Edson Celulari despontou cedo para a fama. Com apenas 22 anos, estreava como protagonista de Asa Branca: Um Sonho Brasileiro (1980), longa de Djalma Limongi Batista que lhe rendeu o candango de Melhor Ator no Festival de Brasília. Vieram outros filmes de sucesso logo em seguida, como Os Vagabundos Trapalhões (1982), que teve quase 5 milhões de espectadores, Inocência (1983), baseado no romance de Visconde de Taunay, e Ópera do Malandro (1986), inspirado no clássico de Chico Buarque. Depois disso, no entanto, ele meio que sumiu das telonas, concentrando-se cada vez mais no seu trabalho nas telenovelas, se tornando um dos maiores galãs do Brasil. A retomada foi só com o épico Diário de um Novo Mundo (2005), de Paulo Nascimento, com quem volta a trabalhar agora no drama Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos, já em cartaz nos cinemas. E foi aproveitando esse mais recente lançamento que fomos conversar com o ator, que falou deste e também de projetos futuros, como sua estreia como diretor. Confira!
Edson, o que mais lhe chamou atenção ao ler o roteiro de Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos pela primeira vez?
O que me encantou no roteiro foi o ponto de vista que o Paulo colocava sobre aquele cego. A gente tem uma imagem, no geral, da pessoa com deficiência visual como alguém que vive no escuro, que precisa de ajuda, que enfrenta dificuldades para encarar o dia a dia. E o Vitório era um cego feliz, bem instalado, resolvido na sua vida. Ele é o rei da pizza do Bixiga, tem sua família, uma filha linda, uma relação ótima com a esposa, o melhor amigo é também seu funcionário. Tudo vai bem com ele. Até com o Corinthians, time pelo qual torce, que tá ganhando no campeonato. Ele usufrui de tudo, vai no estádio, se sente parte daquilo. É um cara que leva uma vida normal. Mas contar a história de um cego feliz não teria muita graça, e como toda dramaturgia precisa de um conflito, esse se apresenta logo, no tempo certo, quando o protagonista precisa tomar uma importante decisão. E foi isso que me encantou.
O Paulo Nascimento disse que para você assumir o Vitório foi preciso passar por um processo de desconstrução. Como foi isso?
Foi quando pensei que esse cego teria que ser o mais essencial possível, e o tema deveria ser tratado com simplicidade para, com isso, se tornar profundo. A gente foi limpando tudo, as distrações, e com isso conseguimos construir esse homem. Ao mesmo tempo, ia me preparando, no Rio de Janeiro, onde moro. Afinal, tive um tempo bom de três meses antes das filmagens para me encontrar. Durante esse período, pude vivenciar a realidade dos cegos, visitei várias pessoas nessas condições, experimentei também ficar vendado. E muita observação, mesmo de longe, percebendo como se movimentam, o equilíbrio do corpo. Enfim, tudo que a gente pode esperar de uma figura como esse arquétipo exige, “o cego”. Resolvida a questão da cegueira, tinha o fato dele ser pizzaiolo. Nunca tinha feito uma pizza na vida, então tive que aprender. Depois, era preciso combinar os dois: como um cego faz uma pizza? Foi divertido. Mas, conquistadas essas etapas, sobrava este cego, este pizzaiolo, nestas condições. Quem era o Vitório?
Imagino que desde o Antonio dos Reis, do Asa Branca: Um Sonho Brasileiro (1980), este seja o teu personagem mais desafiador no cinema, não?
Foi um personagem difícil, com certeza. E isso porque tudo acontece por dentro. Por exemplo, o fato de ter engordado 20 quilos e a desconstrução física. Onde isso se reflete? A minha filha assistiu ao filme e perguntei se ela tinha me achado muito gordinho. Sabe o que ela disse? “Não, ele é muito carismático” (risos). Pra mim, foi a prova que de havíamos conquistado esse desafio que o Paulo havia proposto. Talvez um homem magro fazendo um pizzaiolo cego, ainda mais um ator que já possui uma imagem no inconsciente do público brasileiro, fosse mais difícil. Eu, quando vejo o filme, levo um choque. Tudo bem que tenho as costas largas, mas ao me olhar em cena pareço uma verdadeira porta (risos).
Mais de uma vez já ouvi dizerem que ‘bom restaurante é aquele em que o dono é gordo’.
Exatamente. Por isso encaixava essa transformação. E ao assistir ao filme pela primeira vez, no cinema, fiquei muito orgulhoso da gente, porque fica impresso na tela que o Paulo conseguiu construir nos quatro atores principais uma unidade de interpretação que é muito cinematográfica. Acho que isso é uma conquista de todos nós. E vem de dentro. Os silêncios falam, e também são preenchidos. Tudo foi construído por nós.
Você foi o protagonista de Diário de um Novo Mundo (2005), que foi o primeiro longa do Paulo Nascimento. O que mudou no trabalho com ele de lá pra cá?
Ah, continua muito difícil trabalhar com ele. Principalmente porque ele continua colorado (risos), e isso é complicado de aceitar. Ainda mais pra mim, que sou gremista no sul. Mas, falando sério, acho que nós crescemos. Esse orgulho por esse novo filme passou por aí também. Acho que o Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos é o filme mais maduro do Paulo. E isso que gosto muito do A Oeste do Fim do Mundo (2013), por exemplo. E sou fã também do A Superfície da Sombra (2018), que vai estrear no próximo mês, quase junto com o nosso. É um filme muito interessante, legal mesmo. Mas acho que esse consegue se destacar.
Como o Paulo funciona no set de filmagens?
Em cada filme o Paulo é um profissional diferente. Ele não tem um estilo único. Essa história, por exemplo, veio de um cineasta e roteirista como ele, um homem que cria tramas, inventa através de alguma referência. E vem muito da família dele, que já tem essa tradição. Ele tem o costume de falar que os gaúchos tomam chimarrão porque é quente, ou fazem churrasco porque é ao redor do fogo. São nesses momentos em que as histórias são contadas. Neste filme, aparece muito este fator: os fatos, os silêncios, os mistérios que estão por trás. É um conto sobre pessoas simples. Só que, naquelas circunstâncias, chegam a um conflito dramático que coloca essa pessoa muito bem resolvida diante de uma decisão que tem que tomar por amor, pois uma pessoa que ele ama pede para dividirem o mundo da mesma forma em que ela vê. É um gesto de amor.
Quando falamos o nome de Edson Celulari, a primeira coisa que vem à mente é o galã da televisão. Como é a tua relação com o cinema?
Quero fazer muito cinema ainda. Hoje em dia estamos passando por um momento difícil, de adaptação, com as novas mídias. E o cinema te obriga a sair de casa, escolher o que assistir, e proporciona aquela magia única, da luz apagada, com pipoca ou sem, para acompanhar uma história. O teatro também tem isso, mas o cinema tem ainda a multiplicação, pois é industrial. E isso é fascinante. Aquela fantasia, da projeção e das pessoas na plateia, é importante que siga forte, com bons filmes – e esse é o essencial, que o que for ser projetado tenha qualidade – para que o público continue fascinado por essa linguagem. Isso me comove. Isso que o cinema promove, seja como espectador ou com alguém que faz. E sou alguém que quer fazer mais, inclusive com novas experiências – quero dirigir também. Estamos até pensando em alguma coisa nesse sentido. Acho esse mundo do cinema incrível.
Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos não é um filme fácil. Para começar, não é uma comédia, gênero de maior sucesso atualmente no cinema nacional. Como lidar com isso?
O nosso filme talvez fuja de uma certa tendência, de uma agilidade de cortes ou ideias, que hoje em dia são mais fracionadas. Sabemos disso, é claro. Mas o que fizemos propõe, com simplicidade, uma reflexão sobre essas pessoas, em questões que são particulares delas. Já fizemos sessões para cegos, surdos, e percebemos que todos os tipos de público estão embarcando na nossa história. Estão aprovando. Entenderam esse olhar, e não sentiram problemas na nossa narrativa. É porque estava preenchida. Quero estar perto disso, e cada vez mais.
Além de protagonista, você também assina a produção do Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos. É o seu primeiro trabalho nesse formato no cinema?
Sim. A co-produção significa você apostar numa ideia, e participar do desenvolvimento dela. O Paulo é muito generoso, além de ser meu amigo. Por isso vejo que tem também um pouco de liberdade poética nesse cargo que me instalou. Mas confesso, ver o cinema como produtor me interessa cada vez mais. É uma realidade não só nossa, nacional, mas no mundo todo. Grandes estrelas de Hollywood, por exemplo, participam de todo o processo. Também trazem ideias, brigam, negociam diante da indústria. E mesmo que aqui a gente não tenha um sistema tão estruturado, sei do meu espaço como ator e reconheço que isso pode ajudar num projeto. Abre algumas portas, talvez não todas, mas garante alguma visibilidade. Essa parceria com o Paulo é positiva também neste sentido. Estamos também com outras ideias.
Pois é, uma delas será o seu primeiro projeto como diretor, certo?
Exato. Quero poder dirigir. Mas será algo pequeno. São apenas dois personagens. É a história de um pai e de uma filha, envolvidos pelo resgate de uma relação. Quando os pais se separaram, a menina foi morar com a mãe e o novo marido dela, e isso trouxe uma outra realidade para a garota. Só que esse pai descobre que está com uma doença terminal, e por isso quer retomar essa intimidade com a filha. Eles estavam totalmente afastados, e, num primeiro momento, praticamente se desconhecem. Para se reunirem, ele propõe uma viagem, do Atlântico ao Pacífico, para deixar um legado da visão dele de mundo, dos valores que tem. É uma linda história, criada pelo próprio Paulo, que vai ser o autor do roteiro. Quero também fazer o pai, como ator. É um grande desafio, que ainda estamos tentando viabilizar.
Mas será algo a ser feito ainda neste ano?
Não, só em 2019. Vou estar no elenco da próxima novela das 19h, que vai começar agora e vai até janeiro. Então, só depois disso. Mas é o tempo, também, para levantarmos a produção e afinarmos bem o projeto. Trabalhar bem as versões do roteiro, até chegar a algo que agrade a todos.
Passado esse momento atual, que marca o Vitório deixa com você?
Acho que ainda está em processo. Afinal, somente agora estamos descobrindo com o público. O que me deixou feliz é que o filme, assim como o personagem, resistiu muito à tela grande. É um projeto bastante cinematográfico. São interpretações que merecem ser vistas no cinema. É uma história que cabe bem no formato de longa-metragem. As primeiras sessões que tivemos nos deixaram muito empolgados, pois tivemos a chance de perceber que o público reagiu à mágica que só o cinema proporciona, que precisa resistir e se perpetuar. Escuto que o Teatro vai acabar há muito tempo, e segue cada vez mais forte. Pessoas que viveram antes de mim já ouviam isso. Shakespeare deve ter escutado a mesma coisa. E com o Cinema é igual. O importante é você construir um conteúdo relevante. Essa magia da tela grande não vai acabar nunca. Pode ficar maior ou menor, restrita ou não, mas vai continuar. E esses produtos, depois, seguem para outras janelas. Essa é a realidade.
Essa é uma visão bem de produtor, mesmo.
Pois é justamente o que quero explorar daqui pra frente. Afinal, produzo meus espetáculos de teatro há anos. Mas uma peça é mais simples. O processo, principalmente de exibição e distribuição, no cinema, é muito mais complexo. E é isso que quero me envolver, e acho que já estou aprendendo. Por isso quero estar cada vez mais presente.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em abril de 2018)