Exibido na mostra competitiva do 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, o longa-metragem Última Cidade (2020), de Victor Furtado, representa o cinema cearense na disputa pelo troféu Mucuripe este ano. O resultado impressionou a plateia do Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, ao combinar uma quantidade vertiginosa de gêneros: drama, faroeste, distopia, documentário, experimental.
Na trama, João (Júlio Adrião) decide atravessar o país rumo à grande cidade onde moram os homens que tomaram a sua propriedade. No caminho, ele encontra diversos marginais com experiências traumáticas nesta violenta terra de ninguém. Assim, o neo-Dom Quixote encontra seu Sancho Pança (Hector Briones) e a dupla parte rumo ao enfrentamento do empresariado. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre este projeto tão ambicioso:
Como define o filme entre faroeste, distopia, fantasia, documentário?
Existia a intenção de experimentar gêneros através de uma narrativa que fizesse alusão a uma escola clássica, com a jornada do herói, mas em maneira diferente de trabalhar. Quis embaralhar os gêneros, usando o que a gente achava mais interessava dentro do pouco domínio que tenho de cada um deles. Mais do que construir um gênero único, bem definido dentro da linguagem cinematográfica, eu queria experimentar qual deles comportavam a experiência para a qual eu queria dar forma. Buscava retratar um herói atravessado por estes temas e formas encontrados no caminho. Para citar um exemplo, quando o João é acolhido pela primeira e única vez na cidade, ele é recebido por personagens que trazem relatos documentais. Naquele momento, não me cabia aprisionar as pessoas com seus relatos dentro de uma lógica estrita do gênero. O cinema passa pela vida das pessoas e pode ser muito mais violento do que a gente gostaria. A forma de abraçar os personagens interpretados por Maria do Carmo e José Ruffino foi incorporar os relatos, dando apenas uma conformidade que não fugisse tanto do que o filme constrói.
Muitas referências são utilizadas e assumidas nos letreiros. Durante o debate, você disse que “não inventou nada”. O que quer dizer com isso?
Gosto muito dessa noção. Nossa história enquanto seres humanos, enquanto espécie, foi traçada ao longo de milhares de anos. Faz apenas cinco mil anos que passamos a registrar nossa trajetória intelectual, social etc. Para mim, Última Cidade é uma montagem de todos esses registros que já existem, seja nas vidas reais de alguns personagens, seja nesse campo referencial que dá forma ao roteiro. Mais do que eu querer de repente inventar uma história, eu trouxe a história que o cinema brasileiro já conta. Ao invés de inventar uma América Latina nova, trouxe o que Memória do Fogo e As Veias Abertas da América Latina, do Eduardo Galeano, nos oferecem. Ao invés de inventar a trajetória de um herói alucinado e alucinante, ofereço minha visão sobre Dom Quixote e Sancho Pança. Acredito que seja este o caminho: não estou na posição, com este filme pelo menos, de propor alguma invenção. Apenas quero rearranjar os artefatos que a nossa História já possui. Não é à toa que João escava o tempo inteiro: na cena inicial, no sonho, no final, com a escavadeira. O tempo todo, escavamos para encontrar os antepassados e resgatar uma ancestralidade, para então reconfigurá-la.
Gosto da ideia de que, ao invés da morte, a derrota possa implicar na assimilação às ideias do inimigo. O homem vencido passa a reproduzir o sistema que combatia.
Essa sempre foi uma das forças do filme: você acompanha a jornada de um herói, e de repente há uma inversão. O herói não conquista os objetivos dele, ele é vencido. O dragão da maldade venceu o santo guerreiro, e neste filme também é assim. Essa inversão sempre existiu no roteiro, mas o processo alucinante da pré-produção nos levou a reconstruir essa persona. O roteiro, disponível no site da Marrevolto, tem um personagem vencido pelo inimigo em comum, um sistema opressor. No filme, isso é representado por uma obra de Fortaleza, o Terminal Marítimo de Passageiros, obra dantesca de um Brasil rico e desenvolvimentista, mas que atropela e aniquila as subjetividades da cidade, relegadas à margem. É imposto ao João se tornar representante deste projeto. Ele traz uma ferida ainda mais aberta no rosto, e precisa trabalhar. O filme é muito pessimista nesse sentido, mas abre uma consciência do outro. Discuti bastante com o Pedro Diógenes, diretor assistente e grande parceiro. O final foi discutido enquanto a gente filmava. Não queria terminar o filme em total conformidade com a luta vencida, a ideia era mostrar que o João ainda tem consciência de que sua ferida está aberta.
A trilha sonora chama a atenção. Ela tem um tom operístico, bastante violento.
Esse elemento se manteve fiel desde a concepção do projeto. A gente queria usar uma trilha sonora constante, a exemplo dos filmes que a gente admira do Glauber, Pasolini e tantos outros. Nestes casos, a trilha ajuda a configurar um tom épico, mesmo que a história seja em tom menor. Isso foi fundamental para trabalhar os gêneros, e desenvolver a trilha sonora e musical. Gosto muito do trabalho do Pedro Fonseca, grande amigo que faz parte de um longa documentário que estou finalizando agora, sobre dois músicos da cidade. Ele tem um pé na música erudita contemporânea. Conseguimos trazer essa experiência para o jogo com sintetizadores, em musicalidade eletrônica, conversando com arpejos harmônicos, caminhos melódicos mais próximos do épico. Assim, a gente poderia sentir o que os personagens sentem. Existe o tema do João, o tema do Tahiel, o tema do sonho, o tema da entrada na cidade. Os dois temas do João e do Tahiel se encontram, depois se quebram. O tema do início se reproduz no final, mas totalmente quebrado. Havia a necessidade, desde a concepção, de que a música falasse com o filme, ao invés de apenas sublinhá-lo ou dar suporte para ele. A música é quase um personagem.
Júlio Adrião se tornou nosso cangaceiro contemporâneo, caubói do cinema autoral. Penso em Sertânia, O Homem que Matou John Wayne.
O trabalho com ele foi maravilhoso, e pude contribuir para que ele desse essa guinada. Nos dois últimos dois anos, ele começa a assumir protagonismos – e mesmo como coadjuvante, em Sudoeste (2011), ele se aproxima da figura do homem rural. Quando ele chegou em Última Cidade, tinha acabado de filmar Sertânia (2020). Para ele, ator carioca, foi uma experiência interessante assumir dois protagonistas de filmes nordestinos. O Júlio traz um perfil, pelo fenótipo mesmo, mais sisudo. Ao mesmo tempo, o corpo dele de ator é repleto de delicadeza e nuances. Ele contribuiu muito para encontrar o João que eu buscava: um homem mais velho, cansado, quase naturalista.
O Júlio está acostumado a fazer isso dentro do cinema, mas no caso de Última Cidade, o João naturalista começa a vacilar. Ele trabalhou os vacilos ao se encontrar com personagens dotados de forte caráter antinaturalista. João delira e vira essa persona mais teatral. A escolha do Júlio, ou de qualquer outro ator que viesse para o filme, dependia de uma trajetória muito forte dentro do teatro físico. Júlio fez A Descoberta das Américas, um monólogo em que ele sustenta mais de 90 minutos sozinho em cena. É pura fisicalidade; ele termina banhado em suor. Ele estudou a escola italiana, estudou o clown e outras figuras do teatro físico, que eram fundamentais para construir o João.
Como enxerga os meios de viabilizar e exibir ao público, no Brasil de 2020, uma obra autoral como Última Cidade?
Confesso que ainda não sei responder a essa pergunta de forma propositiva. Construímos, durante quinze anos, políticas públicas de cultura que conseguiram dar terreno para a produção filmes muito diversos. Acredito que nunca antes no cinema brasileiro tivemos uma produção tão plural quanto agora, o que é incrível. A periferia faz cinema, o campo faz cinema, ou seja, não é apenas a elite que domina este discurso. O cinema ainda é muito burguês: se você não consegue adentrar espaços de poder, tem dificuldade em construir narrativas. Por isso, se a gente pegar toda a história do cinema brasileiro, a grande maioria dos filmes é construída pelo ponto de vista da classe média burguesa.
Hoje, temos a visão burguesa sendo disputada com outras visões, nem de classe média, nem burguesas, nem brancas. Isso traz uma força inegável ao cinema brasileiro. No entanto, as políticas públicas não criaram formas de distribuir e exibir uma produção tão diversa. Assim como em Última Cidade, ficamos marginalizados num cinema de nicho. Talvez a gente consiga passar uma semana em cartaz em algumas cidades, se a gente encontrar 10 mil reais para bancar isso. Existe um gargalo na distribuição e na exibição. A gente espera desde 2013, 2014 a implementação do programa federal Cinema Perto de Você, que deveria construir vinte salas de cinema no estado do Ceará. Esse teria sido o circuito ideal para um filme como o nosso. Não são filmes que, em geral, oferecem exatamente o que o público quer, ou que se pressuponha o que o público queira.
Estamos na cortina de fumaça de um país que voltou a ser o Brasil de 1920, 1930,
onde a arte está em último lugar.
Como avançamos? Confesso que não sei como avançar para além da Internet. É uma plataforma que ajuda a acessar muitos filmes. Talvez sejam criadas plataformas com força para nichos específicos de cinema, equivalentes à Netflix para o público geral. Seriam plataformas a exemplo do Mubi, exibindo esses filmes para quem tem interesse por eles. Estamos num momento onde os filmes não conseguem se impor para chegarem às pessoas: são as pessoas que precisam procurar os filmes que lhes interessam. Estou entendendo isso agora em minha trajetória de trabalho, por ser o primeiro longa. Ainda não temos um planejamento e uma perspectiva boa de distribuição e exibição para Última Cidade. Estamos na cortina de fumaça de um país que voltou a ser o Brasil de 1920, 1930, onde a arte está em último lugar. Se a arte nunca foi central nas políticas disputadas pelo país, como conseguimos sobreviver com nossos filmes à margem da margem do último lugar das prioridades de uma nação? Consigo só olhar para a nossa paisagem histórica, política e econômica.
Não consigo propor nada ainda: estou tentando ajeitar as contas desse ano, porque vivi de auxílio emergencial durante cinco meses. Agora estamos retomando algum trabalho com o último edital que restou da Era Temer. Daqui para a frente, a Marrevolto não tem projetos, porque não tem editais, e as empresas não vão bancar a gente. Nossa preocupação com a vida é tão pragmática que não podemos ter algum tipo de aliança ou parceria, no sentido de ajuntamento, para podermos oferecer os filmes às pessoas. Eu realmente não sei. Filmes incríveis no cinema brasileiro não tiveram grandes estreias, não passaram pelo cinema arrebatando o público. Mas eles estão aí para a gente assistir, e às vezes só descobrimos que eles existem dez, quinze anos depois. Eu não sei se vamos ficar relegados a esse lugar da história. Assim como dizia o querido Andrea Tonacci: fazer filmes com olhos livres nos relega à obscuridade, por mais que a gente procure a luz.