Gaúcho de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, Leonardo Machado é um ator que transita com tranquilidade entre os principais realizadores do estado. Desde o início, ainda no final dos anos 1990, quando começou a aparecer em curtas-metragens, até chegar aos longas, com a virada do século, quando começou a ser dirigido por nomes como Carlos Gerbase, Otto Guerra, Beto Souza e Tabajara Ruas, ele também se acostumou a ser chamado por cineastas ‘de fora’ que iam filmar histórias no sul do país, como Fábio Barreto e Jayme Monjardim. Porém, dentre todas estas parcerias, talvez a mais efetiva seja com Paulo Nascimento, que primeiro apostou nele ao convidá-lo para a série Segredo (2005). Depois disso, nunca mais o deixou de lado – a cada novo projeto, Leo é sempre uma das certezas do elenco. E a sintonia entre eles já rendeu bons frutos – como o Kikito que ganhou no Festival de Gramado pelo drama político Em Teu Nome (2009) – ou o recente Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos, que chegou há pouco às telas e no qual ele aparece como um dos protagonistas, ao lado de Edson Celulari e da argentina Soledad Villamil. E uma coisa é certa: os dois não pretendem se separar tão cedo. Aproveitando essa oportunidade, fomos conversar com o ator para descobrir mais sobre esse novo personagem e também sobre o que já estão preparando para o futuro próximo. Confira!
A relação mais forte em Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos é entre o Vitório (Edson Celulari) e o Cleomar, o teu personagem. Há uma leitura possível de um romance gay entre os dois, como se recuperar a visão fosse uma analogia à saída do armário. Vocês chegaram a pensar nessa possibilidade?
Tem uma relação de amor, num modo geral. Acho que vem do encontro destes dois personagens, pois ambos são resistentes às mudanças. Não querem sair dali, da zona de conforto deles. O Vitório, quando descobre a possibilidade de voltar a enxergar, até comenta: “vocês não vão mudar o meu mundo”. O Cleomar tá num lugar onde foi aceito, amado, e também não quer mudar. Ele faz parte daquilo. Então, são duas figuras que estão num lugar que aceitam, que amam, e existe uma relação, realmente, de amor entre eles. Não sei se teria essa conotação sensual, sexual, mas tem uma relação muito próxima, sim, de intimidade.
Desde o início esse filme foi pensado para se passar em São Paulo?
Na verdade a ideia inicial seria em Porto Alegre. Era para ser numa churrascaria, ao invés de uma pizzaria, por exemplo. Só que uma característica da trama é sua atemporalidade, não se fixa a um tempo ou mesmo a um lugar em especial. Então, aos poucos foi se modificando. Até que, com a chegada do Edson, e com o Paulo abrindo o roteiro, a possibilidade de ser em São Paulo surgiu. O Vitório é uma figura paulistana que oferece um outro ‘molho’ à história. Ainda mais por se passar em um bairro emblemático, que é o Bixiga.
Mas você é o personagem que mantém essa raiz gaúcha. Como foi encarar essa responsabilidade?
Uma coisa importante a se destacar é que todos os personagens são imigrantes. A Clarice vem da Argentina, de família estrangeira, judia, que se casa com um italiano. A filha é aquela figura que quer partir para outros voos, conhecer novos lugares. O Cleomar vem da fronteira, do interior do Rio Grande do Sul, e chega naquela capital, uma verdadeira metrópole, e também é aceito. Aquela pizzaria é um espaço de imigrantes – ou migrantes. Pessoas que chegam, ou saem, daquele lugar. E aquele lugar é o Vitório. Ele é o Piccolo Mondo (a pizzaria). A gente pode tratar até como uma metáfora.
Mas de que modo o Cleomar compõe esse cenário?
Quantos personagens invisíveis a gente vê por aí? O Cleomar é mais um desses, dentro de São Paulo. Como tantos outros. Só que é um invisível que teve sorte de ser aceito por aquela família. Para muita gente, a relação dos dois, que é de amor, pode mesmo ser questionada. “Por que dessa forma?”. Afinal, o cara até mora no lugar onde trabalha, e hoje em dia, se você for pensar, isso seria até proibido. Um funcionário que mora no emprego, nos fundos da pizzaria. Mas, para gente, aquilo tem outra conotação. Ele faz parte da família.
Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos foi filmado em São Paulo, mas foi realizado por uma produtora gaúcha. Houve algum cuidado para não regionalizar a história?
Não só é um filme brasileiro, como também latino-americano. Afinal, tem também uma família argentina em cena. São pessoas que foram obrigadas a migrar, por causa da crise econômica do país deles, para construir suas vidas num outro lugar. Eles não necessariamente optaram por São Paulo, por um desejo de morar ali, mas por necessidade. A gente também está contando um pouco dessa mistura. Tem o pai dela, que segue falando em espanhol. Ou a menina, que não gosta dali e quer ir morar nos Estados Unidos. Tem um pouco de tudo.
Este é o quarto ou quinto trabalho teu com o Paulo Nascimento, e logo vocês estarão no ainda inédito A Superfície da Sombra. Como é essa parceria entre vocês?
Nosso primeiro trabalho foi com uma série de televisão exibida apenas em Portugal (Segredo, 2005). Foi ali que tudo começou. Depois veio o Valsa para Bruno Stein (2007), o Em Teu Nome (2009). No A Oeste do Fim do Mundo (2013) eu não estava em cena, mas era produtor. Teve ainda outra série de tevê (Animal, 2014), agora sou coadjuvante e no Superfície serei o protagonista. Só que no Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos quase caí fora, porque o Cacá Diegues, que é produtor associado do filme, tava pensando num outro ator para o papel. E eu, assim que soube disso, cheguei pro Paulo e disse: “a gente trabalha junto há tantos anos, e esse é um projeto grande, com Paris Filmes, Downtown, Globo, tanta gente envolvida, que o melhor a fazer é o seguinte: relaxa!”. Estava envolvido desde o início do projeto, mas pra que arriscar? Então, que chamassem outros atores, experimentasse gente diferente. Da minha parte, seria tranquilo. Só que foi o Paulo que bateu pé: “tu tá louco? É tu que vai fazer!”. E sou assim: se vamos fazer e estamos juntos, então vamos embora! Por isso esse papel foi tão desafiador. Conseguir se modificar, para um ator, é maravilhoso. Poder buscar outros caminhos, outras possibilidades físicas, é muito estimulante.
Além do que comentamos, vocês têm juntos uma nova série para a televisão, não?
Ah, sim. É verdade. Mas é uma série documental. Eu e o Paulo subimos, cada um numa moto, e cruzamos os Estados Unidos. Ele dirigiu, e agora estou montando esse material. Tem que ter muita sintonia, mas às vezes a gente briga também. E aí é que é bom. Essa coisa de trabalhar com amigos tem esse barato, é um tipo de comunicação que é diferente. Dependendo do jeito que o Paulo dá o “corta!” no set, sei se ele gostou ou não da cena. Ele vai dizer que é exagero, mas é bem assim. Esse tipo de troca que existe entre a gente é muito bom. E tem mais, frequentamos um a casa do outro, e conversamos muito sobre os projetos desde o início. Às vezes ele vem com um argumento, pode ser só uma ideia, mas já gera uma conversa.
O que você pode adiantar sobre o A Superfície da Sombra?
O filme vai estrear em 31 de maio. É baseado em um romance homônimo do Tailor Diniz. É um filme que foi rodado na divisa do Brasil com o Uruguai, numa cidade ficcional – e é assim tanto no livro como no filme. Ele tem esse barato de falar um pouco sobre essa questão da fronteira. E não só física, mas também emocional. O filme inteiro é sobre isso, é uma doideira. Mas foi um barato.
É mais fácil trabalhar com quem você já conhece?
Isso de trabalharmos há tanto tempo juntos, e formar um grupo, é quase como uma companhia de teatro. O diálogo de aprofundamento, as possibilidades de experimentar coisas novas. É diferente de fazer um filme pela primeira vez com um diretor que não conheço. Você chega na sua, tentando fazer o melhor, acrescentando artisticamente, dando algumas ideias. Mas é outra viagem. Com o Paulo já digo o que penso, sem rodeios. Às vezes ele me chama de maluco (risos), mas tem outras que funciona. Com o Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos foi um filme que, nas primeiras leituras, os personagens já estavam ali. Porém, quando começamos a ensaiar, coisas novas surgiram. O Paulo é muito aberto para ir agregando. Ele está maduro, como roteirista e também por ser o diretor. E termos esse tipo de diálogo encurta caminhos.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em abril de 2018)
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