No 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, o grande vencedor da Mostra Geração 14plus, dedicada às obras sobre adolescentes acima de 14 anos, foi o drama suíço The Fam (2021), dirigido por Fred Baillif. A trama apresenta um abrigo para jovens meninas, algumas delas órfãs e outras afastadas da família por motivos de violência doméstica ou abuso sexual. Convivendo como uma família, descobrem novos laços de amizade, exploram sua sexualidade e testam os limites da proximidade com os educadores.
Uma das principais surpresas do filme vem de Claudia Grob, que interpreta Lora, a diretora da instituição. Ela apresenta uma das atuações mais marcantes desta edição da Berlinale, com uma surpresa: Grob não é atriz profissional, e jamais havia atuado antes. Em contrapartida, ela tem vinte anos de trabalho como educadora e assistente social. As garotas da instituição e os educadores da história também correspondem a pessoas que vivem esta realidade diariamente. O Papo de Cinema conversou com Baillif e Grob sobre o projeto tão especial:
Como nasceu o projeto? Vocês já tinham intimidade com os abrigos para jovens?
Fred Baillif: Quando escrevemos um roteiro, assim como um livro, ou você faz pesquisas aprofundadas sobre o tema, ou você já tem bastante conhecimento prévio a respeito. Para mim, foi um pouco dos dois. Tenho uma formação de educador, e trabalhei durante algum tempo em abrigos e no sistema carcerário. Durante os estudos, fiz meu estágio no abrigo onde Claudia foi diretora durante cerca de vinte anos. Quando decidi fazer este filme, queria sobretudo mergulhar num ambiente onde houvesse todos os tipos de conflitos, e onde eu pudesse abordar o tema fundamental dos abusos sexuais e da sexualidade dos menores de idade. Queria estudar a maneira como as instituições lidam com esta questão. Falei então com Claudia, que estava prestes a se aposentar, e aceitou me receber novamente no abrigo. Trabalhamos durante dois anos com os educadores do local e com as jovens que moravam ali para aprender a improvisar e implementar meu método de direção de atores para não-profissionais.
Claudia, você não tinha experiência prévia enquanto atriz. Como a experiência do filme reflete a sua vivência pessoal nestas instituições?
Claudia Grob: Esta foi uma primeiríssima experiência no cinema para mim. Todo o meu percurso foi como educadora e diretora de instituições. Fred trabalhou em um dos abrigos que eu dirigia, e mantivemos contato depois desta época. Conversamos com frequência sobre dilemas que enfrentamos, sobre a essência e os limites do trabalho que fazemos. Tenho grande experiência nesta área, e quando Fred me chamou para interpretar no filme, eu não compreendia exatamente o que aconteceria, mas aceitei pela aventura. Era algo novo para mim, e eu queria experimentar isso.
Os personagens foram escritos especificamente para a vivência de cada ator?
Claudia Grob: Lora é uma personagem. O que me aproxima dela é o fato de sermos ambas diretoras de um abrigo, mas no filme, Lora tem um caminho próprio. Ela vive uma história pessoal que a leva a se comportar de maneira particular com as meninas. Evidentemente, existem traços de mim, porque filmamos com as garotas reais do abrigo, e com os educadores de lá. Nós nos conhecíamos, e tínhamos muita experiência juntos. Então eu busquei elementos da minha vivência, mas precisei acima de tudo entrar na pele de Lora.
Fred Baillif: Como Claudia não é atriz profissional, o método consiste em fazê-la concordar com uma maneira de trabalhar, baseada na confiança. Eu perguntei a Claudia, no início, se ela concordava em descobrir a personagem dela aos poucos, a cada cena que filmávamos. Todos os dias, ela chegava à filmagem sem ter a menor noção do que aconteceria com Lora. Isso produz a força da atuação dela: o fato de descobrir as ações na hora. O fato que Claudia tenha ficado tão intrigada com a personagem a torna intrigante para o público.
Claudia Grob: Foi exatamente assim. Eu não conhecia nada sobre o roteiro do filme. Precisamos ter muita confiança para embarcar neste projeto com os olhos fechados. De fato, eu me lembro de que começamos a filmar numa segunda-feira, e somente na quinta-feira eu comecei a entender que Lora atravessava um momento difícil.
Por que preferia ter atores não profissionais, ao invés de nomes experientes?
Fred Baillif: Porque eu sou incapaz de escrever diálogos! É brincadeira, mas é um pouco verdade. Para começar, eu venho do documentário, e gostei muito de filmes realizados com processos semelhantes, como Entre os Muros da Escola (2008) e os dramas de Mike Leigh. Eu me inspirei nestas referências, e apostei que, se conseguisse estabelecer uma relação de confiança com estas pessoas, seria capaz de produzir milagres. Com o meu primeiro filme, Tapis Rouge (2015), foi assim, mesmo que ele não tivesse um roteiro tão preciso. The Fam tem um roteiro escrito, estruturado, mas com bastante abertura ao processo. Primeiro, o roteiro não tem diálogos, apenas algumas linhas escritas para avançar a intriga. Por exemplo, a jovem que interpreta Justine se chama Charlie Areddy. Ela é a filha do meu operador de câmera, e chegou no projeto na intenção de ser uma figurante, porque precisávamos de mais meninas no abrigo. Ela fez um ateliê de improvisação durante uma semana conosco, e percebemos que ela tinha grande potencial. Decidimos criar algumas cenas com ela, e então percebemos na montagem que o retrato de Justine poderia se integrar à história. Depois montamos como um documentário, preservando a intriga central. Isso valia também para Lora.
A sexualidade dos adolescentes é muito importante no filme. Como avaliam a percepção social deste tema atualmente? Temos evoluído nesta discussão?
Claudia Grob: Sim e não, ou seja, a sociedade evoluiu, mas não o suficiente. Isso é algo que sempre me questionaram: como agir diante das manifestações de sexualidade entre jovens? Acredito que a sexualidade seja um direito de todas as pessoas. Nós, adultos, temos a responsabilidade de ensinar isso aos jovens, para que eles saibam que a sexualidade pode ser algo bonito. A sexualidade ainda representa um dos tabus diante dos quais todos nós enfrentamos dificuldades. Às vezes, é difícil adotar o distanciamento necessário para não projetarmos os nossos medos e traumas nos jovens, e ao mesmo tempo permitir que eles sejam os especialistas de suas próprias vidas. Eles precisam adquirir ferramentas para se protegerem, se posicionarem, se determinarem. Na sociedade em geral, quando ficamos desconfortáveis com estas questões, nos escondemos por trás da lei. Dizemos: “Isso não me diz respeito, não é problema meu”. Existem leis e regras, mas tenho certeza de que as leis não são construídas de maneira a impedir que eduquemos nossos jovens. Não podemos nos esconder atrás delas. Nesse aspecto, ainda temos muito a evoluir.
Fred Baillif: Esse é o ponto de vista de Claudia, esta realmente é ela se expressando. No início do projeto, antes dos ateliês de improvisação, fiz entrevistas individuais com todos, quando me contaram sobre suas vidas. Eu também perguntava sobre os dramas pessoais de cada uma, para poder construir as personagens. O que Claudia acaba de dizer corresponde exatamente ao que ela me disse durante esta entrevista inicial. Eu me baseei nesta fala para construir a história de The Fam. Queria que a personagem de Lora tivesse a oportunidade de expressar este pensamento ao longo do filme. Esta cena magnífica e muito forte, quando ela fala diante do Conselho da Fundação, não tinha uma única linha escrita. Foi totalmente improvisada. Dá para perceber que Claudia tinha um histórico com estas questões, e tinha um discurso a liberar. Foi mágico.
Que precauções tomou para filmar as cenas de intimidade com os jovens?
Fred Baillif: Quando desenvolvemos uma relação de confiança, é muito diferente de ter um ator que se preparou um tempão e decorou o texto. Trabalhamos durante dois anos juntos, e nos conhecíamos bem. O garoto que interpreta o menino tendo relações sexuais com a adolescente é o filho de um dos nossos atores, o único ator profissional. Conversei muito com o garoto antes, e também com Anaïs Uldry, que interpreta Audrey, a garota extremamente sexualizada. Anaïs possui um talento natural de atriz. Cada uma das garotas possui um talento particular, mas tenho certeza de que Anaïs pode ir muito longe dentro da profissão. Quanto à cena de sexo, não precisamos nos preocupar tanto, mas obviamente tivemos cuidado. Sobretudo, não utilizamos nenhum dado comprometedor que viesse da vida real dos atores, em hipótese alguma. Essa era a regra principal.
Eles se tornam uma família, mas onde se traça o limite ético e profissional num abrigo?
Claudia Grob: Esta é uma questão de equilíbrio, sempre bastante frágil. Esta é a diferença entre Lora, a personagem, e minha vida pessoal. Lora está muito presente na vida das adolescentes, de maneira quase excessiva. Afinal, existiam outros educadores para lidar com as meninas. Na vida real, existiria o mesmo carinho, mas esta presença se expressaria de modo diferente. No filme, Lora opta por este comportamento, e acho interessante a maneira como Fred guiou a personagem através do filme. Este é meu ponto de vista: gosto muito da diretora sempre presente, mas ela comete falhas porque se aproxima demais. Como Lora vive um drama pessoal, chega a hora em que ela revela questões íntimas às meninas, utilizando-as para se sentir amada. Ela deveria apenas ir embora, não poderia ter depositado sobre os ombros destas adolescentes um drama que não lhes pertence.
Fred Baillif: Eu discordo de você, Claudia. Faz muito tempo que não faço trabalho social, exatamente por este motivo. Para mim, não existe uma distância profissional, e isso sempre representou um problema para mim. Talvez este seja um problema meu, mas no meu trabalho, não tenho uma distância profissional com as pessoas que trabalham comigo. Somos uma família. Eu aprendi isso quando jogava basquete profissionalmente: a partir do momento em que somos um grupo e fazemos algo juntos, em busca do mesmo objetivo, nós nos tornamos uma família. Esta é minha visão de vida. Por isso foi tão difícil ser educador e manter uma distância profissional com os jovens. O que eu quis contar no filme é que, no fim, Lora não se excede em suas confissões. Ela apenas percebe que esta distância profissional é nociva ao trabalho e à relação com os jovens.
Claudia Grob: Entendo, mas é por isso que digo que se trata de uma questão delicada. Para mim, o que Lora faz no filme corresponde a uma necessidade desta personagem. Ela decide ser honesta com elas e dizer a verdade. Concordo até este ponto. Mas depois disso, assim como na vida real, quando um pai “utiliza” seu filho para se sentir melhor, existe um problema. Nós discordamos, mas não tem problema. Para mim, Lora vai longe demais.
Fred Baillif: Eu ainda discordo.
A montagem é complexa, porque cruza uma dezena de histórias. As garotas chegaram a ver as imagens delas durante o processo?
Fred Baillif: As meninas não foram consultadas, porque já era bastante difícil montar deste jeito. Não tinha como: foram seis meses de montagem, com dois montadores diferentes. Além disso, teve a Covid: eu comecei a montar o filme no instante em que a pandemia começava. O filme estava bom, mas num formato linear. Fiz testes com o público, que gostou daquela versão, mas eu tinha certeza de que poderia fazer melhor. O roteiro não era linear, e já sugeria o cruzamento das histórias, sempre voltando à cena da briga inicial. Decidi recomeçar do zero, e remontar o filme em quatro meses. Como estávamos todos confinados, eu me permiti experimentar novas estruturas narrativas. Às vezes, eu acordava de madrugada e ia até o estúdio para fazer testes, porque uma ideia surgia durante a noite. Por causa da Covid, eu não podia fazer projeções para todas as meninas, mas elas vinham de vez em quando, de duas em duas, para ver assistir em casa. As reações foram bem diferentes.
Ver a si mesmo na tela deve ser especial, principalmente para atores não profissionais.
Claudia Grob: Com certeza. Quando vi uma das últimas versões, faltando correções mínimas para terminar, tive sentimentos ambíguos dentro de mim. Foi uma luta interna. Pode parecer besteira, mas em alguns momentos, eu quase disse ao Fred: “Mas você não pode deixar esta cena no filme, porque na vida real, não aconteceria assim”. Depois, eu disse a mim mesma: “Claudia, cala a boca. É um filme”. Ainda bem que Fred não nos consultou durante a montagem. Neste momento eu percebi que este era um mundo particular, uma profissão com conhecimentos que eu não tenho. Na primeira vez que vi o resultado, só conseguia prestar atenção às minhas rugas, ao meu cabelo, e achava minha imagem horrível. Não conseguia ver a história de fato. Na segunda ou terceira vez, comecei a enxergar o filme enquanto espectadora.
Fred Baillif: Ao mesmo tempo, precisamos dizer a Claudia o quanto ela é bela! Algumas das meninas têm uma relação conflituosa com a própria imagem, e acredito que elas precisariam neste momento de uma projeção pública. Somente assim elas vão conseguir compreender a amplitude da coisa. Elas ainda não conseguem perceber a dimensão deste trabalho – pelo menos, não todas elas.
Claudia Grob: Eu também não! Estou fazendo esta entrevista com você, mas este é um mundo desconhecido para nós. Estamos surpresas, um pouco deslumbradas. Ainda não consigo compreender exatamente tudo o que este trabalho implica. Vamos ficar felizes quando o filme passar no cinema e puder se comunicar com o público.
As sessões online da Berlinale devem ter sido uma experiência peculiar para vocês.
Fred Baillif: Foi frustrante, na verdade. Faz muitos anos que eu faço filmes, e finalmente meu sonho de exibir uma produção em Berlim se realiza, mas dentro da minha casa! Eu assisti à sessão sentado com os meus pais, no sofá. É simpático, mas não é a mesma coisa. Tenho certeza de que o filme vai passar no Brasil, e espero poder viajar para o Brasil com a Kassia da Costa, nossa atriz brasileira.
Claudia Grob: Conheço a Kassia há muito tempo, e tenho certeza de que, para ela, esse seria um presente magnífico. Quando eu a vejo no filme, tenho certeza de que esse trabalho é algo que ela oferece ao seu país de origem.
Fred Baillif: A última cena que filmamos foi aquela em que Lora revela à personagem Novinha que sua filha se suicidou. Novinha fica surpresa e comovida. Em seguida, organizamos uma festa para comemorar o fim das filmagens. Já tínhamos parado de filmar, então fui conversar com ela. Perguntei: “Kassia, como você se sente agora”? Ela me respondeu: “Eu sinto orgulho de mim mesma”. Claudia disse que, em muitos anos que as duas se conhecem, aquela era a primeira vez que a escutava dizer algo parecido. Foi lindo. Senti que tínhamos plantado algumas sementes. Não se pode salvar vidas fazendo filmes, mas podemos plantar sementes.
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