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Um dos destaques do Fantaspoa 2022, The Smoke Master (2022) é um daqueles filmes que dialogam diretamente com o cinéfilo apaixonado que existe em nós. Claramente inspirado na tradição dos filmes orientais de artes marciais, essa mistura de pastiche e paródia tem como protagonista um jovem inexperiente que precisa aprender lições milenares com um mestre inicialmente relutante para vencer um inimigo que parece invencível. Quem faz o papel desse jovem é o galã Daniel Rocha. E uma das coisas mais peculiares deste longa-metragem que terá a sua première mundial no evento que acontece na capital do Rio Grande do Sul é o fato de que a doutrina a ser aprendida tem como princípio a maconha. Isso mesmo. Os lutadores precisam aprender a se relacionar com essa planta tão criminalizada para depois “se tornarem fumaça”, uma forma de dizer que é preciso adaptar-se à qualquer situação. Para saber um pouco mais sobre o processo de The Smoke Master, conversamos remotamente com a dupla de cineastas Andre Sigwalt e Augusto Soares sobre inspirações, influências e a expectativa de estrear num dos eventos mais importantes da América Latina entre os dedicados ao cinema fantástico.

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De onde surgiu a inspiração para esse filme?
Augusto Soares:
A sementinha é nosso apreço por O Mestre Invencível (1978) – nota da edição: cujo título em inglês é The Drunk Master –, filme antigo do Jackie Chan. Ele fica bebendo e batendo nas pessoas. Aliás, o Drunken Boxing é um estilo que existe na China. O André passou anos lá e pode falar melhor disso. Nós treinávamos baguá na rua, aí um dia vimos o filme e tivemos um clique. Decidimos parar de treinar e começar a fazer um filme (risos).
Andre Sigwalt: Realmente, isso que o Augusto descreve já tem uns sete anos, entre ter a ideia, argumentar, roteirizar e chegar a ter o filme pronto. O estilo sobre o qual o Augusto comentou é super tradicional na China, tem mais ou menos uns 800 anos. Diversos atletas se baseiam nele para construir sua forma de lutar.
Augusto: E o André, munido das noções que ele já tinha de kung fu, criou um estilo para o filme, que é o estilo da fumaça. Inclusive ele pode ser ensinado, treinado e aplicado. Aquilo dá para ser utilizado de verdade.

Gostaria que vocês falassem sobre esse desprendimento da realidade, haja vista a cena inicial numa China ambientada à beira de uma lagoa, sem tantos elementos tipicamente chineses.
Augusto:
Na verdade, quisemos ser realistas durante o filme todo. Tínhamos uma verba pequena e o longa não mostra pessoas voando ou fazendo movimentos impossíveis. E esse início iria ser gravado em Taiwan, com barquinhos no rio e tudo assim. Mas, aí veio a pandemia e fomos obrigados a mudar os planos.
Andre:
Sabemos que a cena inicial é super importante. Viajaríamos somente eu e o Augusto para Taiwan e, a partir de uns contatos de gente de cinema que tenho, montaríamos uma mini produção para criar o prólogo chinês. Parte da lógica de filmagem estava muito colada à lógica de produção que tínhamos. Havia uma série de ideias legais, mas que não cabiam no que podíamos fazer. Sempre rolava esta conversa com o pessoal da produção: “olha, sei que no roteiro pede um caminhão, mas se não der, um fusca funciona; se o fusca não rolar, pode ser uma bike” (risos).
Augusto:
Então, encontramos um lugar legal para fazer a cena de abertura, tiramos umas antenas na pós-produção. Extraímos desse orçamento minúsculo um filme que não parece ter um orçamento minúsculo.
Andre: Ainda pegando como gancho a cena inicial. Optamos por ter vários personagens falando chinês. Mesmo quem não é fluente, fala, às vezes um chinês meio feio, mas não é uma língua inventada. Na cena inicial, há dois personagens falando chinês fluente e um outro personagem que diz suas frases super corretas. Nessa cena há a real homenagem, como se disséssemos nela que acreditamos que o cinema oriental de um período específico tenha o seu valor. Aí quando veio para os anos 2000, tá liberado, aí é nóis (risos). Aliás, isso de várias línguas sendo faladas é uma homenagem ao Ghost Dog (1998), do Jim Jarmusch, especialmente uma cena em que o protagonista fala em inglês com alguém que fala francês e eles interagem com outra pessoa que responde em português. É maravilhoso.

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E vocês enfatizam as cenas de luta, não fracionando elas excessivamente na montagem, realçando os movimentos. Isso era uma das essências da concepção visual?
Augusto:
Isso foi intencional. Ficamos dois anos assistindo a diversos filmes antigos de kung fu. Absorvemos muita coisa, inclusive isso de mostrar verdadeiramente os atores lutando. De cara, queríamos isso. Fomos atrás dessa linha. E o André, que fez a câmera e ficava lá “socando” as pessoas com a câmera, pode falar melhor sobre isso.
André: As coreografias poderiam ser o nosso grande calcanhar de Aquiles, mas acabaram sendo um trunfo. Estávamos super preocupados com isso. Não temos histórico de filme de ação no Brasil, de kung fu ainda menos. O período em que ficamos estudando facilitou, mas também nos deixou preocupados, pois queríamos caprichar nas lutas. Tivemos um preparo. Muitas pessoas do elenco nunca tinham lutado. Algumas treinaram comigo durante três meses antes do início das filmagens. Participei da maioria das coreografias e chamei alguns amigos de outros estilos para ajudar. Juntamos duas equipes de dublês que foram incríveis, trouxeram veracidade e entusiasmo para o set. Não tínhamos dinheiro para quebrar cenário, uma tradição do filme de kung fu, mas compensávamos com o trabalho dos dublês. Fugimos da lógica hollywoodiana de mostrar as lutas, que é com muito corte rápido e alterações de velocidade. Queríamos que o movimento aparecesse, mesmo entre os membros do elenco que não tinham expertise.
Augusto: E quem apanhava era bom demais, então isso facilitava para os atores que não lutam. Isso foi super legal.

E como se deu a escolha do Daniel Rocha, o ator mais conhecido do elenco?
Andre:
Temos um amigo que é produtor associado do filme, o Rodrigo Magoo, que tinha trabalhado na série Irmãos Freitas (2019-). Ele trabalhou com o Daniel e o elogiou bastante. Fizemos testes com vários atores. Queríamos ter um nomão (sic) no elenco, mas não tínhamos certeza se conseguiríamos. O Magoo insistiu no Daniel. Desde o começo ele foi ótimo e tinha um repertório de kickboxing. É um ótimo ator, super técnico, tranquilo para trabalhar.
Augusto: O Daniel Rocha topou fazer o filme por um valor bem abaixo do mercado porque ele achou a ideia muito interessante, que de alguma forma ajudaria ele a perder aquela aura de bom moço, apesar dele ser o mocinho do nosso filme. O Daniel gravou durante o dia, a noite, com sol, com chuva, e não abriu a boca para reclamar de nada. Ele foi muito ponta firme. E ele foi provavelmente quem teve menos tempo de treinamento por conta da agenda.

E qual a expectativa de vocês para essa première no Fantaspoa, um festival frequentado por um público que certamente detém um repertório sobre os filmes que inspiraram vocês?
Augusto:
Estamos super ansiosos para ver a reação do público junto numa sala de cinema. Queremos descobrir se os espectadores dão risada nos momentos em que nós damos risada, se eles descobrirão todos os easter egg. Estamos super satisfeitos de encerrar o Fantaspoa, de ter esse destaque no festival.
André: Estou com o cu na mão (risos). Ao mesmo tempo, estou super feliz, não vejo a hora de exibir para o público. É a concretização de algo que deu um trabalhão de sete anos. Queremos que o filme seja bastante visto e é demais que essa história comece no Fantaspoa, um evento sui generis. Dá um pouco de medo desse público tão abalizado, mas estamos torcendo para que todos se divirtam. De qualquer maneira, a première vai ser uma noite legal.

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E já existe alguma previsão para a carreira comercial do filme?
Andre:
Fechamos recentemente contrato com uma agência canadense que vai cuidar da representação do filme no exterior. A perspectiva é que o filme circule pelos grandes mercados internacionais em 2022. Aqui no Brasil, inscrevemos o filme em muitos festivais, mas esse cenário está complicado por conta do tsunami de filmes pós-pandemia que postulam vagas em festivais. Além disso, nosso longa está num lugar meio de limbo. Para alguns festivais de gênero a gente não é tão sanguinolento; para um festival tradicional, não temos tanto drama, a questão política não está clara; para os festivais de cinema independente, a gente é visto como se tivesse um bom investimento de grana. Então, ficamos nesse vácuo. Ah, e tem também os festivais canábicos, nos quais a gente vai inscrever o filme. Eles existem. Em geral, esses eventos têm mais documentários, mas tentaremos todos eles.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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