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Em 2018, o diretor Igor Drljača apresentou no Festival Internacional de Cinema de Berlim o documentário The Stone Speakers, a respeito das ruínas e do patrimônio cultural na Bósnia. Em 2021, ele retorna com uma ficção, embora mantenha o interesse pela História de Sarajevo, sua cidade natal. The White Fortress foi apresentado dentro da Mostra Geração, dedicada ao tema da juventude.

Neste projeto, ele apresenta o romance entre dois adolescentes: Faruk (Pavle Čemerikić), garoto pobre que vive de pequenos roubos para sustentar a avó doente, e Mona (Sumeja Dardagan), filha de um político famoso que se opõe ao relacionamento dos dois. Apesar da cidade opressora, eles encontram um lugar onde podem viver seus sentimentos livremente: uma fortaleza branca na parte alta da cidade. Mas este espaço existiria de verdade, ou seria apenas uma ilusão? Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com Drljača:

 

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O cineasta Igor Drljaca

 

Você diria que The White Fortress expande seu interesse pela arquitetura e pelo patrimônio cultural?
Sim. Quando eu faço filmes, o ambiente desempenha um papel fundamental. A maneira como as pessoas respiram o espaço é determinante nas minhas histórias: presto atenção às vidas que ocupam aquele espaço, as guerras e eventos culturais que se passaram ali. Na Bósnia, a História parece nunca ir embora. Ela se torna um viajante permanente, mas eu queria criar novas narrativas dentro deste espaço, apesar de ser muito difícil. Hoje, existem disputas de narrativas e um revisionismo histórico, sobretudo na maneira como os jovens observam o país. Eles possuem uma visão muito diferente. A cidade aparece nesta trama como um terceiro personagem, uma força que representa tanto uma oportunidade quanto uma opressão a eles. Sarajevo possui dois extremos: um aspecto romântico, cheio de sonhos e oportunidades, e também uma tragédia permanente. Mesmo hoje, o país assinou um contrato de guerra que não permite aos habitantes construírem sobre estes espaços que eles precisariam ocupar para crescer. Nestes locais, os extremos se aprofundam.
Ao mesmo tempo, existe um aspecto fantasmagórico na Bósnia. Quando você passa muito tempo lá, percebe um desconforto. O país tem uma densidade demográfica bastante desigual, o que gera a impressão de abandono. Sarajevo é uma cidade cheia de pessoas, mas tudo ao redor aparenta estar vazio. É muito estranho de ver quando se viaja. Existe uma ideia de que a situação está melhorando, mas ao mesmo tempo, as pessoas de Sarajevo estão se mudando para a Alemanha, o Canadá, os Estados Unidos. Entre 50 mil e 100 mil pessoas abandonam a cidade anualmente, e ela tem apenas 3 milhões de habitantes no total. Há nascimentos, é claro, mas de acordo com as estatísticas, a Bósnia deve ser o segundo país com queda populacional mais forte na Europa nos próximos 20 anos, depois da Bulgária.

 

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The White Fortress

 

Como a cidade reflete os traumas da guerra? Faruk assiste a cenas de combate o tempo todo.
Eu não queria usar imagens da guerra civil na Bósnia. Preferi usar material de arquivo da Segunda Guerra Mundial. Para quem está familiarizado com o país e nossa cinematografia, o filme assistido por Faruk fala sobre a cidade ocupada durante a guerra. De certa maneira, Sarajevo continua ocupada por estas forças etnopolíticas que separam grupos sem pensarem numa identidade nacional combinada. O filme sobre a Segunda Guerra Mundial representava uma tentativa de encontrar este espaço em comum. A bússola moral se torna comprometida, por isso Faruk é um herói silencioso, que privilegia o amor às oportunidades. A infância dele se resumiu a uma decepção sem fim. Por isso, ele apresenta uma resistência calada, mesmo sabendo que Mona está indo embora. Faruk possui certo idealismo romantizado, e eu queria captar isso. Heróis não precisam ter espadas nem armas, às vezes eles apenas deixam uma marca em alguém, ou num lugar. Acredito que Faruk deixe uma marca positiva neste lugar.

 

Você associa este idealismo à juventude? É por isso que privilegiou um romance entre adolescentes, ao invés de adultos?
Em partes, sim. Eles não estão totalmente corrompidos pelo sistema ainda, então podemos brincar com a noção ingênua do “felizes para sempre”. Eles ainda acreditam que vão encontrar alguém e estabelecer uma conexão duradoura. Mas os dois se encontram numa realidade que não permite a concretização destes planos. Os jovens se encontram em duas bolhas sociais extremas. A ideia de que tudo é possível através do amor soa ingênua, mas torna mais fácil seguir vivendo. Os personagens continuam abertos à ideia de um futuro melhor.
Por exemplo, dentro deste sistema, pouco importa quais notas você consegue na escola. Tudo depende dos seus contatos: você pode ser um péssimo aluno e se tornar um adulto rico, ou pode ser bastante estudioso, mas nunca receber uma oportunidade porque não conhece ninguém importante. A Bósnia é um país kafkiano neste sentido: embora você seja extremamente talentoso, isso não importa no seu futuro. Digamos que você vença uma competição esportiva, ou de xadrez num país estrangeiro, e talvez conseguirá algum tipo de apoio internacional. Mas se você for o melhor dentro do país, isso não terá efeito algum. Depois da guerra, a classe média partiu para os extremos: a família de Faruk se torna cada vez mais pobre, apesar de ser formada por pessoas com educação formal. A mãe falecida dele era pianista. Vejo isso com frequência: famílias importantes do passado hoje estão em ruínas, enquanto grupos que mal se sustentavam antes da guerra, hoje ocupam altos cargos políticos. É um ambiente muito estranho.

 

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Como quis equilibrar o realismo e a fantasia?
Isso é algo muito difícil de fazer. Nunca gosto de ficar preso a um único gênero, isso me parece chato demais. No meu longa-metragem anterior, e ainda mais neste caso, eu tentei manter um pé na realidade, mas plantar o outro pé no sonho, no surrealismo e no suspense. O filme dialoga o tempo inteiro com o realismo social, mas se comunica com outros espaços. Acredito que o fato de ter esta âncora me ajudou a deixar as cenas partirem para domínios inesperados. Sarajevo é assim: quando você passa bastante tempo lá, percebe que este espaço é surreal. As narrativas divergem, tanto sobre o passado quanto sobre o presente. Talvez isso seja normal em diversas cidades, mas se torna extremo em Sarajevo. Por isso, existe a tradição de permitir a convivência entre gêneros diferentes. O antigo cinema iugoslavo era repleto de experiências com misturas de gêneros.

 

O que a metáfora recorrente dos cachorros representa no filme?
Os vira-latas dominam Sarajevo. São 15 mil, 20 mil vira-latas por todos os lados. Nas primeiras versões do roteiro, esta questão não estava tão presente. Mas comecei a me dedicar cada vez mais à metáfora deste viajante invisível que adota a forma de um cão. É um cachorro de verdade, mas também um símbolo. Neste espaço, os cachorros são utilizados para vigiar, para assustar ou atacar as pessoas em propriedades. Ao mesmo tempo, são o animal de estimação mais comum. As pessoas têm medo dos cachorros da cidade, porque eles estão em todos os lugares, e às vezes te seguem até a sua casa. Queria captar este espírito de estar sempre cercado, às vezes seguido por eles. Conforme eu escrevia o roteiro, esta imagem se mantinha. Era uma polaridade interessante para apresentar a ideia do viajante invisível. O cão se tornou o veículo mais orgânico para este elemento de fantasia. A cidade inteira adota esta forma: Sarajevo é como um cachorro que oferece afeto, mas também devora as pessoas. Pensei neste conceito abstrato, associado a um fenômeno muito específico da cidade.

 

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Como preparou seus atores jovens?
Passamos muito tempo ensaiando, não para decorar os diálogos, apenas para que eles ficassem à vontade. Presto muita atenção à linguagem corporal e aos movimentos, e era importante para mim a maneira como se deslocariam nestes espaços. Visitamos algumas das locações antes de filmar, só para passar um tempo nestes locais e explorar possibilidades de filmagem. Fizemos ensaios nas locações, sem a intenção de repetir estas interações na hora de filmar. Eu só me preocupava com a verossimilhança: dava para acreditar nos dois juntos? Chegamos a recriar alguns dos lugares onde filmaríamos durante os ensaios, e pudemos visitar os demais espaços. Passamos bastante tempo no campo, por exemplo, para eles se habituarem ao espaço e saberem como se deslocar por lá. Isso é fundamental ao ator: conhecer bem a locação, para as filmagens se tornarem orgânicas e permitirem improvisos, se necessário. Num campo, em particular, existem escolhas até demais de movimento, e o excesso de escolhas é prejudicial, porque nunca sabemos ao certo que caminho os atores vão adotar.

 

A respeito de movimentos, a fotografia oferece imagens móveis, com a câmera deslizando sobre lugares e personagens.
Com o meu diretor de fotografia, usei referências ecléticas, de diversos filmes. A intenção era sugerir a presença de uma força invisível através do tom fantástico, como os cachorros, os sonhos, a cena final. Este era o movimento: tentamos criar ideias estáticas que pudessem adotar um movimento por conta própria. Na verdade, a história se inicia de maneira bastante estática, até começar a se mover mais rapidamente, quando os dois personagens estão juntos. O movimento representa uma oportunidade: ambos se deslocam juntos pelo espaço, o que representa um ideal esperançoso e romântico. Em contrapartida, quando estão presos a um local único, isso representa o pessimismo e a decadência. É assim que eu concebi o movimento, enquanto algo capaz de evoluir. Para se desenvolver enquanto pessoa, você precisa estar em movimento constante. Isso vale para os personagens: eles conhecem uma pessoa de origem totalmente diferente da sua, e se apaixonam.

 

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Como percebeu esta edição atípica da Berlinale, em formato virtual?
Costumo ir ao Festival de Berlim para me movimentar, para ficar pulando de uma sala de cinema à outra, e não para ficar horas na frente de um monitor. Para os diretores, ficou a impressão de que não havia um festival acontecendo, porque nós não recebemos credenciais para esta edição. Apenas os produtores tinham a permissão de assistir aos outros filmes, e consegui ver alguns filmes com a credencial do meu produtor, mas o fuso horário não ajudava, e me impediu de assistir a mais títulos. Não foi algo muito fácil, assistir a tantos filmes em apenas cinco dias. Além disso, eu dou aulas três dias por semana. Teria visto muito mais filmes, se pudesse.
Quanto ao formato do streaming, acredito que seja algo temporário: daqui a um ano, mais ou menos, imagine que voltemos a algo próximo do normal. O streaming representa uma ameaça ao cinema, mais do que uma oportunidade. Nunca consigo aproveitar um filme da mesma maneira numa tela pequena, porque a experiência imersiva se perde. Em casa, posso parar a sessão e ir ao banheiro, por exemplo, enquanto na sala de cinema, você fica esperando até o fim. Existe uma experiência coletiva que independe de nós: no cinema, você não pode apertar “play”, nem “parar”. É incrível o fato de não controlarmos o tempo no cinema: ele apenas passa, e precisamos nos entregar a esta experiência, enquanto ela durar. Sinto falta disso. O streaming ajuda em partes, mas nunca substituirá a experiência compartilhada de um filme com outras pessoas do nosso lado. É quase uma experiência religiosa. Se você for agnóstico e não tiver religião, você ainda pode ter o cinema.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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