, literalmente, uma cidadã do mundo. Atriz, diretora e roteirista com mais de vinte anos de carreira, já foi premiada nos festivais de Havana, Karlovy Vary, Lima, Lleida, Málaga, San Sebastian, Tolouse, Trieste e Sundance. Com Minha Amiga do Parque (2015), que passou há pouco pelos cinemas brasileiros, foi premiada pelos críticos de cinema argentinos, enquanto que com Sueño Florianópolis, atualmente em cartaz no Brasil, filmou pela primeira vez no país, combinando grandes nomes ‘hermanos’ – como a excelente Mercedes Morán – com talentos nacionais, como Marco Ricca e Andréa Beltrão. Aproveitando esse lançamento, a cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, e falou sobre esse projeto mais recente e sobre o seu modo de fazer cinema. Confira!
Olá, Ana. Você é muito conhecida como atriz, mas de fato começaste como realizadora, correto? Em qual das duas atividades você se sente mais completa?
Depende de que idade você começa a contar, na verdade. Comecei a atuar aos sete anos, para ter ideia. Nesse sentido, foi como atriz que veio antes. Mas, na verdade, é uma combinação, e lembro também da escrita, pois é algo muito importante para mim também. Seja atuando ou dirigindo, é importante me concentrar em um tema que me interesse. Quase me esqueço do papel que estou desempenhando naquele momento. Me interessa mais o assunto, a pergunta que me motiva, e tratar de ir atrás da resposta. No caso do Sueño Florianópolis, me pareceu bastante nítido, e não havia um personagem para mim. Mas me interessava o tema do filme. É como se cumprisse funções distintas, mas muito próximas.
As filmagens de Sueño Florianópolis foram no Brasil. Foi sua primeira vez trabalhando aqui? Como se deu essa parceria?
Sim, filmamos em praias de Florianópolis. Não foi minha primeira vez fora da Argentina, pois já filmei França e na Espanha, por exemplo, mas sempre como atriz. Então, foi minha primeira vez de contar, em um filme meu, em um compromisso absoluto em outro país. Foi um processo muito feliz, pois teve momentos de grande cumplicidade. Fazer as filmagens, encontrar as locações – foram cinco viagens à Santa Catarina ao total. Me senti muito bem recebida, tratada com muito carinho e respeito pelos produtores brasileiros. Foi um trabalho de entrega e amizade. Me senti cercada de afetos, que era o que estava, de fato, buscando nessa relação com o Brasil.
Mercedes Morán tem tido um ano ótimo. Neste ano ela está em quatro filmes diferentes. Como foi a escolha dela como protagonista?
Havia trabalhado com ela no meu terceiro filme, Os Marcianos (2011). É uma atriz que adoro. Tem um olhar bem particular, brilhante. É uma cinéfila, sugere coisas do roteiro que são sempre interessantes. Tinha vontade de voltar a trabalhar com ela. Em Sueño Florianópolis, quando terminei o roteiro, ela foi o primeiro nome que me veio à mente. Por sorte, deu certo. E é também uma pessoa muito próxima. Adorou vir ao Brasil, e em estabelecer esse vínculo com o corpo. “O cinema de Ana Katz é muito físico”, como costumava dizer a Andréa Beltrão (risos).
Vamos falar do elenco brasileiro. Você já conhecia o trabalho de Marco Ricca e Andréa Beltrão? Como chegou a esses nomes e como foi dirigi-los?
No caso do Marco, o vi pela primeira vez como protagonista de A Via Láctea (2007), o descobri ali e me pareceu um ator muito sensível, com um sorriso contagioso, com uma melancolia interessante. Desde aquele momento saberia que tinha que trabalhar com ele. A Andréa tem uma potência incrível. É quase hipnotizante. O Caio Horowicz, que fez o Califórnia (2015) e também está no nosso filme, está muito bem, foi maravilhoso. A reunião de todos, na praia, quando estavam juntos, dava para perceber que formavam uma equipe forte, sempre com humor e muita inteligência. Imediatamente me fiquei tranquila. Foi muito divertido todo o processo.
Você também é como muitos argentinos, que costumam passar suas férias de verão em Florianópolis? Por que a escolha desse cenário para o filme?
A ideia central veio de um argumento que escrevi com meu irmão, Daniel Katz. Desde minha infância, com minha família, vínhamos muito ao Brasil. Fazíamos essas viagens de carro até Florianópolis. Desde os anos 1990, esse movimento era intenso. O Brasil esperava por esse turismo, era quase como uma tradição de todos os verões. Foi como uma espécie de negação ao desastre econômico que se anunciava sobre os nossos países. São recordações do que eu e muitos dos meus colegas e vizinhos também viveram, assim como vocês, brasileiros, principalmente do sul do país. Era algo que acontecia de tempos e tempos, e aos poucos foi se modificando. Por isso o meu filme é situado no início dos anos 1990. Queria resgatar um pouco desse espírito.
Sueño Florianópolis fala muito sobre a condição feminina, seja na protagonista, na filha, ou até mesmo nessa brasileira, que é tão resolvida em relação aos homens ao seu redor. O que você queria discutir?
Sueño Florianópolis faz essa pergunta sobre a liberdade. É uma ilusão. Os personagens têm essa coragem de, por um momento, se atrever a se perder. Para as mulheres, é algo novo. A aventura, vinculada ao feminino, sempre esteve vinculada a muita culpa, temor. Não temos respostas, mas perguntas. São pessoas que se querem, mesmo que não sejam mais um casal. Para elas, o importante é descobrir como seguirem juntas, e de uma maneira mais feliz.
A questão feminina também é muito importante no teu longa anterior, Minha Amiga do Parque.
Esse filme surgiu a partir da minha própria experiência como mãe. Veio de uma recordação, quase como uma imagem, das minhas idas ao parque com minha primeira filha, Elena, geralmente no horário do meio-dia, quando encontrava outras pessoas que estavam por lá, numa hora em que a maioria está trabalhando. Num dia de semana, e essa gente fora do ritmo normal de uma sociedade, que nesse momento está em pleno funcionamento. Ali encontrava mães com seus bebês, assim como eu, mas também senhores e senhoras mais velhos, e até excursões de manicômios, o que se repetia com frequência. Olhava para essas pessoas com olhos de aliança, como se estivéssemos fazendo parte de algo especial, que nos deixava de fora do resto tão brutal. Estávamos irmanadas. Foi quando comecei a reconhecer duas coisas que me parecem essenciais nesse mundo, e que muitas vezes não possuem tanto espaço, que é o cuidado das pessoas, neste caso dos filhos, e essa união entre as mulheres. E também entre classes sociais. Não apenas entre as que tem dinheiro e as que estão sendo pagas para estarem ali, cuidando dos filhos dos outros. Creio que a classe média que aparece no meu filme permite que as mulheres possam perceber essa ligação a partir de suas próprias famílias. Me interessava pensar nessa aliança feminina em todos estes aspectos.
Tem se falado muito da presença feminina também atrás das câmeras. Como tem sido para você, que também é atriz, se exercitar como realizadora?
Falta muito, ainda, para que a gente possa chegar a uma situação de igualdade. Mas, sem dúvida, o cenário está mudando, e para melhor. Quando comecei a estudar cinema, havia apenas duas ou três companheiras em todo o curso, e agora, nas universidades de cinema, o espaço está bem mais dividido. Me parece, no entanto, que as diferenças seguem sendo grandes. A posição do diretor é muito relacionada a poder, e a minha postura não é tanto assim, não me identifico com isso. Vejo que meio com indiferença isso, pois o que importa é fazer parte do conjunto e que o trabalho fique pronto da melhor maneira possível.
Você é atriz e diretora. Como é trabalhar nas duas frentes ao mesmo tempo?
Em Minha Amiga do Parque, tive duas colegas maravilhosas – a Julieta Zylberberg e a Maricel Alvarez – e ambas são incríveis. Julieta é uma atriz imensa, uma amiga muito íntima, alguém de muita luz. E a Maricel também, tem uma presença internacional, muito sensível. Elas foram aliadas durante as filmagens, grandes companheiras. Quando atuo e dirijo ao mesmo tempo, também tenho essa oportunidade de estar nas duas frentes, junto ao elenco e também do lado de lá, conferindo o que fazem. É como um jogo. Mas depende de cada projeto. Às vezes é preciso só dirigir, em outros quero apenas atuar. Cada situação é diferente.
Você e o Daniel Hendler foram casados, e formam também uma dupla na tela grande. Você esteve em O Candidato (2016), longa que ele dirigiu, e ele está em Minha Amiga do Parque, sob tua direção. Como se dá essa parceria?
O Candidato foi um filme que gostei muito de ter feito, que possui uma sagacidade particular, que fala desse vínculo, muitas vezes perverso, que existe entre a economia e a política, e quando a linguagem do absurdo toma forma, as coisas adquirem outras proporções, quase como numa comédia de erros. Já no Minha Amiga do Parque, a participação do Daniel é menor, e o personagem nem foi escrito com ele em mente, aliás. Como ator, o admiro muito, mas quando escrevo, dificilmente faço pensando em quem irá interpretar. A ficção te propõe uma combinação de elementos que por si só me ocupam.
Como foi a repercussão de Minha Amiga do Parque em sua carreira nos cinemas e pelos festivais?
Nossa, foi muito boa. Me deixou muito contente. Acho que o último lugar em que o filme foi exibido foi justamente no Brasil, e foi uma ótima oportunidade de me aproximar dos espectadores brasileiros, até por causa dessa conexão com o Sueño Florianópolis. Foi um grande prazer trabalhar aí, e espero que novas oportunidades surgem em breve.
(Entrevista feita ao vivo, em Punta Del Este, Uruguai, e no Rio de Janeiro, Brasil, em dois momentos durante 2018)
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