Ela é uma das nossas musas, se assim podemos dizer. Presente em dezenas de filmes, Gilda Nomacce é uma daquelas atrizes que, até pouco tempo, sempre que você a via acabava pensando “puxa, de onde a conheço?”. De rosto marcante e olhar hipnotizante, já girou o mundo – nasceu no interior de São Paulo, se formou em Londres, fez uma residência artística nos Estados Unidos e outra em Moscou. Estreou na televisão no final dos anos 1990, mesma época em que começava a se aventurar nos palcos. Para chegar até à tela grande levou mais um tempo, mas depois de começar, nunca mais parou. Em pouco mais de uma década, apareceu em dezenas de curtas, além de uns tantos longas. Os reconhecimentos logo chegaram. Por Trabalhar Cansa (2011), um dos primeiros papeis de destaque que recebeu, ganhou o Candango de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Brasília. Já no Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, a maior premiação da crítica nacional e promovido aqui mesmo pelo Papo de cinema com críticos de cinema de todo o país, ela conta com duas indicações: por Quando Eu Era Vivo (2014) e por Ausência (2015). Só que 2018 é que promete ser o verdadeiro “Ano Gilda”. Além de estrear agora na comédia romântica Todo Clichê do Amor, ao lado do amigo Rafael Primot, ainda terá pela frente mais oito filmes nos próximos meses. É muita coisa! E pra saber um pouco mais sobre tudo isso, tivemos um bate-papo inédito e exclusivo com a estrela em São Paulo. Confira!
Gilda, como surgiu o convite para participar de Todo Clichê do Amor?
Sabe aquela história, do telefone que nunca toca? Pois bem, comigo foi o contrário (risos). O meu telefone tocou, e do outro lado era o meu irmão, Rafael Primot. Ele é um sujeito que não tem como não admirar. Eu o conheço desde que ele tinha 17 anos! Eu era um pouco mais velha que ele, mas não muito! A gente participava, nesse período, em 1998, há exatos 20 anos, do Centro de Pesquisa Teatral do Antunes Filho. Isso em São Paulo, no SESC Consolação. Foi quando começou um projeto chamado Prêt-à-Porter, que formou muita gente boa. Não posso dizer, no entanto, que tenha sido isso que deu as ferramentas que o Rafael precisava, mas certamente, durante tudo aquilo que nos acontecia, ele vivenciou, ainda muito cedo, uma variedade grande de funções. A proposta do grupo, afinal, era que o ator criasse o texto, dirigisse e também atuasse. E as cenas que ele apresentava eram todas muito fortes.
Bem diferente do clima leve que encontramos agora em Todo Clichê do Amor, portanto.
Ele pode estar fazendo agora uma comédia romântica, falando de amor, visitando lugares mais leves, digamos, mas ele tem, dentro dele, um abismo muito profundo. Ele tem essa capacidade de falar de coisas muito fortes. Lá na adolescência dele, já se percebia essa pegada mais sombria. E os roteiros dele já se destacavam. Era possível antever que seria um artista completo.
Duas décadas depois, como você avalia a performance dele como diretor?
Vendo agora, me parece até meio óbvio que acabaria se tornando esse artista multimídia que é. Olha só: está na novela, está lançando um filme no qual é roteirista, diretor e ator – e faz as três coisas com perfeição! Ganhou o prêmio Shell de dramaturgia. E o mais incrível de tudo é que, mesmo fazendo tudo isso, com toda essa potência, ainda é um sujeito muito simples. O Rafael se mistura muito com a gente. Trabalhar com ele é uma experiência incrível. Às vezes me pego olhando e pensando: “gente, o Rafael é o meu diretor”! Apesar de fazer de tudo, não é um cara centralizador. Não faz uso do poder de cada condição que assume. Gosta é do trabalho. Da criação. E é tudo muito compartilhado. É uma delícia trabalhar com ele.
Tanto que essa não é a tua primeira experiência com ele…
Sim, estive também no longa anterior dele, o Gata Velha Ainda Mia (2014). E veja só, sou tão amiga dele que nem cheguei a ser escalada para esse filme. Quem faria a personagem que acabou comigo era a Luciana Paes – que é uma atriz pela qual tenho admiração profunda. Aliás, em breve iremos fazer um filme juntas, ainda nesse ano, que se chamará Vermelho Intenso! Mas, voltando ao que estava falando, aconteceu que ela estava com uma peça que foi para o Festival de Curitiba, bem no mesmo período em que as filmagens foram marcadas. Impossibilitada de ir ao set, o Rafael se viu sem a atriz, e por isso me ligou. “Olha, Gilda, você toparia ensaiar, mesmo sem saber se vai fazer?”. Porque podia acontecer da Luciana se liberar e voltar em tempo. E topei essa loucura, de ensaiar um filme mesmo sem ter certeza de que estaria nele.
Ou seja, decorou às falas, foi ao set, mesmo correndo o risco de ser substituída a qualquer momento?
Exato. E, vamos combinar, quando falamos “ah, tive que decorar tudo isso”, é mais uma pose. Hoje em dia já é quase automático. Quando assumo um personagem, chego a considerar um abuso ter que ficar decorando o texto, pois tenho que me transformar naquela pessoa, e saber o que ela diria em cada situação tem que vir até mim de forma instintiva. Sou capaz de decorar mais de dez cenas, em um mesmo dia, se o personagem já estiver dentro de mim.
A memória de cada um é mesmo uma maravilha. Talvez não lembre do que almoçou hoje, mas consegue recordar trinta páginas de texto.
Sim, é exatamente isso. Você organiza tudo e elege as prioridades dentro da sua cabeça. Até a ordem do que você vai filmar primeiro, pois é aquilo que terá que lidar antes. Outra coisa minha é que costumo estudar mais as cenas que sei que irei filmar no final do dia, pois é quando tenho menos energia e sei que vai exigir mais de mim. Esse tipo de coisa. Cada organismo faz de um jeito, afinal.
Fiquei interessado pela história do Gata Velha Ainda Mia. No final, a Luciana não pode mesmo fazer o filme…
Pois é, acabou que as datas coincidiram, de fato, e ela precisou abrir mão. Com ela em Curitiba, nem precisaram me chamar – eu já estava no set, havia ensaiado tudo e sabia exatamente o que fazer. Foi um filme que fizemos em uma semana, apenas, tudo muito rápido, em uma única locação. As minhas cenas eram com a Bárbara Paz, que já conhecia de outros tempos, e com a Regina Duarte, que sempre tem aquela coisa: “nossa, é a Regina Duarte”! Ao todo, passei quatro dias no set, e foi maravilhoso. Gosto muito do roteiro e da verborragia desse filme. E a Regina fez um trabalho incrível. O Rafael, com essa carinha de santo, chega em você e pede tudo com tanto amor, sabendo exatamente o que quer da gente, e consegue. Ele tirou a Regina de um lugar onde ela estava mais acomodada e a colocou em um outro patamar. Trabalhou uma coisa nela muito emocionante, e o resultado foi fantástico.
Você está sempre envolvida em dois ou três filmes ao mesmo tempo.
Pois então, o Gata foi lançado ao mesmo tempo que o Quando Eu Era Vivo (2014), que é outro trabalho que me dá muito orgulho. Os dois entraram em cartaz praticamente na mesma semana. E às vezes acontece mesmo isso comigo. O Califórnia (2015) e o Ausência (2015) também estrearam quase que um dia após o outro. A gente fica um tempão sem fazer, sem lançar nada de novo, e, quando percebe, tudo acaba vindo junto.
Bom, então o Rafael tinha uma dívida contigo. Você o ajudou naquele momento, e agora ele está pagando o que te devia com o Todo Clichê do Amor?
Nunca pensei nesses termos, porque sou muito agradecida, sempre. Ele me ajudou muito num momento em que ainda não era chamada para tantos filmes. Não haviam me descoberto. E ele não ficou me devendo nada, porque fez a proposta e topei, afinal. É o tipo de coisa que só entre amigos acontece, e é o que somos.
No Todo Clichê do Amor, há três histórias correndo em paralelo. E você está na trama central, ao lado do diretor e da Debora Falabella. Como foi viver esse triângulo amoroso?
Olha, fazer parte dessa trinca foi tão bom. A Debora também é uma delícia de se trabalhar junto. Uma parceira e tanto. Dividir um mesmo set com alguém lhe possibilita acessar um lugar de identidade em comum, e ela é uma atriz que permite que isso aconteça de uma forma muito tranquila. Ela me recebeu lindamente, e fiquei ainda mais apaixonada por ela, e, principalmente, pela atriz que ela é. Com o Rafael, seria natural se houvesse um pouco dessa tensão de estar contracenando com o diretor. Às vezes, quando isso acontece, são dois atores numa mesma cena, mas o outro também fica te dirigindo. São dois comandos que você recebe, do ator e do diretor. Você fica um pouco cerceada. Mas com o Rafa, felizmente, isso não aconteceu. Quando ele gritava “ação”, na mesma hora virava ator e deixava o diretor de lado. Foi um núcleo muito tranquilo, filmamos com muita alegria. Claro, tivemos encontros anteriores que nos deixaram preparados, mas fui ao set com toda a disponibilidade possível, para que tudo que fosse preciso acontecesse da melhor maneira.
Havia um roteiro mais rígido ou os diálogos entre vocês se deram na base da improvisação?
Não, tinha um roteiro. Tudo que é dito em cena, seja a minha personagem ou qualquer outra, foi ele que escreveu. Não tenho um único improviso. O Rafael é um cara que escreve, muito.
A tua personagem parece estar muito livre em cena. Isso não seria resultado dele estar escrevendo já contigo em mente, pelo fato de vocês se conhecerem tão bem e há tanto tempo?
Fico muito feliz ao ouvir você me dizer isso. Pois até pode parecer que está tudo muito livre, mas, na verdade, tudo era rigidamente coordenado. E afirmo categoricamente: naquele texto não há nada meu. É tudo do Rafael.
A tua personagem se chama Sofia, mas ela exige que todos a chamem de Stéfany. E você, Gilda, é mais Sofia ou mais Stéfany?
(risos) Olha, acho que talvez seja mais Stéfany… não, vou falar a verdade, sou mais a Sofia. Eu queria ser mais como a Stéfany, mas acho que não sou (risos). Aliás, acho que sou tudo. Sou um pouco das duas.
É verdade que você tem mais oito filmes em andamento para depois do Todo Clichê do Amor?
Eu filmei com o Sandro Serpa e com a Bel Bechara, dois mineiros incríveis, o Onde Quer Que Você Esteja, que é a adaptação de um curta homônimo que eles fizeram dez anos atrás. Agora eles retomaram e fizeram um longa. É a história de um programa de rádio que acha pessoas desaparecidas. É com o Leonardo Medeiros e com a Sabrina Greve, e o meu personagem já é mais importante. Estou começando a receber papeis com mais peso. A Sabrina, aliás, é desse mesmo período em que conheci o Rafael. Era uma turma muito grande, do final dos anos 1990, e hoje tá todo mundo no mercado, uns aparecendo mais do que os outros, mas todos na ativa.
Esse já está praticamente pronto. E quais são os outros?
Fiz também o novo do Daniel Manzini, que é um artista plástico, e que vai se chamar Ivan. Eu sou a protagonista feminina, e é um filme muito delicado. Fala de uma deficiência fictícia, vivida por um menino interpretado pelo Giovanni de Lorenzi – que, aliás, está nessa mesma novela do Rafa, a Deus Salve o Rei (2018). Esse filme também está para sair, recebi algumas imagens, e pelo jeito está ficando muito bonito. Belíssimo, mesmo.
Bom, são dois papéis de peso, pelo que se percebe.
Tem ainda o do Alexandre Mortágua, que se chama Todos Nós 5 Milhões. É uma mistura de documentário com ficção sobre crianças não registradas pelos pais, que acabam abandonadas. No centro da ação, há quatro fases de uma mesma mulher, e cada uma delas é vivida por uma atriz diferente. E para esse desafio foram escolhidas três atrizes negras, e eu sou a única branca. Achei isso tão forte, sabe?
Esses devem ser os primeiros a sair?
Alguns já lançaram teasers, outros estão em finalização. A gente nunca sabe. O Todo Clichê do Amor, por exemplo, filmamos há três anos, e só agora está estreando. Ou seja, tudo pode acontecer. São filmes que estão ficando pronto, que já fiz minha parte. Mais recentemente, tem um do Fernando Sanches, A Pedra da Serpente, que terá sua primeira exibição no Fantaspoa – o Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre – deste ano. Esse, sim, vai ser o primeiro. Será exibido na sessão de encerramento. Se não me engano, terei três filmes nesse festival. E ainda tem mais. Só com o Fernando vai ter também o Vermelho Intenso, que já comentei, e um outro que será produzido pela Sara Silveira. Vai se chamar O Grifo de Abdera, e será baseado no livro do Lourenço Mutarelli. Esse com certeza vai sair, pois foi ele mesmo, o autor, que disse que escreveu comigo em mente. E o Fernando, quando assumiu a adaptação e escreveu o roteiro, me convidou de imediato.
Pelo jeito, teremos muita Gilda pela frente…
Olha, que os meus diretores não fiquem magoados, mas tem muita coisa mesmo, espero não ter esquecido de ninguém. Só de curtas eu já perdi a conta. E tem também muito longa vindo por aí. Tenho muitos filmes feitos, prontos para aparecer a qualquer momento. Ah, lembrei de mais um, com o Gustavo Vinagre, depois do curta Filme-Catástrofe (2017), e devemos filmar em setembro ou outubro desse ano. Tem também o Tea for Two, da Ana Catarina. E, em comum, é que todos são papeis muito legais, que não podia deixar passar. Estou muito feliz.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em abril de 2018)