Susanna Lira considera Torre das Donzelas (2019) a sua realização mais difícil. Também pudera, afinal de contas a matéria-prima do filme é a dor de mulheres torturadas durante a Ditadura Civil-militar que vigorou no Brasil por 21 anos, entre 1964 e 1985. Reconstruindo o cenário sintomático do presídio de Tiradentes, em São Paulo, ao qual diversas presas políticas eram levadas especialmente após períodos lancinantes de violência física e psicológica, a realizadora fez um longa-metragem sobre o lado brutal do conservadorismo, diante do qual estamos novamente nos deparando atualmente. Contando com depoimentos da ex-presidenta do Brasil Dilma Rousseff, Torre das Donzelas é uma narrativa de peculiar sensibilidade sobre anos nefastos que não devem ser esquecidos, principalmente para que suas circunstâncias não venham a se repetir. Conversamos com Susanna no Festival de Brasília 2018, no qual o documentário teve sua première mundial. O resultado deste Papo de Cinema você confere a seguir.
Sua intenção inicial era fazer um resgate puramente memorialístico. Depois o filme adquiriu outras proporções, certo? Gostaria que você falasse um pouco sobre esse processo.
Minha intenção era fazer um filme de memória, realmente. Estavam vindo à tona os documentos da Comissão da Verdade e da Comissão da Anistia. Escolhi esse lugar porque ele era específico. Acho que a gente precisa de recortes. Documentário, às vezes, peca por querer abranger demais. O dispositivo que criei, o de reconstruir a torre, tem a ver com o sistema político de apagamento. Por isso queríamos registrar o local e ressignifica-lo do ponto de vista cinematográfico. Ao longo dos anos, até por uma dificuldade de captação de recursos, o filme acabou ganhando outros sentidos. As pautas de memória acabaram se atualizando. O filme fala sobre o que vivemos hoje. No Rio de Janeiro temos 23 pessoas presas por ser manifestarem. É quase um prenúncio do que pode acontecer caso não reajamos a essa onda que está vindo para cima de nós. Há uma destruição dos direitos conquistados ao longo dos anos. Falta a generosidade de ouvir o outro lado. É necessário combater o radicalismo em todas as frentes.
No filme algumas mulheres interagem na torre, outras dão testemunhos separadamente. Como se deu essa logística?
O filme foi feito em várias etapas. Precisamente em três. Na primeira delas, me encontrei com as mulheres na casa da Rita para gravar algumas conversas, das quais pouquíssimas entraram no filme. Na segunda etapa, entrevistei as mulheres de uma só vez, uma a uma, naquele fundo preto. A vontade é que tais colóquios baseassem a construção do documentário. Na verdade eu nem ia utiliza-los. Porém, algumas depoentes não puderam estar na torre por problemas de saúde e a Dilma por causa do impeachment. Criei essa linha narrativa dentro do filme para que elas pudessem se expressar. Há uma diferença de dois anos entre as entrevistas do fundo preto e as gravações na torre.
Como se deu a negociação para a participação da Dilma?
Esperei quarto anos para poder entrevistar a Dilma. Foi bem difícil. A princípio ela achava a história do filme boa, mas duvidava que a gente conseguisse fazer. Ela nunca tinha falado sobre a torre. Foi uma construção dura. Fui até Porto Alegre. Quando a encontrei, a primeira coisa que disse foi que tinha esperado quatro anos para fazer aquela entrevista. Ela virou para mim e falou: “você esperou pouco” (risos). Isso tem a ver com a luta, sabe? Elas ficaram três anos presas e eu esperei quatro anos para fazer a entrevista. Realmente é nada. Me surpreendi muito com a Dilma. Não imaginei que ela conseguiria falar tudo que falou. Dilma fez uma síntese muito importante sobre a torre.
E a Dilma parece bem aberta, à vontade no filme discorrendo sobre esses temas. Ela fala de praticamente tudo…
Ela é bem divertida e afetiva. Acredito que a família dela é composta por essas mulheres. De fato, nas duas posses presidenciais da Dilma as amigas dessa época tinha um lugar especial. Diante de vários problemas elas se juntaram e debateram sobre o que fazer. Vários instantes da vida da Dilma são permeados por tais amizades de longa data. A Dilma deve ter demorado tanto para falar sobre a torre porque é algo que diz respeito à sua intimidade profunda.
Reconstruir a torre sempre lhe pareceu essencial? E aquilo da ficção com as atrizes?
A reconstrução da torre sempre esteve no centro do projeto. Tanto que a ideia era fazer o filme apenas naquele ambiente. No processo de fala surgiram imagens emblemáticas, como as encarceradas jogando vôlei e fazendo o desfile. Achei que precisávamos ver aquilo de alguma maneira. E também essa inserção dizia respeito a uma tentativa de inovar como realizadora. Muitas vezes nós, documentaristas, ficamos alheias a alguma inovação de linguagem. Não sou arquivista, sou documentarista. Então coloquei isso como desafio. Aquelas atrizes são corpos viventes, trazem uma atmosfera para o filme. A participação delas foi a última coisa que coloquei no longa. Aliás, as atrizes e as donzelas nunca se encontraram, embora na trama pareça que sim. Foi um ótimo truque de montagem.
Durante a realização houve alguma dificuldade maior? Pessoas não quiseram falar?
Esse foi o filme mais difícil da minha vida. Muitas mulheres não conseguiram falar. Ao todo, entrevistei cerca de 50 delas e a gente tem 30 no longa-metragem. Lembro-me perfeitamente do processo de cada uma delas. Conquistei a confiança do grupo a duras penas. Nossa, é muita responsabilidade. Fiquei tão mexida emocionalmente com esse filme. Fisicamente também. Nessa reta final engordei 10 kg (risos). Isso tudo tentando me recompor.
Como foi para você a experiência da primeira exibição no Festival de Brasília?
Estou há 15 anos fazendo documentários. É muito difícil. Se sair uma crítica ruim, por exemplo, ninguém vai assistir. É uma luta. Me questionava como as pessoas reagiriam a esse filme especificamente. Fiquei extremamente comovida com a sessão de estreia. Sinceramente, não esperava uma receptividade tão grande. Estou agradecida às donzelas pela generosidade e ao Festival de Brasília por ter nos selecionado nesse momento histórico específico. Vou levar essa emoção para o resto da minha vida.
(Entrevista concedida durante o Festival de Brasília de 2018)