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Na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o diretor português Rodrigo Areias apresentou nada menos que dois projetos inéditos: uma ficção e um documentário. Surdina (2019), com roteiro escrito por Valter Hugo Mãe, traz a história de um senhor viúvo, morador de uma pequena cidade. A vida dele se transforma quando a falecida esposa é vista passeando de braços dados com outro homem. Enquanto investiga a história, este homem alimenta uma fera secreta em seu jardim…

Hálito Azul (2018), baseado no livro de Raul Brandão, investiga a rotina de uma comunidade de pescadores em Ribeira Quente, onde o modo de vida está ameaçado pela industrialização da pesca. Enquanto observa as relações de trabalho, o filme investiga a poesia do mar e das sereias. O Papo de Cinema conversou com Areias sobre os dois projetos, e aproveitou para discutir o momento frutífero do audiovisual português:

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O diretor Rodrigo Areias. ©Viennale/Roland Ferrigato

Quando apresentou Surdina, você disse que se tratava de um filme muito diferente de tudo o que já tinha feito. Por quê?
Foi um exercício diferente por ter sido escrito por outra pessoa. O texto é do Valter Hugo Mãe, por isso tem muitos diálogos, algo que não tenho muito costume de filmar. Meu interesse também nascia daí: a vontade de experimentar algo diferente. Além disso, embora aborde o meio rural ao qual pertenço, trazia um universo diferente, num texto distinto. Talvez por isso os instantes cômicos venham principalmente dos silêncios, dos instantes de desconforto.

O realismo e o fantástico se encontram de maneira muito especial em Surdina, principalmente através da figura da fera no jardim.
Quando Valter me falou da inserção de um animal nesta história, discutimos muito sobre o que veríamos: se teria uma silhueta ou não. Preferi que nunca se visse nada, porque o som favorece esta construção por si próprio, e assim compreendemos que se trata de uma manifestação psicológica, algo que está dentro dele. No texto, isso era mais difícil de entender. O que mais gosto nessa cena é o fato de parecer o quintal de qualquer casa no centro histórico da cidade, embora tenha sido construído de propósito para o filme. Por isso, é normal haver animais na parte de trás. Costumam ser galinhas ou cães, mas ali temos os pássaros, metáfora de Maria das Dores, e a fera aprisionada, até o momento de libertação de ambos. Nunca enxergo o sobrenatural como algo fantástico em si, apenas uma fantasia interior dele, materializada em imagens.

Valter Hugo Mãe nunca tinha escrito roteiros para cinema antes. Como foi o trabalho com um autor tão acostumado a outra linguagem?
Conheci Valter em 2008, numa sessão de cinema, quando apresentei curtas-metragens meus. Eu tinha lido o primeiro romance dele, “O Remorso de Baltazar Serapião”, e tinha adorado. O Valter gostou muito do filme, e depois nos falamos, quando começamos a pensar em algo em conjunto. Viajamos a Guimarães juntos para conhecer as pessoas da região, aquele local e aquela casa. Os moradores da casa onde filmamos ainda eram vivos na época. Depois ele visitou a família dele, que morava perto dali, assim como a minha. Então ele escreveu o filme, baseado essencialmente nos diálogos, mas com poucas descrições de cena. Fui desenvolvendo este texto aos poucos, que ainda era algo fechado, incluindo momentos musicais que as pessoas não usam mais hoje, mas que me agradam bastante. Adoro a música do filme, que serve de passagem entre as cenas: é um fado contemporâneo, uma guitarra chorando alguma coisa.

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Surdina

O drama realista se encontra com os tipos cômicos das vizinhas fofoqueiras e dos comerciantes. Como concebe este humor tão particular?
Este trabalho com humor consiste em sempre baixar o tom. Às vezes o texto é veloz e faz o tom subir, então eu trabalho os silêncios e a melancolia para equilibrá-lo. Isso é fundamental para que o humor não fuja da linha. Todos os meus filmes têm uma forte parte de comédia, mesmo que às vezes as pessoas não o entendam. Isso depende da cultura local. Em algumas apresentações de filmes em Lisboa, eu dizia no palco “Fiquem à vontade para rir”, e isso deixava os espectadores menos tensos para rirem. Mesmo quando os filmes são políticos ou duros, existe uma necessidade de escape, de leveza. Nem sempre sou feliz no humor em meus filmes, e as pessoas nem sempre o entendem. Mas aqui na Mostra, tem sido mais fácil. Este é o meu sexto filme apresentado na Mostra de São Paulo. Fiquei surpreso com a recepção do público a Surdina, porque fiquei horas conversando com os espectadores no final da sessão. As pessoas saíram emocionadas, o que me deixou muito satisfeito. Depois conversei sobre isso com o Valter. Foi nesta sessão que percebi que temos uma primeira metade cômica, e uma segunda mais dramática.

Tanto em Surdina quanto em Hálito Azul, as cidades onde se passam as histórias são as personagens principais. De onde vem o gosto pelos retratos regionais?
Eu naturalmente não faço filmes com muito roteiro. Gosto de experimentar coisas a partir da ideia de uma narrativa. Costumo ter esta ideia de narrativa para enganar o espectador, para ele acreditar que existe uma história, mas não existe história nenhuma. Tenho a proposta de uma experiência plástica, visual e sonora. Eu coloco as pessoas ali dentro de um enquadramento, e às vezes isso lhes diz alguma coisa, às vezes, não. Até por isso Surdina é diferente dos outros filmes, porque quase todos constituem a procura por um espaço, por um enquadramento, e depois encontro coisas para acontecer. Ao mesmo tempo, o que me interessa fazer em cinema é trabalhar com pessoas. Eu participo de muitos filmes, produzindo não obras, mas as pessoas por trás delas. São pessoas de quem gosto, e que quero ajudar que façam seus filmes. Para mim, esta relação humana é a coisa mais importante do cinema. Por isso, em Surdina e até em Hálito Azul, não há muitos atores, e sim pessoas que de fato moram naqueles espaços, e que merecem o meu respeito, merecem ser transformadas em personagens. Para mim, o pior momento de Hálito Azul foi ter que parar de filmar. Durante dois anos e meio, eu ia o tempo inteiro para aquele local, e depois, parar de filmar foi horrível.

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Surdina

De fato, Hálito Azul deixa a impressão de que você tinha muito material filmado.
Quando faço ficção, filmo muito pouco. Sou preciso no que quero, não faço muitos planos – quando estou filmando, já sei o que vou querer montar. Em Hálito Azul, a proposta era a descoberta, eu nem sabia que filme iria fazer. Tinha uma estrutura de roteiro só para buscar financiamento, mas era tudo mentira. Existia uma ideia de começar de modo bem alicerçado em Raul Brandão, e depois circulando as histórias dos pescadores. Mas o racional se diluía em algo emocional, e mesmo algo ficcional. Eu sentia a necessidade, no final do filme, de explicar algo ao espectador através das cenas do teatro, porque eu trabalhava com dois atores, mas os demais não eram atores. Então aqueles no palco eram personagens, mas o resto eram pessoas reais.

Mesmo assim, você tem bastante ficção em Hálito Azul – até sereias aparecem no filme!
Sim, é a minha personagem feminina, uma observadora que vem do mar, e depois volta para o mar. No fundo, essa liberdade poética tem a ver com a forma misteriosa como aquelas pessoas olham para o mar. Ela é uma figura mitológica, mas nunca sei se estão falando a sério ou não a esse respeito. É estranho: existe uma cena no filme em que o personagem claramente diz que viu sereias, de verdade. Quis construir esta imagem a partir desta conversa. Quando eu ia para o mar e vomitava, dizia que estava chamando sereias. Eles riam da minha cara. Assim fomos criando esta superstição, que não consigo identificar se é algo em que acreditam de fato ou não. O personagem do professor também é muito interessante: ele é um homem cinéfilo, vindo do continente, que vai dar aulas na região e nunca mais volta. Ele não quer mais voltar. Ele passa a dar aulas de teatro na cidade, tudo isso é verdade. Apenas na pós-produção ouvi a frase que filmamos, quando ele diz que sonhava em ser ator. Isso é muito bonito. Na hora, eu estava preocupado com o enquadramento, e deixei os dois conversando, mas depois descobri o conteúdo da conversa. No final, ele acaba sendo ator de um filme, fazendo ele mesmo.

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Hálito Azul

Pela sinopse de Hálito Azul, podemos esperar um documentário etnográfico, mas o filme foge completamente desta abordagem.
A verdade é que o livro do Raul Brandão tem duas camadas: por um lado, ele queria escrever sobre costumes que sabia que desapareciam em breve. Ele acreditava que em cinquenta anos, devido à industrialização da pesca, todas as atividades pescatórias do país iriam desaparecer. Passaram-se cem anos, e a maior parte das atividades acabou de fato, mas demorou um pouco mais do que a previsão dele. Então existe um aspecto muito descritivo no livro, sobre cada tipo de peixe, cada técnica, o anzol, a linha… Por outro lado, existe um forte aspecto poético, com trechos sobre o por do sol, sobre o hálito azul que o acorda todas as manhãs e que o faz querer viver. Tentei fazer a mesma coisa: ter, por um lado, a manutenção da memória, e por outro lado, a linguagem poética como Raul Brandão a escreve. Ele pode gastar trinta, quarenta páginas para falar apenas de pores do sol, e isso é algo absolutamente mágico. É muito difícil para mim filmar como ele escreve, mas eu queria seguir esta linha. Além disso, minha relação com aquelas terras vem do meu avô, de quem herdei um bocadinho de terreno que lá está. A dedicatória do livro do Raul Brandão é “Ao meu avô”, e eu decidi roubar a dedicatória, porque sem meu avô, eu não teria feito esse filme. São questões importantes para mim, a minha perspectiva humana, e o meu respeito por eles. Quando projetei o filme ali, na parede da igreja, com a praça cheia de gente, as pessoas se sentiram muito felizes. Elas também pensaram que seria um documentário etnográfico, e ficaram surpresas quando se viram na tela. Estavam muito emocionadas, e isso era uma vitória, quando sentiram que eu havia respeitado a história delas.

Você tem uma relação muito próxima com a literatura – um filme vem de Raul Brandão, o outro vem de Valter Hugo Mãe. Em especial, você se preocupa em adaptar a forma, não apenas o texto.
Tenho um respeito imenso pela literatura. Acredito que a literatura é muito mais importante que o cinema, e mais importante do que tudo o mundo. A minha única obsessão são os livros. Era isso que eu tentava dizer nos filmes, de forma muito honesta. O mais difícil para era filmar algo que Raul Brandão escreveu. Na essência, a tarefa é impossível. Por isso temos que respeitar, abrir espaço. Eu já estou preparando uma nova adaptação de Raul Brandão, e a verdade é que preciso encontrar o respeito ao que está escrito. Depois, se mudamos algum personagem, se passamos de uma década para outra, pouco importa. Qualquer filme é uma homenagem, de alguma forma.

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Hálito Azul

A 43ª Mostra de São Paulo está repleta de filmes portugueses totalmente diferentes entre si. Como percebe esta safra portuguesa, em termos de temática ou produção?
Houve uma evolução de todo o processo. Hoje temos muito mais filmes de modo geral, por isso temos mais títulos portugueses na Mostra, como reflexo matemático dessa produção. Temos um histórico importante com Manoel de Oliveira e César Monteiro, que são referências transversais importantes a todos nós. Antes produzíamos cerca de doze filmes por ano; hoje são vinte e quatro, ou seja, o dobro. Mesmo assim, já não temos salas para estrear todos esses filmes em Portugal. Com dois filmes locais por mês, eles começam a se canibalizar. Ao mesmo tempo, existe mais liberdade de produção e financiamento. Nossos filmes sempre têm um lado político, porque isso faz parte da nossa cultura, mas esta produção atual traz um aspecto mais leve. A nossa vida passou a ser mais leve: saímos de uma crise econômica, através de valores de partilha e de humanismo. Temos problemas, como todos os países, mas estamos num momento mais leve. Em 2012, fiz um filme muito mais político e agressivo, Estrada de Palha, em época de eleições. No ano passado, mostrei um filme inacabado, Caminhos Magnétykos, porque queríamos contribuir com o debate político e mostrar o que significava votar em alguém como Bolsonaro. O filme foi distribuído em salas agora em Portugal, durante um período de eleições. Tivemos recentemente o nosso primeiro deputado de extrema-direita, o que já é muito. Existem momentos em que o cinema precisa ser mais radical. Em outros momentos, é importante ser leve. É preciso rir para progredir.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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