O francês Laurent Cantet é um cineasta do mundo. Representante do típico cinema feito em seu país de origem, aquele estilo que chegou até a ser encarado como clichê por muitos, apoiado em muitos diálogos e interpretações profundas, ele mantém, também, um olhar atento ao que vem acontecendo não só onde mora, mas também nos demais países europeus e de outros continentes. Hábil comentarista dos nossos tempos, consagrou-se com a Palma de Ouro no Festival de Cannes com o drama Entre os Muros da Escola (2008) – título, aliás, que o levou à disputa do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Dono de dois troféus César – o Oscar da França – e premiado em dezenas de diferentes países, da Argentina à Austrália, dos Estados Unidos à Itália, do Brasil à Alemanha, ele, a cada novo trabalho, tem aumentado ainda mais o interesse do seu público com filmes intrigantes, inquietos e provocadores. Convidado para exibir na sessão de encerramento da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo seu mais recente filme, A Trama, que chega agora aos cinemas do circuito comercial, o diretor veio mais uma vez até a capital paulista. O Papo de Cinema aproveitou a oportunidade e trocou algumas ideias com o realizador. Confira!
A Trama é quase uma peça de teatro, não? Como surgiu a ideia do filme?
Pois então, você está certo. Em meus filmes, fica claro que estou interessado no que as pessoas conversam, no jeito que falam, e como se dão essas relações entre elas – entre os personagens e também entre as palavras. Afinal, A Trama fala sobre encontrar as palavras certas para dizer algo, e como a escolha de uma ou outra palavra pode mudar o modo como nós entendemos o mundo. Palavras são muito importantes. Você pode perceber, nesse grupo de pessoas reunidas em cena, não apenas como elas falam, mas também o jeito que se comunicam umas com as outras. A oposição destas palavras, escolhidas a dedo por cada uma delas, podem esconder alguma coisa, sugerir outra, e de modo intencional, ou não. É o modo como eles se veem que é muito interessante para mim. E os pequenos detalhes vão aparecendo, aos poucos, sem atropelo. Para mim, é natural filmar desse jeito.
Você já trabalhou com esse formato, em algo específico para o teatro?
A estrutura dos meus filmes é bastante teatral, de fato – ainda que nunca tenha trabalhado em uma montagem para os palcos, por exemplo. Retorno a Ítaca (2014), meu filme anterior, seguia mais ou menos essa mesma linha. E é curioso você tocar nesse aspecto, pois ele está sendo adaptado para o teatro na Argentina. Estou muito curioso, quero ir até lá para ver se essa impressão se confirma, se um filme meu pode funcionar, também, no palco. No entanto, no caso de A Trama, discordo. Afinal, o que me interessa é o que acontece ao redor da mesa, a violência que dá para sentir na posição do Antoine, aquele sentimento que há dentro dele. Isso é muito cinematográfico, pois dá para experimentar aquela vivência que só ele carrega através de cada expressão, de cada silêncio e, claro, de cada palavra que diz.
O jovem Matthieu Lucci, que interpreta Antoine, é uma revelação, e este é o primeiro filme dele. Como você o descobriu?
Foi algo bastante simples, pra ser sincero. Tão fácil que não acreditamos e sofremos até nos darmos conta que estávamos certo desde o princípio. Nós o encontramos em uma escola, pois estávamos procurando garotos, durante o processo de seleção de elenco. E ele foi um dos primeiros a aparecer. Quando o vi, não pude acreditar. Como ele era capaz de expressar tanto, mesmo sem dizer nada? Não foi fácil, pois se trata de um adolescente, então foi difícil, tanto para ele quanto para nós. Pois ele apareceu no primeiro dia! E como não acreditamos que havíamos acertado de primeira, segui testando outros garotos, foram muitos, mais de 30, em quatro ou cinco meses de processo. Ele não só tem uma personalidade forte em frente à câmera, mas também possui uma imaginação muito rica, o que nos ajudou muito. Depois, o chamamos novamente, pois precisava ver como funcionaria com os outros. Aliás, cada vez que selecionávamos um daqueles jovens, tínhamos que reunir todo mundo para ver como o grupo iria funcionar. Foi cansativo, mas precisava ser feito.
Lucci e Marina Foïs chegaram a fazer testes juntos? Ela é a única atriz profissional, digamos, do elenco, certo?
Sim, ela é a única atriz profissional, ao menos no elenco principal. Temos um ou outro em papeis menores, mas que mal contam como participações especiais. Ao todo, foram umas 3 ou 4 semanas de ensaios. Mas isso apenas entre os garotos, antes dela chegar. Acontece que ela estava fazendo outro filme, naquela época, e o grupo já estava unido. Tivemos que esperar alguns dias até que ela estivesse disponível. Mas valeu à pena, pois o que ela faz em cena é incrível. E esse tempo, enquanto estávamos aguardando pela chegada dela, foi muito importante, principalmente para estimular o contato entre eles. Precisávamos descobrir o modo de cada um deles pensar. A personagem dela faz várias perguntas em cena, e foi mais ou menos esse o caminho dela, enquanto atriz, para criar esse entrosamento. A atenção que deu ao personagem era muito próximo do que aconteceu na vida real. Ela é muito motivada, interessada, e a ligação com Matthieu foi instantânea. Eles acreditaram um no outro desde o primeiro dia. Foi incrível. E o melhor é que ela estava interessada em trabalhar desse jeito. Ficou muito impressionada com a qualidade do trabalho dele, ainda mais por ter chegado de coração aberto, sem esperar nada, e se surpreendeu com o que encontrou.
A Trama teve sua première no Festival de Cannes. Como foi a recepção por lá?
Foi muito impressionante o que aconteceu. Principalmente pelo fato de termos sido exibidos na mostra Um Certo Olhar, que é paralela. Mas perceber toda a atenção que recebemos da imprensa foi incrível. Parecia que estávamos na seleção principal. Foi muito importante para mim, ainda mais pela quantidade de donos de cinemas que viram e amaram o filme. Foi muito fácil, depois, achar onde exibir, nos trâmites da distribuição, ao menos na França, no circuito comercial francês. Outra coisa bacana é que em Cannes temos pessoas de todo o mundo assistindo ao filme, e a impressão que tivemos é que todo mundo entendeu, compreendeu o que a gente tava querendo dizer com essa história. Mas não foi só lá, não. Isso percebi também nestas sessões que tivemos na última semana em São Paulo, em Recife. Todas tiveram momentos de perguntas e respostas após, e foi muito interessante o que aconteceu nestes encontros. As pessoas realmente queriam saber mais a respeito do nosso filme, o que me deixou muito feliz.
O filme, aliás, já estreou nos cinemas franceses, certo?
Sim, e também na Bélgica e na Suíça também. O resultado foi incrível. Não chegou a ser um blockbuster, é claro, mas foi além das nossas expectativas. Tivemos muitas sessões de pré-estreia na França, e em todas elas pude perceber o quanto A Trama faz as pessoas pensarem a respeito do que viram na tela. Eu mesmo não tenho respostas para todas as perguntas que o filme propõe, e por isso mesmo é interessante dividir com a plateia também essas minhas inquietações.
Depois de dois filmes realizado em Cuba – o coletivo 7 Dias em Havana (2012) e o drama Retorno a Ítaca (2014) – como foi voltar a filmar na França?
Não foi muito diferente. Aliás, para mim, filmar na França ou em qualquer outro lugar, o processo é o mesmo. O que importa é a história. Quando estamos filmando onde não é o nosso próprio contexto, talvez seja preciso ter mais atenção, conhecer melhor por onde estamos nos movimentando, ter um processo de ambientação antes, para saber como tudo funciona. Mas também nos deixa mais curioso, sobre algo que não entendemos muito bem. É um pouco diferente, claro, principalmente no modo de trabalhar, reconheço que é necessário estar mais junto dos atores, conseguir se expressar na língua deles, para que se apropriem do texto. É preciso encontrar a energia certa para cada momento. E isso é algo que gosto de fazer.
O que falta, então, para vir fazer um filme no Brasil?
Um convite, ora! (risos) Quero dizer, no momento não tenho nada previsto nesse sentido, mas vai saber o que o futuro nos reserva? Vai depender do que for ser feito. Pode ser que venha a filmar por aqui, é um lugar que adoro, me sinto em casa quando estou no Brasil. Então, quem sabe? Quando estou aqui sinto um sentimento muito forte, uma sensação de respeito pelo país, e seria preciso expressar isso em uma história forte. Realmente não sei como se faria. É uma boa pergunta, pois não havia pensado a respeito ainda. Gosto de filmar situações que me fazem entender melhor aquela situação, o lugar ou o contexto retratado. E o Brasil, definitivamente, é um lugar que desejo conhecer melhor.
Esta não é sua primeira vez no Brasil, acredito. O que conhece do nosso cinema?
Sim, vim muitas vezes antes, umas seis ou sete. Todos os meus filmes estrearam por aqui, então sempre busco estar presente. Quando ao cinema brasileiro, já vi alguns, com certeza. Tem alguma coisa do Cinema Novo, lá dos anos 1960, que até hoje ressoa importante para mim. Mas atualmente, na França, é possível ver algo também nos cinemas. O último a estrear comercialmente, e que fez muito sucesso, foi Gabriel e a Montanha (2017), um filme que gostei muito. Estava com uma grande expectativa, e vi no primeiro dia. Gostei da quebra de estilo do diretor, principalmente porque havia assistido ao longa anterior, Casa Grande (2014), e por isso estava curioso pelo próximo filme dele. Estes são filmes que não estamos acostumados a ver por lá, e é sempre é um bom sinal quando nos deparamos com algo novo.
Como tem percebido a relação do seu cinema com o nosso país?
O que tenho percebido é muito interesse, algo forte de curiosidade e respeito. Muitos aqui já viram meus trabalhos anteriores, possuem uma fidelidade em relação à minha obra, e isso é muito bacana. O Brasil é um dos poucos países do mundo onde todos os meus filmes foram distribuídos, como disse anteriormente, e sempre tiveram uma repercussão muito boa. Isso é muito importante, e por isso volto sempre que me convidam. Tenho, aqui, uma relação muito bacana, um compromisso, até, que respeito e preservo com imenso carinho.
Entre os Muros da Escola (2008) é, provavelmente, o seu maior sucesso. Como os fãs deste trabalho estão recebendo A Trama?
São dois filmes bem distintos mas, ao mesmo tempo, muito similares. Há, sim, muitas conexões entre eles. Por exemplo, em ambos precisei descobrir como filmar um grupo, perceber como os adultos olham os jovens, e pensar no que um transmite ao outro. E não só numa única direção, mas na comunicação que se estabelece entre eles. Afinal, tudo pode mudar a qualquer instante. Não acredito num discurso que exista só num sentido, é preciso funcionar para ambos os lados. Por isso é importante ter esse apoio dos atores profissionais, que ficam tentando lidar com duas ou três câmeras ao mesmo tempo, pois me interessa filmar as situações reais, com aquela energia natural que surge de acordo com a proposta do filme. Então, eles são próximos, mesmo. No entanto, A Trama é mais ficcional, e isso era importante para mim, pois me ajudou a entender meu filme. O Antoine tinha esse desejo de ficção, de criar, e explorar esse sentimento. Isso me colocou num modo que favoreceu a relacao entre os dois personagens, pois era algo que já acontecia. Foi um processo muito rico, e necessário, que se revelou importante para mim e fundamental para ter o filme que estava buscando.
(Entrevista feita por telefone direto do Rio de Janeiro em novembro de 2017)
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