Torquato Neto foi uma das vozes mais inquietas do cenário cultural brasileiro nos anos 60 e 70. Jornalista, poeta e letrista de produção profícua, deixou uma marca contracultural no imaginário do nosso país. Foi colaborador de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé, entre tantos outros, se consolidando como ponta de lança da Tropicália. São dele letras de clássico da MPB, tais como Mamãe Coragem, Ai de mim Copacabana, Geleia Geral, Pra Dizer Adeus, e por aí vai. A lista é rica e extensa. Essa energia contestadora é capturada com sensibilidade pelos cineastas Eduardo Ades e Marcus Fernando em Torquato Neto: Todas as Horas do Fim (2018), que chega agora às telonas depois de passar por alguns festivais. Recorrendo a uma vasta iconografia, os realizadores criam um mosaico sentimental/artístico que acaba delineando os ímpetos de toda uma geração. Conversamos com Eduardo e Marcus um pouco antes da pré-estreia do filme, num cinema do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo, com os realizadores de Torquato Neto: Todas as Horas do Fim.
Por que é relevante falar de Torquato Neto hoje em dia?
Eduardo Ades: Torquato traz na poesia dele uma marca muito forte de transgressão, de falar quando não pode, o que não deve. Ele tinha uma postura tropicalista de assumir a liberdade, custe o que custar, de apostar na liberdade da criação. Ele sempre transgrediu para poder propor coisas novas, ainda levando em consideração aquele ambiente… Tem até um dos poemas dele, o que mais gosto, que diz: “agora não se fala mais, toda palavra guarda uma cilada”. Na sua época, o ambiente era de asfixia, de silêncio, havia um contexto político muito complicado em virtude da Ditadura Militar. Então, para os dias de hoje, o exemplo dele nos diz que há possibilidade de respiro, do tipo: encontre seu espaço, ocupe e depois se vire.
Marcus Fernando: Engraçado, essa pergunta é recorrente. Nem podíamos imaginar tal conjuntura há cinco anos, quando tivermos a ideia do filme. Mas, é incrível como ele chega num momento em que diz muito à atualidade. Há cinco anos esse longa teria um impacto completamente diferente. As pessoas, hoje, se perguntam como seria se o Torquato ainda estivesse vivo, como se expressaria, o que diria. Acredito que ele estaria colocando o dedo na ferida, até mesmo porque vivemos numa apatia. Não sabemos direito contra o quê ou quem lutamos. Uma figura como esta, combativa tanto na poesia como na postura, que abriu mão de coisas para lutar pelo que acreditava, é especial. Demos essa sorte, de alguma forma, do filme chegar agora, proporcionando até dá um alívio às pessoas, porque existiu lá atrás um cara que brigava, que encontrava brechas.
Formalmente falando vocês escapam ao modelo “talking heads” ou “cabeças falantes”. Como se deu essa opção?
Marcus: Há certo exagero na criminalização das talking heads. Claro, é um formato cansativo ao longo do tempo, que é quase padrão. Mas, às vezes, é meio inevitável. Não foi uma opção ir contra isso desde o início, inclusive filmamos tal dinâmica. O que nos levou a mudar foi o processo de tornar o Torquato o personagem principal. Quando Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil apareciam, ficávamos vidrados neles, e acabávamos esquecendo um pouco do Torquato. Então, identificamos que esses personagens tinham de permanecer no segundo plano, serem coadjuvantes. Claro, queríamos que o filme não fosse careta, desde o surgimento da ideia, mas isso não passava por utilizar ou não as talking heads.
Eduardo: Fizemos algumas poucas exibições prévias para amigos. Nos preocupávamos se o público sentiria falta de ver as pessoas dando os depoimentos. Mas apostamos, sabendo que inclusive havia riscos, embora não tivéssemos a dimensão deles. Felizmente o filme está agradando a todo tipo de público. Não tivemos sequer uma reclamação quanto a isso.
Marcus: Até mesmo quem não tem essa elaboração estética diz que o filme é diferente. Tem aquela brincadeira do Super 8 no crédito dos personagens, que também remete ao Torquato. Tudo isso ajuda.
Como foi, primeiro, garimpar e, segundo, costurar o vasto material de arquivo, a iconografia do filme?
Eduardo: A pesquisa do material nem foi tão difícil, porque a Ana, viúva do Torquato, agora já falecida, nos deu carta branca para fazer o filme, nem quis ver o roteiro. Infelizmente ela não pôde ver o resultado. Ana havia reunido tudo sobre o Torquato e enviado a Teresina, para o Jorge Mendes, primo dele que gerencia esse material. Tivemos acesso a fotos, manuscritos, desenhos, artes gráficas, etc. Depois fomos atrás de outras coisas para completar determinadas lacunas, mas nem foi tanto, não. Basicamente o material de arquivo que usamos é esse que nos foi disponibilizado pela Ana. Com o João Rodolfo do Prado, amigo e editor do Torquato no (jornal) Última Hora, conseguimos aquela série de fotos incríveis dele na praia, até então inéditas. O mais complicado, na verdade, não foi a iconografia do Torquato, mas, digamos, a iconografia do imaginário dele.
Marcus: Algo que decidimos muito tempo depois, quando percebemos que precisávamos cobrir, inclusive, a ausência das talking heads. Utilizamos 42 filmes!
Eduardo: O primeiro esforço foi acessar o repertório particular de cada um, o meu, o do Marcos e o do João Felipe Freitas, montador que fez um trabalho brilhante, fundamental para o filme. E a parte mais difícil de revirar foi a do cinema marginal, pois não conseguíamos apenas com o nosso repertório. Fomos buscar os filmes que o Torquato citava nas cartas, nas colunas do jornal, enfim, construindo esse imaginário visual dele. Foi um processo delicado, de escolher cenas específicas que, inclusive, não roubassem atenção do principal.
Foi na montagem que vocês perceberam não falar apenas do Torquato, mas do ambiente artístico cultural e político dos anos 60 e 70 no Brasil?
Eduardo: Foi na montagem, com certeza. Claro que não queríamos deixar o filme circunscrito a essa coisa de registro, ou fazer uma reportagem. A ideia sempre foi expandir bastante. Buscamos ampliar a noção do personagem para que ele ganhasse densidade, a fim de criar uma identificação do espectador. Quando começamos a trabalhar com os filmes, o nosso passou a ser, também, sobre aquele momento político, social e artístico. As pessoas saem dizendo que é uma viagem no tempo, pois sentem o clima que ele vivia naquele momento.
Como foi a escolha e depois o trabalho com o Jesuíta Barbosa, o narrador?
Marcus: A escolha foi natural, por vários motivos. Precisávamos obviamente de alguém com boa voz; que fosse ator, para poder lidar com a gama de emoções dos textos do Torquato, já que queríamos interpretação e não declamação; de alguém jovem, porque Torquato morreu com 28 anos e para a gente não fazia sentido um intérprete de 50 ou 60 anos; e que fosse nordestino, pois, embora saibamos da diferença dos sotaques existente entre os estados que compõem o Nordeste, a primeira coisa que a gente identifica sonoramente é a região. Então, somando tudo isso, chegamos naturalmente ao Jesuíta.
Eduardo: Curioso, porque a primeira vez que o encontramos, num café aqui perto (no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro) ele estava muito branco. Eu lembrava dele mais bronzeado dos filmes. Jesuíta estava a cara do Torquato. Não o convidamos por qualquer semelhança física, até porque ele é o narrador (risos).
Marcus: E ele se dedicou muito. Reviramos cada texto na hora de gravar. Ficamos muito felizes com o resultado. E a força da narração tem chamado atenção. Felizmente temos a voz do Torquato também no filme. Inclusive o Tiago, filho dele, me disse, logo depois da sessão no Festival do Rio do ano passado, que em determinados momentos não sabia quem estava falando, se o Jesuíta ou seu pai. Conseguir isso é incrível.
(Entrevista concedida ao vivo, em março de 2018, no Rio de Janeiro)