Nascido em Tupanciretã, no interior do Rio Grande do Sul, Paulo Nascimento afirma que desde pequeno tinha uma vontade muito grande de contar histórias, algo motivado pelo convívio com os pais e avós durante as férias, na fazenda numa época que nem energia elétrica tinha na região. Ao crescer, foi estudar Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria, e logo após se formar se mudou para Porto Alegre. Hoje mora em São Paulo, mas se considera um homem do mundo – se sente em casa tanto no Brasil como na Argentina ou nos Estados Unidos, lugares onde ainda pretende filmar. Um dos sócios da Accorde Filmes, afirma que só se sente bem ao desenvolver dois ou três projetos ao mesmo tempo, e assume com orgulho não ter um estilo único: tanto que já dirigiu animação e documentário, épico e drama romântico, cinema e televisão. E agora, está de volta às telas com aquele que talvez seja o mais maduro dos seus trabalhos: Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos, estrelado por Edson Celulari e Soledad Villamil. Aproveitando essa oportunidade, fomos conversar com o cineasta, e também para descobrir um pouco mais sobre seus futuros projetos. Confira!
Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos é de uma produtora gaúcha, filmado em São Paulo, e uma das protagonistas é uma atriz argentina. Essa mistura é algo que lhe agrada?
Com certeza. Este filme é reflexo de um momento em que as fronteiras estão cada vez mais difusas. Neste sentido, ao menos, o mundo tá virando uma coisa só. Isso é uma coisa que venho dizendo, hoje em dia um garoto de Santa Maria ou do interior dos Estados Unidos podem ter uma mesma ideia e acabarem trabalhando juntos. As histórias estão no ar. É, de fato, um ‘piccolo mondo’, como acabamos batizando a pizzaria do protagonista. Pois ali, naquele pequeno universo, está o mundo inteiro. E isso se reflete também na história. Esse é um filme que começou falando sobre cegueira e virou outra coisa. Enquanto escrevia o roteiro, foi algo que aos poucos ia percebendo. É sobre a tolerância. Sobre essa coisa que o mundo tá virando de você ter que ser do jeito que o outro pensa. Na verdade, o que acontece em cena é isso: é alguém que tem um mundo da sua forma e um outro que quer mudar aquilo. E por amor, ainda. Para ver a que ponto isso pode chegar.
Dois dos protagonistas do filme, o Edson Celulari e o Leonardo Machado, são alguns dos teus maiores parceiros artísticos. Estes personagens já nasceram com eles em mente ou foi algo que veio depois?
É meio que simultâneo. Com o Edson foi mais ou menos da forma como havíamos feito em nossos trabalhos juntos anteriores. Primeiro, mandei para ele o roteiro para ter uma opinião, para saber o que ele achava da história. Era ainda uma primeira versão, nem estava finalizado. Foi ainda durante a série Animal (2014). Porém, como já tínhamos a Paris Filmes envolvida no processo, não queria chegar impondo nomes. Queria ouvir dos outros parceiros, também. O Léo eu sabia que seria ele o melhor amigo, mas o papel do pizzaiolo estava aberto. Mas não queria que tivessem essa impressão: “olha, vou colocar os meus amigos como protagonistas, ok?”. Foi quando começamos a falar sobre possíveis atores é que o Edson surgiu, e nem foi sugestão minha. Só que daí veio uma consideração: ele teria que se desconstruir, aquela coisa de deixar de lado a postura de galã. Em resumo: me foi dito que ele teria que engordar 20 quilos. Nem sabia como dizer para ele, tanto que, ao falarmos por telefone, só disse: “olha só, preciso conversar contigo”. Daí fui até o Rio de Janeiro, nos encontramos e disse: “tenho uma proposta. Quero que faça o Vitório, mas você precisa engordar”, e tirei o meu da reta, disse que a ideia havia sido dos produtores. Ele ficou quieto, pensou, e olhou pra mim: “vinte quilos? Não pode ser menos? Ok, vamos lá” (risos).
Este é o terceiro ou quarto longa que chega aos cinemas nesse ano com personagens cegos como protagonistas. A que você credita essa confluência?
Bom, primeiro que comecei esse projeto em 2011. Então, ao menos, sei porque me interessei pelo tema. Foi porque a Marilarine Costa, nossa sócia e produtora executiva do filme, é também áudio-descritora. Ela começou, naquela época, um curso em Campinas a respeito. Um dia chegou na produtora e falou sobre cegos que haviam feito a cirurgia de reversão, ou seja, tinham recuperado a visão e posteriormente decidiram voltar a ser cegos, pois não conseguiram se adaptar. Achei isso muito louco, como era possível alguém preferir ser cego do que enxergar? Porém, tenho essa possibilidade na minha profissão de pegar um tema e fazer um mergulho nele, numa grande pesquisa. E foi o que fiz. Com o A Oeste do Fim do Mundo (2013), por exemplo, que me fez estudar muito a questão das Malvinas, fiquei apavorado com tudo que ia descobrindo. Só que com o mundo dos cegos foi o contrário. Comecei a me sentir mal por pensar diferente, ao perceber o quanto eles são bem resolvidos em sua maioria. Não uma pessoa que fica cega aos 30, 40 anos, pois essa é um outro drama. Mas aquele que é assim de nascença, ou desde muito novo, eles, assim como os surdos, acham que é a gente que tem problemas. “Como deve ser horrível esse monte de informações ao mesmo tempo?”, sabe?
O filme nasce, então, a partir dessa questão da deficiência visual…
Sim, mas como te disse, logo me dei conta de que não seria apenas sobre a cegueira. A questão era sobre a mulher dele, que o ama, os dois sempre se deram bem, e de uma hora para outra ela começa a querer que ele mude. Por quê isso? Só que, nos quatro ou cinco anos seguintes, o Brasil foi se transformando em uma coisa surreal por causa das redes sociais. Para ter uma ideia, nem tenho perfil no Facebook. Mas sei de amigos que brigaram por causa de posts ou comentários. Campanha política, futebol, até religião, é uma loucura: tudo se resume a “eu penso de um jeito, e você deve pensar igual”. Nesse novo cenário, o filme ganhou uma dimensão maior. Agora, sobre estes outros longas mais recentes, que também falam da cegueira, confesso que estou tão mergulhado no que ando fazendo que não os assisti. Mas quando ouvi falar de um que até o nome era parecido (Por Trás dos Seus Olhos, 2016), e é da mesma distribuidora que o nosso, confesso que levei um susto (risos). Seria uma coincidência? Nem sei sobre o que tratam essas histórias, mas se pode haver alguma relação com o nosso, talvez seja isso. Aquilo que o Saramago fez há tanto tempo, com o Ensaio Sobre a Cegueira (2008), está se refletindo agora.
Logo você irá voltar às telas com o A Superfície da Sombra, que está sendo lançado quase ao mesmo tempo. E o protagonista é o Leo Machado, no sétimo trabalho de vocês dois juntos.
Deixa eu contar uma coisa. No Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos, o Cacá Diegues é nosso produtor associado. Ele deu ideias maravilhosas no roteiro, e até nos orientou naquilo que imaginávamos que seria o filme. Tinha em mim muito forte essa dúvida, se seria um filme popular ou não, e ele dizia: “tudo depende de como você filmar”. Quando chegou na escolha do ator para ser o garçom, me disse que achava o Leo muito bonito para o papel. Eu já havia me comprometido com o Leo, então fiquei numa saia justa. O Cacá queria o Gero Camilo para fazer esse personagem, para teres uma ideia. Era naquele tipo de ator que estava pensando. Tive que convencê-lo que o Leo seria uma boa escolha, que seria uma surpresa em cena. O problema foi que contei essa conversa com o Cacá para ele, que levou um susto. “Puxa, e agora, como é que eu faço?”, me disse (risos). Foi um filme de desconstrução total, não só do Edson, mas do Leo também.
É mais fácil trabalhar com quem você já está acostumado?
Depende. O Leo, por exemplo, gosta de discutir um projeto de cada vez. Eu, por outro lado, estou envolvido em sempre quatro, cinco, até seis histórias ao mesmo tempo. Não consigo ficar falando só sobre o mesmo assunto, e ele é mais binário, do sim ou do não. Se as pessoas com quem trabalho rendem artisticamente, e também nessa relação mais próxima, acabo incluindo para o próximo, naturalmente. Já vou instintivamente pensando nelas para novos personagens. A Soledad Villamil, por exemplo, vai estar numa outra série que devo fazer a seguir. É simples assim. Mas também teve gente que não rendeu e, daí, é nunca mais (risos).
O que você pode nos adiantar sobre o A Superfície da Sombra?
Olha, nem dá para acreditar que é do mesmo diretor de Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos. Se alguém achar que foi o mesmo cara que fez os dois filmes, vou ficar decepcionado. É uma outra experiência, uma mudança radical. Acho que cada filme é uma jornada. O Edson, por exemplo, costuma dizer que na família dele não acontecia nada de muito importante. E por isso adora ouvir a minha mãe contando causos. Venho de uma família do interior. Nas férias, íamos para uma fazenda que nem luz elétrica tinha. Meus pais ficavam lendo à noite pela luz de liquinhos. No dia seguinte, começavam a falar sobre aqueles assuntos. Lembro d’O Poderoso Chefão (1972), de tomar café da manhã ouvindo sobre aqueles personagens. Os Corleones eram como se fossem meus parentes. Isso me influenciou muito. Por isso digo que não tenho estilo enquanto cineasta, e assumo isso. Comparar o A Oeste do Fim do Mundo, o Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos e o A Superfície da Sombra é impossível. São três experiências, três sensações diferentes de conviver com uma história. O Superfície é um filme muito doido, quem assiste não sabe se o que se passa é real ou não. Se fosse resumir em uma frase, diria que é um filme sobre as fronteiras. A real e a imaginária. A da vida, a física. De que lado estamos? E a resposta é: isso importa?
Você pode falar que não tem gênero ou estilo. Mas se olharmos para filmes como Diário de um Novo Mundo, Em Teu Nome ou A Oeste do Fim do Mundo, são todos grandiosos, épicos. O Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos é o mais íntimo, me parece. É diferente olhar mais para dentro dos personagens do que para o contexto que os circunda?
É também o meu primeiro filme urbano. Até então, minhas histórias sempre se passavam por diversos lugares, ou no meio de um deserto. Cada narrativa exige sua situação. Ao contrário do que o Cesar Troncoso costuma dizer, que eu giro o globo e escolho um lugar aleatório, para a partir daí pensar no que se passa naquele cenário (risos), dessa vez ela poderia ser em qualquer lugar. Essa pizzaria poderia estar em Vancouver, no interior da França, ou em Porto Alegre. O que menos interessa é onde ele se passa, pois a ação se dá dentro das pessoas. É impressionante o quanto tenho me surpreendido com as reações do público. Até em lugares onde não imaginava. Um ano atrás, conversando com uma professora universitária no Canadá, falando sobre cinema contei a cena em que a Soledad vira para o Edson e pergunta “que nota você me dá?”. E essa mulher, mesmo sem ter visto, começou a chorar. Talvez este episódio tivesse alguma relação com a história pessoal dela, ou algo parecido, mas foi muito comovente. Uma das cenas que mais gosto no filme é quando os dois amigos estão sentados na cama e um pergunta para o outro: “você compreende as mulheres?”. E o outro responde: “eu não, mas gostaria de ter esse problema” (risos). São coisas que foram surgindo, e, como toda criação, nem sempre sabemos de onde vem. Quando começo a escrever, o esforço vai até a metade. Depois, vai sozinho.
Você acabou de dizer que o filme poderia se passar em qualquer lugar. Então, por que situá-lo tão bem no Bixiga, em São Paulo?
Tem lugares no mundo que escolho e, por algum motivo, me sinto em casa. É algo que pode até não ter explicação, mas é um fato. O Bixiga é um deles. San Telmo, em Buenos Aires, e o Brooklyn, em Nova Iorque, são também lugares que gosto de ir. Hoje em dia moro em São Paulo, a 50 minutos de distância caminhando do Bixiga. Mesmo assim, vou até lá, a pé, porque gosto daquela rua, de tomar café por lá. São lugares que mantém uma alma que o resto da cidade não tem. Essa é uma coisa que faz diferença. Essa história poderia tranquilamente acontecer em San Telmo, por exemplo.
A personagem da Soledad não sorri o filme inteiro. Já o do Vitório, só se abre com o Cleomar, e vice-versa. Há uma conexão muito forte entre os dois. É quase um romance. Várias cenas dão a entender isso. Quando a mulher vai para a cama, o marido se vira. No meio da noite, ele vai procurar o amigo no outro quarto. Durante a cirurgia, a filha nem se importa, mas o Cleomar está arrancando os cabelos de preocupação. Você chegou a vislumbrar essa possibilidade de leitura no filme?
Confesso que não. O que acontece é que há uma amizade muito forte entre eles. Com a Soledad, por exemplo, o personagem era ainda mais árido. Ela que, desde o início, me dizia: “preciso defender essa mulher”. Ela achava que eu estava querendo castigar aquela mulher, e essa nunca foi minha intenção. Só que esses dois personagens, a Clarice e o Vitório, estão em uma relação difícil, desgastada. Ela resolve que não aguenta mais seguir daquele jeito, e ele percebe que a vida vai virar uma merda por causa dela. Não tem mais como consertar. E no meio disso, quem está? O melhor amigo. Claro que poderia, sim, ter essa leitura. Um poderia ter se apaixonado pelo outro, por que não? Nessa hora, tudo é possível.
Há tantos indícios em cena, que a questão da cegueira acaba soando quase como uma analogia à saída do armário do protagonista.
Sempre digo, e essa é uma piada recorrente, que quando há algo que parece não ter explicação, “é para os estudantes da USP”. Isso acontece porque teve uma vez que fui, mesmo, na USP, apresentar um filme, e me deram uma definição que era muito mais bonita do que eu próprio havia imaginado. Quase perguntei para eles: “tem certeza que fiz tudo isso que vocês estão dizendo?”. E isso acontece mesmo. Essa leitura, por exemplo, não havia pensado, mas faz sentido, sim. Na verdade, o protagonista está passando por uma crise, e tem um cara ao lado dele que está dando todo o suporte. A mulher o rejeita, a filha está distante, e ele só encontra amparo nesse amigo. Acho que seria perfeitamente razoável, sim, se houvesse esse tipo de relacionamento entre eles.
E sobre a Clarice. Por quê fazê-la tão fechada?
Pois é, tem essa questão dela não sorrir. A Soledad sofreu muito para fazer esse personagem.
Como você conquistou a Soledad Villamil?
Da forma mais simples possível. Queria ela nesse filme, pensava nela desde o começo. Tentei vários caminhos para fazer o convite, e nenhum parecia funcionar. Foi quando falei com um dos produtores do A Oeste do Fim do Mundo, que era de Buenos Aires, que conseguiu enviar o roteiro para ela. Depois dela ter lido, topou marcar um café comigo – só que lá em Buenos Aires! Não tive dúvida: subi na minha moto e fui até lá, saindo de Porto Alegre, para me encontrar com ela. Gosto de fazer essas viagens. Quando me viu, a primeira coisa que pensou é que tivesse alugado uma moto na Argentina. Ao descobrir que tinha ido do Brasil até lá daquele jeito, de cara percebeu com quem estava lidando. Daí ela me olha, e diz: “eu li o roteiro”, e fica muda. Deu um suspiro, e continuou: “o que é essa mulher? Ela não tem tempo pra ela! Essa mulher são as mulheres de hoje!”, e eu sem entender se ela havia gostado ou não (risos). Mas sim, ela queria. E foi assim, após ler o roteiro e no nosso primeiro encontro, com uma hora de conversa ela já estava dentro.
Como você tem percebido a reação do público ao Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos?
Posso falar das pré-estreias que fizemos. E teve muita gente emocionada. Claro, eram pessoas próximas minhas e de toda a equipe, então o retorno é diferente. Sei disso. Achei mais desafiador, e me deixou muito empolgado, a sessão para os jornalistas e a coletiva de imprensa que fizemos. Conversamos com muita gente, até quem eu não conhecia. E foi legal, todo mundo teve a compreensão e haviam embarcado na nossa proposta. Mas não me iludo, sei que é uma dificuldade conquistar o grande público. Nosso filme não é uma comédia, precisa buscar um espaço que vai ser difícil. Mas vamos ver.
Depois do Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos e do A Superfície da Sombra, você já está filmando a Chuteira Preta, uma nova série de televisão. E há outros projetos além desses em vista?
Com certeza. No cinema, imagino que vá fazer mais um longa, neste ou no máximo ano que vem, e depois pretendo parar por um bom tempo. No dia em que acabar as filmagens do Chuteira, já começo a trabalhar no roteiro do primeiro filme que o Edson Celulari vai dirigir, que vai se chamar Atlântico Pacífico. Esse é um projeto interessante, pois é um livro que escrevi e o filme que vamos fazer, e ambos serão lançados juntos – inclusive, já assinei com a editora. Estou com dois projetos assim. E ambos com a mesma editora, a Companhia Nacional, que foi fundada pelo Monteiro Lobato, é a mais antiga do Brasil. Nesse, o Edson vai atuar e dirigir. Em cena são apenas dois personagens, ele e uma outra atriz, de 16 anos. Serei o produtor e roteirista. E o outro é esse último longa que farei por enquanto, que vai se chamar A Fat Girl Diaries. A história se passa nos Estados Unidos e é sobre uma garota gordinha que o pai é ator de stand up comedy. Ela sofre com o bullying dos colegas, e só tem ele como amigo. Este vai ser lançado em livro também. As filmagens serão lá, as externas, mas as internas vão ser em Porto Alegre, no Brasil. O elenco americano virá para cá. Somente dois atores serão brasileiros. E a previsão é que a gente filme em novembro deste ano ou fevereiro de 2019. Ou seja, mais dois filmes, e mais duas séries. Tem bastante coisa.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em abril de 2018)
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