Filipe Matzembacher e Marcio Reolon foram colegas de faculdade. Foi quando se conheceram, possibilitando uma afinidade que foi da vida pessoal para a profissional. Os dois possuem em torno dos 30 anos, mas uma filmografia que, apesar de curta, já impõe respeito. Após diversos curtas premiados no Brasil e no exterior, e de uma série de televisão – O Ninho (2016) – que repercutiu muito além de suas exibições na telinha, os dois chegam agora ao segundo longa-metragem, dando continuidade ao impacto do trabalho inicial no formato, Beira-Mar (2015). Tinta Bruta é o título da vez, e o mais bem-sucedido da dupla até o momento. Premiado na mostra Panorama e com o Troféu Teddy de Melhor Longa de Temática LGBT no Festival de Berlim, foi o grande vencedor do Festival do Rio deste ano – reconhecido como Melhor Filme, Ator, Ator Coadjuvante e Roteiro! Entre um momento e outro, recolheu conquistas em Chicago, Los Angeles, Guadalajara, Ucrânia e Filipinas, entre tantos outros lugares. Agora, este que é um dos lançamentos nacionais mais aguardados do ano está finalmente em cartaz nos cinemas. E nós aproveitamos o momento para conversar com os dois cineastas e saber um pouco mais sobre o projeto e as motivações por trás do cinema que realizam. Confira!
Pensando no Beira-Mar (2015) e no Tinta Bruta, percebe-se que a temática LGBT entre adolescentes é uma questão recorrente. Vocês são, de fato, comprometidos com essa temática, ou é apenas coincidência?
Filipe Matzembacher: Estes dois projetos surgiram a partir de vontades e necessidades nossas de criar histórias e possibilitar representações que sentíamos falta. Colocar na tela anseios e sentimentos pelos quais nós mesmos estávamos passando. Mas também acho que não são parte de um universo delimitador. Temos vários projetos que fogem desse recorte. A gente milita dentro desse universo, e por isso estamos muito conectados com as questões políticas e sociais que transpassam por ele. Então, é natural que tenhamos interesse em olhar ou abordar estes pontos de vista, mas acho que, no caso desses dois filmes, é quase uma coincidência ambos terem personagens jovens e LGBT como protagonistas. Do mesmo jeito, não sabemos como será o futuro.
Marcio Reolon: Nem vejo o Tinta Bruta tanto como um filme adolescente, como é o caso do Beira-Mar – lá os personagens tinham 18, 19 anos, e aqui eles têm uns vinte e poucos. Mas também não sei se esses personagens vão envelhecer com a gente.
Vocês se conseguem ver dirigindo um projeto escrito por uma outra pessoa, ou fazendo algo de gênero, completamente diferente do que fizeram até agora? Há essa vontade de diversificar?
MR: Acho que sim. A gente gosta muito de fazer cinema. Os nossos principais interesses são estéticos, narrativos. É claro que temos afinidades por temas e histórias que talvez nos chamem mais atenção, mas penso que ainda antes de representações LGBT ou queer, vem as relações humanas. Isso é algo muito forte que nos toca de uma maneira especial. Normalmente os filmes que vamos atrás, e os diretores que gostamos, são aqueles que trabalham muito o humano na tela.
Que diretores são esses? Quais as principais referências de vocês? E o que vocês buscam nesses realizadores
FM: A gente gosta muito do Fassbinder, do Jia Zhangke. Acho que tem uma preocupação em olhar para a humanidade dos personagens. Em tentar entender aquela pessoa que está ali por trás. E transpor para o cinema aqueles sentimentos e angústias. Isso é uma coisa que nos interessa.
MR: Sidney Lumet, também. É um cara que trabalhava com personagens que normalmente estavam em conflitos morais, e buscava isso através das atuações de uma maneira muito poderosa. Isso é muito fascinante.
FM: Esteticamente, olhar para a atuações é uma coisa que nos interessa muito.
É curioso, pois vocês falam sobre esse apreço pelas atuações, ao mesmo tempo em que só trabalham – ao menos até agora – com gente que está começando. É interesse de vocês moldar estes atores de acordo com cada projeto?
MR: Acho que para a gente essa necessidade, sempre que se faz precisa, não é um problema. Estamos abertos para trabalhar com atores experientes, tanto como com quem nunca atuou até então. Mas, na verdade, isso não faz diferença. O que tem acontecido foram situações que nos deram prazer em investir tempo nesses personagens e nos seus intérpretes, em encontrar essas pessoas junto com os atores. Então, a questão do quanto eles já possuem experiência em atuar ou não acaba sendo indiferente.
FM: No Tinta Bruta, o Shico Menegat não tinha experiência alguma, o Bruno Fernandes só em teatro, mas o resto do elenco era mais experiente. Isso possibilitou uma troca interessante, para construir junto com eles essas ferramentas que possibilitaram uns atuando ao lado dos outros.
Como vocês encontraram o Shico Menegat, que interpreta o protagonista, e o que vocês viram nele que determinou esse convite?
MR: A gente procurava, há um tempo, um ator que fosse de Porto Alegre – isso era importante, pois esse filme fala muito da cidade. Queríamos ter essa troca com o elenco durante as filmagens. Portanto, era preciso que fosse um ator que vivesse lá, naquelas ruas. Queríamos também alguém que tivesse uma aparência frágil, mas, ao mesmo tempo, que fosse possível sentir dentro dele uma força, uma intensidade que permitisse acreditar que, em uma determinada circunstância, a pessoa poderia vir a cometer um ato de violência. Acho que o Shico, para a gente, representava tudo isso. Ele tinha essa figura magra, quase andrógina, mas tem em si uma explosão, algo muito vivo. Um brilho no olhar, e foi isso que nos cativou.
FM: Quando o vimos pela primeira vez, foi numa festa, e ele estava dando uma de DJ. Foi numa época que estávamos, há algum tempo, envolvidos com a escrita do roteiro. E quando olhamos para ele, pensamos na hora: “nossa, parece o Pedro que estamos escrevendo”. Naquela noite mesmo o abordamos e o convidamos para um café, para conversarmos melhor.
Qual foi a reação dele?
FM: Ele já conhecia o Beira-Mar, o que facilitou bastante. Ficou bem empolgado, e quando leu o roteiro, adorou. A resposta dele foi: “olha, super topo, só que nunca atuei na vida”. Ele não tinha experiência nenhuma, nem com teatro, nada.
MR: Tivemos um período de sete meses de ensaios com ele e com o Bruno. Um processo muito rico, pois começamos lentamente. Primeiro com encontros semanais, depois duas ou três vezes por semana. E nestas ocasiões aproveitávamos para nos conhecermos melhor. A gente até brinca que era quase uma terapia coletiva. Falávamos coisas muito íntimas e pessoais sobre as nossas vidas e como, de alguma forma, nos relacionávamos com aqueles temas e personagens. Até para a gente entender onde íamos de encontro com aquelas histórias, e em que momento nos distanciávamos delas, também. Para somente depois passar pelos exercícios de atuação, noções de câmera, e só daí pegar o texto e começar a trabalhar e construir estes personagens juntos. Isso tudo para, quando fosse trazer os outros atores, pelo menos entre nós quatro as coisas já estivessem mais confortáveis. Isso era importante.
FM: Até porque o Pedro é o centro do filme. A câmera está sempre nele, todas as pessoas que aparecem são através do relacionamento delas com ele. Por tudo isso, era fundamental que o Shico tivesse esse domínio e pudesse se enxergar no Pedro.
Vamos falar sobre essa parceria entre vocês dois. Como ela acontece? É tudo junto ao mesmo tempo, ou vocês dividem responsabilidades?
MR: A gente realmente não divide nada. Nós temos um passado em comum, que é o fato de que ambos começamos como atores antes de nos tornarmos diretores, e isso direciona muito os nossos interesses. Cria uma afinidade. Eu sigo atuando até hoje, o Filipe um pouco menos. Mas faz com que o ator tenha um papel fundamental nas nossas narrativas. E também temos visões de mundo que se encontram. Até mesmo interesses estéticos.
FM: Estamos sempre compartilhando referências. É tudo em conjunto. Ao ponto de que, se um dos dois dá uma ideia, tempos depois, quando decidimos retomá-la, não sabemos mais quem foi o responsável por aquilo. É na base do diálogo mesmo, pois conversamos tanto, e a todo instante, que é tudo junto e misturado. Inclusive com o resto da equipe. Até essa importância dos atores conseguirem criar uma relação com os temas e conflitos, dividimos tudo com quem está trabalhando conosco. Com a foto, arte, montagem, som. É só assim que estará todo mundo fazendo o mesmo filme, entende? É um processo mais horizontal. E dialoga muito com o teatro, que é uma técnica que nos interessa também. O fazer cinematográfico pode ser muito engessado, hierárquico, não aberto às pequenas humanidades, aos acasos, e tentamos, sempre que possível, dar espaço para que isso possa acontecer. Nos interessa um cinema um pouco mais vivo nesse sentido.
Esse filme poderia se passar em São Paulo ou em qualquer outra cidade, ou é uma história tipicamente de Porto Alegre?
FM: Acho que ele poderia se passar em uma outra cidade. O que acontece é que, quando criamos essa história, tentamos contextualizar bastante o espaço onde o personagem está inserido. Ainda mais quando esse ambiente se faz tão presente. A cidade de Porto Alegre é como se fosse a antagonista do Pedro. Mas, sim, poderia se passar em outros lugares. Certamente, algumas questões estéticas seriam diferentes.
MR: Esse é um interesse forte nosso: a relação do personagem com o lugar. No Beira-Mar, eram aqueles meninos na praia, no inverno. Não necessariamente precisaria ser no Rio Grande do Sul, poderia ser qualquer praia. Mas isso, de estar em uma praia com determinadas características de isolamento, era fundamental. No Tinta Bruta, acontece a mesma coisa. A relação do Pedro com a cidade, e como ela o oprime, essa solidão que ele sente. Isso, obviamente, não é exclusivo de Porto Alegre. Mas, uma vez que essa cidade passa a ser o cenário, procuramos trazer características próprias daquele lugar. A gente tem exibido o filme em diversos países, e circulado por outros estados no Brasil, e é impressionante como, independente da nacionalidade, as pessoas conseguem criar relações com o filme.
Pois então, é aquela questão do “fale da sua aldeia e fale com o mundo”?
FM: Exatamente. Na Ucrânia, na Alemanha, em Taipei ou no Canadá, todo mundo tem conseguido enxergar um pouquinho da sua cidade ali. Ao mesmo tempo, tem ficado curioso sobre essa cidade que estamos retratando. É um ponto interessante.
De Berlim, onde o filme teve sua primeira exibição, no começo de 2018, até agora, vocês têm percebido reações unânimes ou diversas?
MR: Acho que, de forma geral, as pessoas tem conseguido criar relações muito fortes. Isso é o que mais tem nos deixado feliz em toda essa trajetória. Porto Alegre é uma cidade de médio porte. Ela tem variáveis que podem motivar algumas pessoas a irem embora, mas é o mesmo que se dá em outras cidades de dimensões similares. As pessoas costumam ir para cidades maiores, até mesmo outros países, e essas conexões, no geral, possibilitam essa identificação. Com isso se cria uma relação mais direta entre espectador e personagem.
FM: Nos interessa muito o olhar político sobre esses personagens partindo do indivíduo para a sociedade, e não o contrário.
Vocês comentam dois elementos importantes, o “olhar” e a “política”. Esse é um filme de muitos olhares, a maioria de anônimos. O que vocês queriam discutir com isso?
MR: Acho que o olhar é parte forte de como a gente pensa o cinema e o mundo. As nossas histórias normalmente partem dos personagens, e uma das primeiras coisas que pensamos sobre eles são seus olhares. Como ele olha, se com raiva ou acuado. Essa é uma imagem que nos acompanha ao longo do processo. Na atuação, gostamos de contar o filme através desses olhares. Isso faz com que muitas vezes a gente acabe optando por planos mais fechados, e fique muito tempo num só ator, e não cortando de um para outro. No Tinta Bruta, em particular, o Pedro é marcado pela forma como as pessoas olham para ele. Ele tem uma relação, um desconforto grande com o modo como ele é visto pela sociedade. É sempre jogado para fora, marginalizado e agredido. É uma coisa que vai marcar a trajetória dele. Ele vai sendo olhado o tempo todo. Seja pela webcam, ou quando sai na rua, com todas aquelas pessoas nas janelas. E também por ser um indivíduo queer, ou pelo menos destoante dessa hegemonia dominante, se cria esse questionamento: “por quê aquela pessoa está me olhando?”. É por que me reconhece de algum lugar, por que me achou interessante, ou é um olhar de ameaça?
FM: De violência ou de desejo? No caso do Pedro, pode ser também por ele ter participado de uma agressão há pouco tempo. Será que foi reconhecido por esse incidente, ou pelos shows que faz na internet? Tem muitas variantes envolvidas.
MR: A história parte disso: ele fura o olho de um colega. O olhar se manifesta sob todas as formas. Mesmo as pessoas nas janelas, a gente tentou trazer um pouco desse universo virtual, e pensar nelas como avatares anônimos de computadores.
Vocês têm circulado muito pelo Brasil. E o país de hoje é muito diferente de quando vocês começaram essa história. O que Tinta Bruta tem a dizer ao Brasil atual?
FM: Acho que vem num momento meio que natural. Começamos a desenvolver atentos a como o Brasil estava se comportando, social e politicamente. Esses sentimentos do Pedro, de raiva e desespero, de necessidade de ser reativo, surgiram como reflexo de situações que estavam ocorrendo no nosso cenário político e social. O que acontece agora é que o filme acaba casando com esse cenário do Brasil de hoje porque já estávamos olhando para isso há algum tempo. É interessante, pois acredito que vá ter muita gente que vai olhar para o filme e entender essa importância, da mesma forma que vão ter aqueles que vão negar essa relação.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em dezembro de 2018)