Nascido em 1979 na cidade de Salvador, Bahia, Daniel Lisboa faz dos seus filmes uma forma de comunicação – e identificação, acima de tudo – com o lugar onde mora até hoje. Tanto que esse é o tema do seu longa de estreia, Tropykaos. Premiado na Mostra de Tiradentes em 2016, vai ganhar agora um lançamento regional e progressivo: primeiro em Salvador, para depois seguir por outras capitais do país. Em cena, acompanhamos o drama de Guima, um poeta acuado pelo Sol que toma conta de toda a cidade. Filmado em 2013 e lançado em 2015 pela Cavalo do Cão Filmes, o longa teve todas as suas cenas filmadas na capital baiana, principalmente no centro e nos bairros do Comércio e Cidade Baixa. E depois de passar pela Mostra Internacional de Cinema de SP, pelo Panorama Coisa de Cinema, Janela Internacional de Recife, Semana dos Realizadores do RJ e Mostra do Filme Livre, finalmente chegará ao grande público. E aproveitando o lançamento, nós conversamos com exclusividade com o diretor. Confira!
Olá, Daniel. Como surgiu a ideia de Tropykaos?
Tropykaos é um projeto que já tem uns 12 anos. É uma ideia antiga, que surgiu, à princípio, comigo pegando relatos de pessoas que tinham dificuldade de conviver com o sol da nossa cidade. Salvador não é para os fracos, entende? (risos). Então, falei com amigos, conhecidos, até mesmo turistas que vinham pra cá. Todo o tipo de gente que passava por esse problema. Fui fazendo essa pesquisa, recolhendo relatos, e juntando material. Tinha até casos de pessoas que morreram de insolação, em tempos mais antigos. Era muita coisa. E, aos poucos, fui me aprofundando. Fui reunindo, falando com pessoas com hipersensibilidade ao sol, fotofobia… fui pirando nesse tema. Até chegar nesse personagem, alguém que morasse em uma cidade muito ensolarada, em que o próprio cartão postal do lugar fosse o sol, entende? Só que ele tem aversão aos raios ultraviolentos, como chama no filme. Essa é a primeira camada narrativa do filme. A gente construiu um personagem bem contraditório, no entanto. Com diferentes camadas temáticas, possíveis interpretações. Tem várias leituras, então pode funcionar com mais de um tipo de espectador.
Daniel Lisboa, teu nome, é também o nome de um bairro de Salvador, não é mesmo? A tua ligação com a cidade é tão forte assim? Como isso é visto no filme?
Sim (risos). Mas o bairro não foi batizado por minha causa, e nem o contrário. É só uma coincidência. Olhe só, este é um filme diretamente ligado à cidade de Salvador. Ela é como um personagem em grande parte dos meus projetos. Teria muita dificuldade de fazer esse filme, ou qualquer um dos anteriores, em um outro lugar. Sou nascido, criado e hospedado em Salvador. Por mais que já tenha andado pelo mundo, minha referência é muito essa cidade. Os temas que quero abordar me foram dados por esse lugar. Todos os trabalhos que fiz dialogam direto com a cidade. Um dos meus primeiros curtas, O Fim do Homem Cordial (2004), chegou a ser censurado pelo governo na época. Era uma ficção sobre um grupo terrorista que sequestrava o ACM e exigia que a emissora dele desse a notícia. Ficou bem bacana, mas resultou num grande problema. O Antônio Carlos Magalhães era o governador, e mesmo assim o filme acabou ganhando um festival promovido pelo governo. Ou seja, além de terem que engolir o filme, tiveram que pagar um prêmio. Então é isso, venho tratando a cidade nos meus filmes.
Então, o que vemos em Tropykaos é um delírio que só poderia acontecer em Salvador?
Há um ditado por aqui que diz: “Pense num absurdo, em Salvador tem precedentes”. Isso é dito até em Tropykaos, por um personagem. Mas não é uma disputa sobre esta ser a cidade mais quente do mundo. Ela tá como é, o retrato que faço é quase um documentário. O problema é o Guima, que é muito particular. O drama que vive vem de dentro dele. No filme, assistimos ao Guima enfrentando os seus fantasmas. Ele não consegue se libertar das suas origens, no caso, representadas pelo ar-condicionado, pelo plano de saúde da família. É um cara que se diz poeta, mas você vê pouca poesia nele. Se diz marginal, mas quando precisa, quando a coisa aperta, vai na casa dos pais pedir dinheiro. Ele é meio contraditório. E o filme ataca o protagonista o tempo todo. É algo que gosto, pois não vem na construção clássica do herói. Ele é um anti-herói, na real.
O Gabriel Pardal, o protagonista, literalmente carrega o filme nas costas – Tropykaos é o drama vivido pelo Guima. Como foi trabalhar com ele?
Foi muito difícil encontrar o ator que ia fazer o Guima. Fizemos uma bateria de testes, falamos com dezenas, centenas de caras diferentes, e não achava ninguém. Precisava de um ator que tivesse um estereótipo, sabe, algo mais frágil, que viesse do olhar, que passasse uma certa fragilidade, sem ser fraco, ao mesmo tempo. Até encontrei alguns atores interessantes, gente que me agradava por um ou outro motivo, mas que não que fosse possível acreditar nesse perfil, sabe, de ir na mãe pedir dinheiro e tal. Quando vi o Gabriel Pardal, no entanto, a coisa mudou. Ele morava no Rio de Janeiro na época, foi uma indicação de um amigo, e ao conhecê-lo achei o cara que queria. Não tinha o corpo potente para estar nas ruas. Era alguém que estava se forçando para estar ali, mas sem as armas para isso. Ele meio que já veio pronto, portanto. Não que ele seja o Guima, mas é possível essa leitura nele. E trabalhamos muito essa interpretação com ele. A Amanda Gabriel e eu fizemos essa preparação com ele, no sentido de buscar essa exaustão. Há cenas no filme com mais sete minutos, sem corte, só no olhar, e ele precisava estar acabado, quase no limite. Era preciso deixar a coisa acontecer e ver até onde ele poderia ir. E foi assim que chegamos ao ponto que eu queria.
O personagem sofre com o calor intenso, mas quando sai à rua está sempre agasalhado, e não aproveita o mar de Salvador para se refrescar. Por quê?
Se você for olhar, os moradores dos desertos andam completamente cobertos, o tempo todo. Ou seja, é mais interessante estar com o corpo protegido, e sentindo calor, do que estar exposto aos raios solares. Essa foi a lógica que usamos com o Guima. No momento em que os raios batem nele, vão surgindo feridas. Ele passa por essa transformação, é algo físico que acontece com ele. Não é um capricho, uma incoerência: é uma necessidade. Por isso se comporta assim.
O que está por trás de Tropykaos? É apenas um conto, ou há um discurso político e social por trás, como analogia?
Cara, eu acho que tem esse discurso, sim – ou melhor, esses discursos. São diferentes interpretações possíveis. Tem pessoas, no entanto, que não veem com tanta clareza. Outras já me disseram que o filme é bobo. Por um lado, é muito nítido que a gente não quis se aprofundar em nada. Eu, pelo menos, estava muito interessado em um certo grau de entretenimento do filme. Ele tem uma pegada pop, e é intencional isso. Por mais que se crie uma angústia, tanto nos personagens como nos espectadores, a arte é pop. Tudo é pop. Queríamos fazer um filme de fácil consumo, que não fosse tão hermético.
Mas qual seria a grande mensagem do filme?
A mensagem que tem ali é essa, que existem pessoas que viveram dentro de um privilégio e nem tem consciência disso. E quando tentam se aproximar do real, acabam não conseguindo. Quando o Guima queima, é isso que acontece, um rito de passagem. Ele precisa queimar para prosseguir de outra forma. Essa agonia que ele tem é de descobrir quem ele é, como a origem dele acaba interferindo nessa vivência atual da cidade.
Tropykaos estreou na Mostra de Tiradentes em 2016, certo? Uma longa jornada até chegar às salas. Como foi esse caminho e quais as expectativas a partir de agora?
O caminho é longo por causa da distribuição. Para distribuir um filme, hoje, ou você tem uma história pela qual as distribuidoras se interessam de cara, ou então vai ter que esperar por um edital em que você seja premiado e com essa grana possa tocar por conta própria. No caso do Tropykaos, foi por esse segundo caminho que tivemos que optar – ou melhor, não foi uma opção, foi o que nos restou. Tivemos que esperar os tempos de um processo como esse, com um filme produzido em 2015 e chegando às telas só em 2018. Fomos premiados em Tiradentes, o que foi muito legal, por isso é uma pena essa demora toda. Mas é o que temos para hoje. Os planos, agora, são esses: estamos lançando em Salvador, depois vamos para o Rio de Janeiro e São Paulo. Já estão certas, para as próximas semanas, exibições em Porto Alegre, Aracaju e Fortaleza. Ou seja, estamos avançando. Decidimos começar por Salvador, é claro, por razões óbvias (risos).
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / Salvador em abril de 2018)
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