Em 2020, Um Crime em Comum foi uma das produções que representou o Brasil no Festival de Berlim, embora se trate de uma coprodução com a Argentina e a Suíça. O diretor Francisco Márquez se aventura pelo suspense psicológico ao narrar a história de uma professora de sociologia (Elisa Carricajo), de classe média alta. Numa noite chuvosa, o filho de Nebe (Mecha Martínez), sua empregada doméstica, bate à porta desesperadamente. Com medo, Cecilia não abre. No dia seguinte, o garoto é encontrado morto.
O projeto envereda por um complexo dilema moral: Cecilia deveria ter prestado socorro a Kevin (Eliot Otazo)? Ela pode ser considerada responsável pelo destino dele? Enquanto carrega forte culpa e começa a perder noção da realidade, a protagonista se torna o meio para Márquez debater a luta de classes, a violência policial e a distância entre teoria e prática nos meios progressistas. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o filme, que estreia nos cinemas esta quinta-feira, 14 de janeiro, pela Vitrine Filmes. Ao final, o produtor brasileiro Daniel Pech se juntou à conversa e trouxe algumas ideias sobre a cooperação entre países:
Por que queria ter uma professora de sociologia progressista no papel principal?
Não tinha pensado nesta questão em particular antes, mas a escolha me pareceu natural. Isso tem a ver com várias questões: eu estudei sociologia antes de fazer cinema, este é um universo que conheço bem. Além disso, queria ter uma personagem ligada à intelectualidade, capaz de produzir um discurso. Cecilia é uma personagem com a qual consigo me identificar: a vida dela, as preocupações dela também são minhas. Assim como ela, militei dentro da esquerda há algum tempo. Assim, as problemáticas desta mulher me interessam. O filme surge de questões que me atravessam. Não penso no cinema enquanto possibilidade de transmitir ao mundo as minhas certezas, prefiro compreendê-lo enquanto maneira de elaborar o mundo, de formular meus questionamentos e dúvidas. Assim nasceu essa docente de sociologia, interessadas em questões sociais, mas um pouco distanciada da prática política junto aos setores populares. Para ela, existe uma distância entre a prática e o discurso.
Você tinha receio que o espectador perdesse a identificação com Cecilia após o trauma?
Sim. É algo muito difícil, porque o filme gira em torno de um dilema complexo. Outro risco para mim dizia respeito a não julgar moralmente a personagem. Não queria que fosse fácil condená-la, dizer “Olha que mulher malvada, que não abre a porta para ele”. Não pretendia deixar o espectador, nem a mim mesmo, numa posição cômoda. Então é claro que existem riscos. A partir deste momento, o espectador se encontra numa posição delicada também. A identificação depende muito de cada olhar, dependendo se a pessoa atravessará esta cena junto de Cecilia, ou se criará uma distância dela. Além disso, gosto de correr riscos quando faço um filme, mas sem provocar o espectador de modo infantil. Assumo os riscos adotados durante o processo, e são eles que me motivam a fazer novos filmes.
Cecilia também pode ser considerada uma vítima?
É difícil dizer. De qualquer maneira, ela não seria a vítima principal, pois quem mais sofre com esta perda é Nebe, a mãe do garoto. Mesmo assim, me parece importante pensar que todos sofremos com este sistema, por mais que Cecilia se encontre em situação privilegiada. Vivemos num mundo cruel, com muitas pessoas vitimizadas pela pobreza e a violência do Estado. Isso afeta toda a sociedade, e parte das pessoas se tornam alienadas a esta questão. Por exemplo, para chegar à minha casa, passo todos os dias por uma avenida onde existe uma família vivendo em situação de rua. Como podemos lidar com isso? Alguns moradores deixam de olhar, param de considerá-los como pessoas. É horrível. De certa maneira, Cecilia também é vítima do sistema. Mas para Nebe, a violência é muito maior, vivendo dentro de uma favela sem água potável, onde a polícia invade com frequência. Não são vivências comparáveis, mas Cecilia também é uma vítima, ainda que em circunstâncias muito distintas de Nebe e Kevin.
Um Crime em Comum pode ser considerado um reflexo da Argentina de hoje?
Este é um reflexo possível da Argentina de hoje, mas não o reflexo de toda a Argentina. Acredito que todos os filmes sejam um reflexo do país onde são realizados. A produção da cultura é reservada a uma pequena parcela da população – poucos podem produzir arte, ou fazer cursos de comunicação. Nos setores da intelectualidade, tende-se a projetar sua experiência pessoal ao mundo inteiro. Este olhar será necessariamente um olhar determinado pela classe social. Minha experiência de vida é muito diferente daquela de Eliot Otazo, que interpreta Kevin, ou Mecha Martínez, que faz o papel de Nebe. O filme pode ser considerado um reflexo do país, portanto, mas digamos que é um reflexo parcial. Ao mesmo tempo, a história corresponde à realidade vivida cotidianamente por muitos argentinos. O projeto também reflete a maneira como a ideologia progressista está em descompasso com o grupo social que analisa, tanto na Argentina quanto na América Latina em geral.
De que maneira você quis incorporar elementos do terror e do cinema de gênero em geral?
O terror não veio a priori. Não queria fazer um filme de terror, nem mesmo sou um fã particular deste gênero. Para mim, o terror é orgânico ao que acontece à personagem. Ele vem naturalmente, como consequência do que ocorre narrativamente. Para mim, o horror começa a habitar a personagem pela imaginação. A partir do trauma, passamos a enxergar as sensações dentro dela. Como o filme está muito concentrado no ponto de vista de Cecilia, ele adquire esta forma sombria. Mas este é um terror que não traz monstros nem fantasmas. É um terror metafísico, existencial, que começa a se desenvolver dentro dela. Na verdade, o que se apodera da vida desta personagem é uma ausência de sentidos em relação à vida.
Como trabalhou a expressão da culpabilidade com Elisa Carricajo?
Não fizemos um trabalho de ensaios, discutindo intenções cena a cena. Trabalhamos apenas a construção prévia da personagem, e o que aconteceria após o trauma. Conversamos muito sobre esta transformação. Depois, muito se produzia na própria filmagem. Elisa me dizia que, para ela, a experiência lembrava o cinema documental, porque havia abertura ao acaso diante das câmeras. Ela trouxe sentimentos que realmente faziam parte dela durante a filmagem. Eu dizia “Corta!”, e ela continuava a chorar. Não quero dar spoilers sobre a cena final para quem ainda não tiver visto o filme, mas Elisa não sabia o que aconteceria. O roteiro tinha apenas três linhas: “Chora. Ri. Grita”. Ela não sabia como aquilo se transmitiria naquele momento. Os sentimentos tinham que ser verdadeiros, emanando dela. Para mim, muito mais importante do que a formação técnica de um ator é sua capacidade emocional e intelectual de compreender este conflito. Por isso, misturamos no elenco atores profissionais e não profissionais. O que Nebe entrega no filme seria muito difícil para uma atriz profissional oferecer. Talvez até fosse possível, mas seria difícil para mim obter este resultado. Esta foi minha maneira de trabalhar com o elenco, construindo previamente uma relação de confiança, para descobrir o que aconteceria na hora da filmagem. Entramos nos personagens, e apenas fomos à filmagem. Se eu fizesse ensaios demais, acabaria cristalizando algumas coisas, e perderia a verdade.
A seleção em Berlim beneficiou a carreira do filme, apesar da pandemia?
Isso é algo que precisamos questionar: os sistemas de legitimação. Eu tive sorte, porque meu filme anterior esteve em Cannes, e este filme também seguiu um caminho bem interessante. Curiosamente, os mesmos festivais que tinham recusado este filme anterior voltaram a me convidar depois da seleção em Cannes, para exibirem o mesmo filme que tinham rejeitado. O que mais me dói é ver o funcionamento dos festivais latino-americanos. A maioria deles se contenta em programar os títulos que já foram selecionados nos festivais europeus. Temos que repensar esta situação em toda a América Latina. Não podemos olhar apenas para o que foi selecionado na Europa, e estabelecer nossa própria visão de mundo a partir disso. Penso no colombiano Monos: Entre o Céu e o Inferno (2019), por exemplo. Não digo que o diretor fez o filme pensando diretamente no público europeu, mas é isso que acontece: na busca por fundos, esquece-se a cultura original do filme. Eu me lembro de Arábia (2017), um filme brasileiro de que gostei muito. É lindo, mas ele não teve uma repercussão imensa em festivais europeus. Para mim, é um retrato da nossa realidade latino-americana, muito diferente daquele valorizado pelos europeus, que privilegiam a pornô-miséria no estilo de Monos. Não sei se estou respondendo à sua pergunta, mas depois de Berlim, nosso filme teve uma repercussão interessante por festivais europeus. Não acredito que o resultado seja melhor ou pior por isso: apenas fico contente que o filme tenha sido mais visto graças aos festivais.
Em que circunstância se deu a coprodução? Esta pode ser uma saída para nossas cinematografias em tempos de crise?
A coprodução foi muito importante para o filme. Contamos com o apoio da Ibermedia. Sei que a situação do Brasil agora é difícil, e para quem cogita uma coprodução com o Brasil neste momento, é possível encontrar dificuldades, porque não sabemos o que vamos encontrar devido ao governo de Bolsonaro, que é inimigo da cultura. Para mim, o trabalho com o Brasil se deu mais na esfera de pré-produção. Mas tivemos a participação do músico Orlando Scarpa Neto, e este encontro foi bastante enriquecedor. A abertura a experiências de outros países consiste num exercício muito benéfico. No final, a coprodução permitiu que completar as verbas necessárias, e também se justifica por se tratar de uma história pertinente tanto à Argentina quanto ao Brasil. Embora não tenha cenas no Brasil, nem personagens brasileiros, a realidade mostrada é semelhante entre países latino-americanos. Agora, estou trabalhando num projeto sobre a Guerra do Paraguai e a Tríplice Aliança. Neste caso, o encontro entre Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina será muito interessante. Quero saber as diferentes leituras que as pessoas terão da guerra.
Daniel Pech: Sobre a importância da coprodução em tempos de crise, eu pessoalmente tenho utilizado esse recurso como forma de me manter ativo. É uma maneira de conseguir financiamento, especialmente em coproduções latino-americanas. Nossos filmes buscam sempre a validação europeia, como disse o Francisco, e às vezes passam nos maiores festivais de lá, mas não passam pelos cinemas do Chile ou da Colômbia, por exemplo. A coprodução é uma forma de se unir e mudar esse cenário. Comecei a conversar com o Francisco e a Andreia Russiana no final de 2017, início de 2018, quando o cenário era diferente no Brasil, mas já dava sinais de mudança. Este processo precisou de muita cooperação dos dois lados, porque os fundos da Ancine foram mudando. O fundo de coprodução da época deixou de existir, e mais tarde, anunciaram outro, mas os resultados nunca foram anunciados. O filme acabou sendo feito sem a Ancine, sem aporte federal brasileiro, porém conseguimos fundos privados e os fundos ibero-americanos da Ibermedia. Artisticamente, tivemos ótimos profissionais brasileiros da parte de som, incluindo a trilha feita em modo inteiramente remoto, com envios de arquivos e conversas virtuais. O mixador de som brasileiro foi enviado à Argentina, por exemplo. Quando o Francisco me contou essa história, eu imediatamente percebi a semelhança com a realidade brasileira, e achava que a coprodução se justificava totalmente. Depois veio o governo Temer, e então, o governo Bolsonaro. Esse processo dificultou bastante as coisas, mas felizmente, conseguimos viabilizar o filme. Acredito muito na forma de mudar o cenário global por meio das coproduções latino-americanas. O Brasil sempre se recusou a olhar para os parceiros latino-americanos. Isso começou a mudar de uns anos para cá, e nosso cinema passou a olhar mais para os vizinhos. Fico contente com isso.