Grace Passô é o nome mais em alta do cinema brasileiro no momento. Premiada como Melhor Atriz no Festival do Rio logo no seu primeiro trabalho como protagonista, no drama Praça Paris (2017), ela é a grande homenageada da 22a Mostra de Cinema de Tiradentes, que acontece na histórica cidade do interior mineiro de 18 a 26 de janeiro de 2019. E entre os trabalhos que serão exibidos durante a programação, resgatando longas antigos nos quais ela fez pequenas participações – como Elon Não Acredita na Morte (2016) – e outros ainda inéditos – como o média-metragem Vaga Carne (2019), co-dirigido e estrelado por ela – um chama atenção e já pode ser conferido em todo o Brasil: Temporada, de André Novais Oliveira, grande vencedor do 51o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, de onde saiu com cinco candangos – entre eles os de Melhor Filme e Atriz – e a principal estreia nacional dessa semana no circuito comercial. Aproveitando essa oportunidade, nos encontramos com Grace Passô e tivemos uma ótima conversa sobre o novo filme, como tem sido esse processo de descoberta do cinema e também adiantando algo de projetos futuros. Confira!
Quando conversamos pela primeira vez, no lançamento de Praça Paris (2017), você comentou sobre estar ‘descobrindo o cinema’, pois era a tua primeira protagonista. Com o Temporada, portanto, veio a consolidação deste processo, não é mesmo?
O Temporada é um passo a mais nessa minha história com o cinema. Foi uma felicidade muito grande ter feito isso com a Filmes de Plástico e em um projeto em que o espaço por onde ele se passa me é muito familiar. Aquela cidade onde se desenrola o filme é vizinha de onde eu nasci, lá em Belo Horizonte.
Estar perto de casa te deu mais segurança?
Com certeza. Dá uma familiaridade maior, uma intimidade com aquele espaço e com o universo que o André Novais, nosso diretor, imprimiu no filme. Com aquelas paisagens. Pra mim é tudo muito familiar.
Por mais que você já tenha um histórico no teatro, no Temporada você é a protagonista absoluta. Em algum momento chegou a ter receio dessa responsabilidade?
Dá um medo, claro. Ao mesmo tempo, os personagens coadjuvantes, que também possuem espaço na trama, podem ser desenvolvidos com mais calma. Você acaba tendo mais possibilidades de modular, mais equações com o que lidar. É desafiante, mas, ao mesmo tempo, esse espaço maior na trama também me deu mais tempo para descobrir o personagem. Não sei o que é mais difícil, se lidar com um personagem curto, do qual você não sabe nada a respeito, ou ser a protagonista. Claro, são dificuldades diferentes. Afinal, quando você protagoniza o filme, de uma certa forma acaba ditando uma cadência para toda a trama e influenciando os demais. Tem muito sobre os nossos ombros. As coisas se relacionam com você de uma outra forma. Mas não saberia dizer se é o mais difícil, entende? Já enfrentei grandes dificuldades com personagens bem menores, por exemplo. Por ter que extrair coisas complexas em tempos restritos, tanto na filmagem quanto na trama.
Temporada é uma história completamente feminina, mas dirigida por um homem. Como foi trabalhar com o André Novais Oliveira?
Isso foi curioso. Quando o André me chamou para conversar, tinha o roteiro pronto. É uma pessoa de uma escuta muito fina, e desde o início deixou tudo aberto para conversas e opiniões. Sempre me senti à vontade para o caso de debater o quanto essa masculinidade por parte dele e da equipe por trás das câmeras fosse influenciar na história. Esse espaço me foi garantido, sempre com muita troca. Esse é um desafio também da nossa sociedade, o esforço para entender que essa questão está em cada um de nós. A ideia e a noção do feminino está muito ligada a um pensamento que é compartilhado.
Nos longas anteriores, o André Novais trabalhou basicamente em amigos e familiares. Você é a primeira atriz de maior renome a atuar em um projeto dele. Sentiu alguma dificuldade por parte disso?
Ele é absolutamente seguro e sabe muito o que quer, os objetivos em cada cena. E se relaciona com o roteiro que escreveu de uma forma muito tranquila. Como escrevo também, tenho um pouco de noção disso. Parece que o roteiro organiza a vida dele no set. Foi muito natural para todos nós.
Quando você leu o roteiro pela primeira vez, o que lhe chamou a atenção?
Os espaços de solidão dessa mulher. E a busca dela pelo afeto. Isso sempre me despertou interesse. Gostava das situações do trabalho. Afinal, é uma pessoa que ganha a vida entrando na casa dos outros, invadindo essas intimidades, era a chave da personagem. Alguém que, através da profissão, é convidada a conhecer de perto os outros. Pra mim, lembrou o trabalho de atriz. Cada experiência artística é uma tentativa de se aproximar de um lado muito íntimo do espectador, a sua sensibilidade. E no caso da Juliana isso me deixou curiosa desde o início, pois ela se transformava a partir destes olhares.
Ao se dedicar cada vez mais ao cinema, qual a bagagem que traz dessa longa história que você tem com o teatro?
Acho que vem a bagagem inteira. São dois universos completamente diferentes, mas que se complementam. E continuo atuando no teatro. Não estou trocando um pelo outro. Realmente, estou apaixonada por essa janela que o cinema está abrindo para mim, ainda mais por continuar trabalhando com as mesmas ferramentas que venho usando há tanto tempo, porém em um sistema radicalmente diferente. É um outro universo. Tudo que aprendi no teatro continua, segue comigo, principalmente essa relação crítica quanto ao que estou fazendo, o meu olhar artístico. Isso é indissociável.
Temporada é um filme de observação. Essa postura do realizador se reflete na atuação, sempre percorrendo espaços mínimos, atento aos detalhes. No teatro, a conversa é diferente, é mais expansiva, de preencher o ambiente. Como foi mudar essa chave?
Tens toda a razão. Mas posso dizer que foi muito natural. Essas experiências recentes que passei no cinema, de alguma forma, me fizeram entender essa nova abordagem. Era o momento de um determinado tipo de naturalismo. Outras coisas podem acontecer, com o tempo e a minha relação com o cinema, mas os tamanhos da expressão existem porque se relacionam com coisas muito concretas. Um gesto maior no teatro existe porque lá você está mobilizando trezentos corpos, o público inteiro. Você lida com uma afetação física de uma multidão. No caso do cinema, a relação com a câmera e o espaço ficcional que ela reforça é completamente diferente. Por isso a mudança. Os tamanhos são em função disso, dessa necessidade de dizer e fazer algumas coisas acontecerem. Por isso foco nessas funções. Mas é natural.
O que significa o título Temporada?
Pra mim, é um recorte da vida de uma mulher, um período quando acontecem transformações que são decisivas para ela. É um momento dessa personagem no qual ela muda de cidade, de casa, de profissão, suas relações afetivas. É um registro dessas transformações.
O que o Temporada tem a falar sobre o Brasil de hoje?
Acho que fala sobre a gente comum. Isso pode parecer pouco, mas diz muito. Esse termo é usado em abundância, mas, ao mesmo tempo, é difícil de entender. Traz uma luz às pessoas que são reconhecíveis em lugares comuns da vida. Lança um olhar sobre o afeto e, sem dúvida nenhuma, esse sentimento virou um diamante no nosso tempo. Estamos passando por uma violência tão profunda que, quando digo afeto, não falo apenas de carinho ou coisas banais. Mas também da potência que existe em aceitar relacionar-se com o outro. Empatia. A potência da convivência. Acho que às vezes é duro, mas é um modo de viver. Acredito que o Brasil, com a sua história tão violenta, tão injusta, talvez a gente tenha sobrevivido até agora, historicamente falando, por pequenos atos de afeto e desafios de convivência. O filme é isso, pois se preocupa com situações comuns. Não tem nenhum terremoto, nada estoura, nada grande acontece. Ele tenta mirar e extrair com profundidade como pequenos acontecimentos diários da rotina de qualquer pessoa podem modificá-la.
Para encerrarmos, você já está com um novo filme pronto, o No Coração do Mundo, certo? O que pode nos adiantar sobre ele?
No Coração do Mundo tem previsão de estreia para esse ano. Não sei exatamente quando, está em fase de finalização. Mas será logo. Não estou com outros projetos confirmados, no entanto. Tive convites, mas precisei parar um pouco. O Praça Paris e o Temporada me fizeram abandonar um tanto o teatro, e preciso voltar. A minha personagem em No Coração do Mundo também é muito forte. É uma mulher honesta, que trabalha para sustentar sua família, mas está com dificuldades de grana e resolve bolar um roubo em um condomínio de alto luxo. É uma saga sobre esse incidente. Gostei muito de fazer, fiquei tocada por ela.
(Entrevista feita ao vivo em Brasília em setembro de 2018)