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Para o público internacional, Sami Outalbali é conhecido principalmente como o Rahim da série Sex Education (2020 – 2021). No entanto, o ator francês tem construído uma carreira expressiva em seu país nos últimos anos, atuando em comédias de sucesso (Les Tuche), séries de fantasia (Mortel) e dramas (Lola Vers la Mer). No último Festival de Cannes, ele apresentou seu novo trabalho, no drama Um Conto de Amor e Desejo (2021), de Leyla Bouzid.
No filme, ele interpreta Ahmed, garoto que vive na periferia de Paris e ingressa na Sorbonne para estudar literatura. Na instituição, descobre tanto a literatura erótica árabe quanto a companhia de Farah (Zbeida Belhajamor), garota tunisiana que acaba de chegar à França. Enquanto Ahmed tem uma visão idealizada do amor e da sexualidade, a colega explora seu corpo e seus desejos sem tabu, o que transforma a percepção do garoto.
O filme é exibido dentro do Festival Varilux de Cinema Francês, que vai até o dia 8 de dezembro. Sami Outalbali veio ao Brasil divulgar o projeto, e o Papo de Cinema conversou em exclusividade com o ator sobre o filme:

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O ator Sami Outalbali

Como você descreveria a relação de Ahmed com a sexualidade e o desejo?
Para ele, é algo confuso, desconhecido. A única oportunidade em que pode falar a respeito, ele tenta expressar algo ao amigo, que é a pior pessoa para escutar suas dúvidas, porque não tem uma vida amorosa e sentimental muito expressiva. Este colega é dominado por uma cultura de clichês bastante pobres sobre o amor. Já Ahmed tem muitas questões, passa o tempo todo refletindo a respeito, mas encontra como resposta os preconceitos de Karim (Bellamine Abdelmalek) e a percepção de Saidou (Diong-Kéba Tacu), que transforma tudo em fetiche. Felizmente, ele tem uma abertura com os pais, que se oferecem ao diálogo. Ahmed vive em busca de algo que não sabe bem o que é, e então finalmente encontra esta garota, que representa o oposto do que sempre lhe ensinaram. Ele acreditava que suas crenças representavam o mundo inteiro, e diante de Farah, descobre a existência de um mundo mais amplo que o perturba. 

Ahmed e Farah têm relações muito diferentes com suas raízes árabes.
Com certeza. Devido ao fato do pai de Ahmed não falar muito a respeito, ele tem apenas uma idealização da Argélia — no bom ou no mau sentido do termo. Esses fetiches se aplicam ao Magrebe, às mulheres que vivem lá e àquelas que vêm a Paris. Já Farah é uma jovem extremamente forte, ciente do que realmente é a vida na Tunísia, porque acaba de chegar de lá. São pontos de vista totalmente diferentes sobre a moral e a moralidade. O mais interessante é ver como os preconceitos são projetados sobre as pessoas erradas. Ahmed tem uma ideia antiga e preconceituosa das pessoas vindas de Argélia, Marrocos, Tunísia e Egito, e acredita que, como Farah vem de lá, ela tem que corresponder a este comportamento. Na verdade, é o contrário, e acho isso lindo no filme: os garotos da periferia são conservadores, com um olhar distante da realidade por ignorância. Este é um filme sobre a ignorância de si, com tudo o que isso pode implicar, e a ignorância dos outros, dos estrangeiros e do mundo.

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Você conhecia os poemas lidos no filme? Mergulhou nessa literatura árabe medieval e erótica?
Conhecia um pouco, só, mas meu interesse cresceu por causa do filme. Foi uma descoberta maravilhosa, porque isso me permitiu viver algo próximo do que Ahmed experimenta. Ele passa a descobrir sua própria cultura, e isso vale também para a minha cultura. Passei a me sentir mais próximo destas referências. Esta é uma das grandes belezas de fazer cinema: ter a oportunidade de conhecer e explorar novos mundos graças a um filme. Eu nem sabia que essa literatura erótica existia, mas descobri que ela foi fundamental para a literatura moderna, porque inspirou vários autores. É surpreendente que ela não seja mais difundida hoje, mas obviamente isso foi deixado de lado conforme os costumes se transformaram. Fiquei feliz de ter contato com isso para o filme.

Como foi a experiência de ter o olhar de uma diretora mulher num filme sobre a sexualidade masculina?
Isso muda um milhão de coisas! Finalmente, não é um olhar enviesado, repleto de desejo através da câmera. Não é um olhar que busca excitar os homens e nem agradar os olhares dos homens. Leyla estava muito mais próxima dos sentimentos que buscava expressar a partir dos personagens. Não posso dizer que essa delicadeza seja inerente a todas as mulheres, longe disso, mas no caso, era uma característica muito forte de Leyla, que demonstrou muito pudor e honestidade em sua abordagem. Ela buscava a verdade, a beleza e a pureza da narrativa. Achei isso magnífico. Talvez seja por isso que o filme tenha dado certo, na minha opinião: se fosse filmado com outro olhar, e outras intenções, ele se perderia. Aqui, existe cuidado e elegância na representação dos corpos e dos sentimentos. 

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De fato, o erotismo do filme fica nas ideias, ao invés das imagens.
O erotismo está no ar do filme, no DNA do filme. Dá para sentir este erotismo na sala de cinema durante a sessão. Mas ele nunca se explode de maneira explícita. Ele está presente, mas da melhor maneira possível: sugerida. É isso que há de mais erótico: o poder da sugestão. Se tudo fosse mostrado, se tornaria pornografia, mas o erotismo consiste em brincar com o que se mostra e o que se esconde. Para mim, o filme mergulha nessas fronteiras. 

Você acompanhou as reações dos espectadores desde o Festival de Cannes? Penso especialmente nos espectadores árabes.
Não pude acompanhar as sessões no Magrebe. Sei que Leyla apresentou o filme por lá, porque ele teve lançamento comercial na Tunísia. As reações foram ótimas. Mas não posso falar por mim próprio. Em Cannes, fiquei surpreso com as reações lindas: as pessoas mergulharam por completo na história, interpretaram essa história de amor da melhor maneira possível. Foi um acolhimento muito afetuoso.

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Ahmed pode parecer como o avesso de seu personagem em Sex Education, que é mais seguro com a sua sexualidade. 
Na verdade, Leyla veio conversar comigo sobre este filme mais ou menos na mesma época em que fiz o primeiro teste para Sex Education. Talvez tenha sido um pouco antes. As filmagens de Um Conto de Amor e Desejo aconteceram logo depois de eu terminar de filmar a primeira temporada da série. Foi super divertido mudar completamente de personagem. Mas na hora, confesso, nem pensei que um personagem poderia se opor ao outro, ou completar o outro. Não foi uma escolha voluntária, mas a experiência acabou sendo agradável passar de um comportamento ao seu oposto. É verdade que os dois personagens têm alguns pontos em comum, mas sobretudo, têm diferenças em sua psique. São conceitos de masculinidade bem diferentes. Para mim, como ator, o melhor é poder mostrar essa variedade. Assim a gente pode deixar claro que não existe apenas uma masculinidade: existem várias masculinidades que não implicam numa sexualidade em particular. Infelizmente, vivemos numa sociedade centrada numa única versão do masculino, que oprime as mulheres, mas também oprime seu próprio gênero. Muitos homens reprimem uma parte importante de sua masculinidade, e gosto de poder explorar essa variação e mostrá-la ao espectador. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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