Miguel De Almeida começou no jornalismo, passando por boa parte dos principais periódicos brasileiros, cobrindo esportes, política e, principalmente, cultura. Cronista de mão cheia, ele é figura central em alguns momentos de reformulação editorial de jornais de grande circulação, tais como a Folha de São Paulo e O Globo. Suas experiências na televisão e no cinema não são menos impressionantes. Com Tunga: O Esquecimento das Paixões (2019), documentário que chega primeiramente às salas de cinema e, posteriormente, fará um circuito internacional de museus e espaços dedicados às artes, ele investiga a obra de Tunga, um dos artistas plásticos brasileiros mais inventivos. Conversamos brevemente com Miguel por telefone, no dia seguinte à pré-estreia carioca desse seu mais novo filme. Simpático e empolgado, ele falou sobre a relação íntima com Tunga e suas concepções estéticas. Confira.
Qual era seu contato prévio com as obras do Tunga?
A história é anterior ao próprio Tunga. Fui amigo do pai dele, o Gerardo de Mello Mourão. Trabalhávamos na Folha de São Paulo. Eu era “foca”, tinha 18 anos, e ele correspondente na China, já na casa dos 60 anos, uma lenda. Passei a frequentar o apartamento deles em Copacabana. Foi lá que conheci o Tunga, que ainda estava começando a sua carreira. Passei a ser amigo dele também. Nos últimos anos, o Tunga viu um filme meu, o Não Estávamos Ali para Fazer Amigos (2015). Foi quando discutimos a ideia de fazer um documentário fake sobre um artista que, por acaso, se chamava Tunga. Ele sairia pelo mundo buscando materiais para construir uma suposta obra. Mas o Tunga verdadeiro ficou doente, atrasamos o começo das filmagens, mas chegou num ponto em que ele não tinha mais condições, mesmo. Combinamos que eu faria outro filme, um doc ficcional que partiria de fatos.
Desde o princípio era essencial para você estabelecer formalmente um diálogo com a obra dele?
Eu queria pegar o processo de criação dele e explodir dentro da narrativa. Não era, de modo algum, minha intenção fazer um documentário jornalístico ou informativo. O filme é feito de partículas que juntam por atração e posteriormente se soltam. Em certos momentos são as performances, depois parte-se a outros processos. Não me interessava o didático, mas sim lançar mão de uma linguagem concernente ao processo criativo do Tunga. Tanto que acredito que o filme possa ser visto facilmente até mesmo por quem não conheça arte contemporânea, muito menos o Tunga. O documentário gera curiosidade não sobre o personagem, mas acerca dos acontecimentos em torno dele.
E como foi lidar com a vastidão de material de arquivo à disposição? É particularmente forte quando Tunga aparece em cena…
Nos últimos anos, o Tunga organizou o atelier que aparece no filme, reunindo material de anos de trabalho. Lá havia registro das performances e coisas cruas em prateleiras desorganizadas, como numa oficina de montagem. Mergulhei naquele universo com ajuda de pessoas que trabalharam com ele, sugeridas por ele. Importante dizer, o filme é estritamente uma visão minha sobre o Tunga, não algo para conhecedores concordarem. Não desejo defender teses ou pensamentos estéticos. É uma história de aventura com dois grandes personagens, filho e pai. Fui catando o que me interessava. Os depoimentos, por exemplo, não são de amigos de Tunga, mas de contemporâneos, companheiros de jornada. Com isso, meu desejo era encorpar a narrativa com visões e histórias diversas.
Me corrija se eu estiver errado, mas o Tunga parece um filme muito construído durante o processo. O quanto o resultado se distancia da intenção original?
Pelo menos uns 35% surgiram efetivamente no processo. Acho legal permitir que fatores externos interfiram no resultado. Aquela coisa que o Oswald de Andrade falava da “contribuição milionária dos erros”, neste sentido os acasos e as coincidências. Sempre estou aberto à chegada do inesperado, do inusitado. Não quero, como criador, algo burocrático e esquemático. O papel de quem cria é lidar com a imprevisibilidade. Você sacou bem isso.
Nos tempos em que vivemos, com repressões na área da educação e da cultura, o que você acha mais evidente como sintoma da atualidade da veia iconoclasta de Tunga?
Acredito que basicamente a questão da intuição. O que me atraiu no Tunga, como amigo e artista, foi que ele não estava preso a uma realidade estrita, sempre foi um cidadão do mundo. Sua obra e pensamento são desterritorializados, não comprometidos com as respostas ao cotidiano imediato. O Tunga não estava interessado em palavras de ordem. A coisa maior é reagir não como “nós” versus “eles”, é para além dessa dicotomia. A vida é muito maior que um tweet, não cabe ali. Os reacionários sempre existiram e o processo civilizatório é constante.
(Entrevista concedida por telefone, diretamente do Rio de Janeiro, em maio de 2019)