Em tempos sombrios, nos quais o conservadorismo e a extrema direita ameaçam os valores democráticos, nada melhor que olhar para trás a fim de colher no passado exemplos a serem rechaçados como possível futuro. Uma Noite de 12 Anos fala da luta de homens para manter sua humanidade durante os mais de 4000 dias no cárcere como reféns da ditadura civil-militar uruguaia. Privados de contato, tratados como bichos, os três membros da organização Tupamaros precisaram resistir para resguardar a sanidade mental e a dignidade diante da truculência dos milicos. É preciso coragem para construir uma jornada emocional e cinematograficamente tão complexa, missão assumida com louvor pelo roteirista e diretor Álvaro Brechner. O uruguaio, que já havia chegado ao circuito comercial brasileiro com o ótimo Sr. Kaplan (2014), agora apresenta por estas plagas o seu drama mais contundente, elogiado nos festivais de Veneza, Berlim e San Sebastián, de onde, aliás, saiu com prêmios. Conversamos por e-mail com o realizador para saber um pouco melhor como foi o processo da produção de Uma Noite de 12 Anos e, inclusive, o que ele pensa das pessoas que pedem o retorno dos militares ao poder. Confira este Papo de Cinema exclusivo com Álvaro Brechner.
O que mais lhe instigou a escrever e dirigir um filme sobre essa ferida aberta que é a ditadura civil-militar uruguaia?
Os 70 foram os anos em que a violência ocupou um lugar central no Uruguai. Para entrar apropriadamente no tema, na verdade, deveríamos voltar ao final dos anos 50 e discutir a formação de movimentos e organizações políticas, sociais, sindicais e culturais, bem como setores partidários e facções militares não estranhas à extensa influência global da Guerra Fria, da qual a América Latina não era alheia. Minha intenção era não contraminar, com a recriação histórica, o objetivo principal do filme, que sempre foi a narrar a jornada existencial dos protagonistas ao longo dos anos de solidão, o abismo e a loucura. O contexto histórico é breve o suficiente para entender as circunstâncias que levaram à etapa mais difícil e violenta da história do Uruguai, para mostrar os riscos sociais de uma escalada de violência. Mas, minha intenção era ir além dos eventos históricos, narrar a luta existencial de três homens que, no momento mais sombrio, se agarram ao seu espírito para manter humanidade e esperança. O personagem principal é o silêncio, o isolamento absoluto, a deterioração e a renúncia da condição humana. Através de um desafio estético, sensorial e experimental, procurei mergulhar neste novo mundo em que o homem luta para manter-se íntegro.
Tendo em vista que é um filme bastante visceral, como foi a escalação do elenco?
Não escolho atores por conta da possível proximidade com os personagens que escrevo, mas em virtude da novidade que eles podem trazer aos papeis, dos diferentes ângulos que podem acrescentar. Isto é, o que o ator traz consigo em suas vísceras, em seu coração e sua mente. A pedra fundamental deste filme foi, realmente, a seleção apropriada dos três intérpretes que deveriam encarnar figuras tão complexas. Por um lado, são homens frágeis, mantidos como reféns à mercê dos militares. Por outro, preservam – mesmo à beira da loucura –, demonstrando extrema força de vontade. Eles eram sujeitos que, num tempo diferente do presente, pensavam que poderiam mudar o mundo através de ideais. As condições extremas às quais foram submetidos foram enfrentadas como se num purgatório. E desse horror vivido, renasceram de maneira inacreditável, com mais força.
E como se deu, especificamente, a escolha de Antonio, Chino e Alfonso, os protagonistas?
Ainda na fase de escrita do roteiro, me reuni com Antonio de la Torre para falar sobre o projeto. Em menos de dez minutos, me interrompeu: “Álvaro: o que estamos esperando? Quando começamos?”. Ele é muito versátil e tem uma capacidade quase infinita de expressar as arestas e as minúcias. Demos ênfase especial à abordagem do abismo e do estado mental confuso de Pepe Mujica. O Chino Darín é um desses atores mágicos. Basta olhar em seus olhos para entender todos os conflitos que atravessam um ser humano. Ele era perfeito para interpretar Mauricio Rosencof, o poeta. Terno e duro ao mesmo tempo. Foi uma combinação que funcionou como um contraponto dessa tríade. Com Alfonso Tort eu já tinha trabalhado em meu primeiro longa-metragem, Mau Dia Para Pescar (2009). Além de todas as características que mencionei anteriormente, Alfonso acrescentou seu senso de humor particular, de uma simplicidade e uma humanidade profundamente anti-solene.
Você encara seu filme, ao mesmo tempo, como um resgate e um grito de alerta, vide a atual ascensão de um pensamento de extrema direita, até totalitarista, no mundo?
Recordar os horrores que os seres humanos podem cometer apenas é importante se servir para evitar a repetição desses horrores no futuro. Através da nossa história, sabemos que a paz infelizmente sempre foi temporária. Muitas vezes esquecemos o combate interno que se exige para mantê-la. Acredito que nunca é demais lembrar-se dos riscos que uma sociedade assume quando uma escalada de violência começa. Um filme não pode fixar ou ajustar as contas de um país, não pode nos compensar como sociedade. Mas, o cinema não deve permanecer alheio ao mundo em que vive. Tenho muito medo de suas limitações para evitar os horrores e as feridas da humanidade, entre outras coisas, porque se dá numa sala escura e não numa mesa de poder. No entanto, o recurso indireto de nos vermos refletidos em uma história, submersos a partir de um ponto de vista diferente, nos faz repensar as percepções sobre nós mesmos e, dessa maneira, acerca de nossa capacidade de influenciar o que nos cerca.
Uma Noite de 12 Anos é bastante sensorial. Como se deu essa construção?
No meu entendimento de cinema, o bom estilo é aquele que não é visto, mas que se sente. O “como” se mescla com o “que”, dando ao filme uma sensação particular. Uma Noite de 12 Anos não é um exemplar de prisão. Mas começa com um longo e quase infinito deslocamento, onde simetricamente vemos uma prisão em que dezenas de soldados entram para fazer reféns. Gosto de imaginar esse começo circular na forma de uma espiral, de descida do objetivo para o âmbito subjetivo, através do qual imediatamente entramos na respiração e nos sentidos dos protagonistas. Ao contrário de meus filmes anteriores, aqui a câmera tinha de transmitir a impressão de que o visto é pura realidade do caos e da confusão dos protagonistas. A ideia era deixar claro desde o segundo plano que não se trata de um “filme de prisão”, mas de algo sensorial. Nós não vamos fazer turismo com a câmera, vamos imergir por meio dela.
E como foi seu trabalho com Carlos Catalán, diretor de fotografia, já que a construção da esfera imagética é tão importante para o resultado?
Eu e o Carlos impusemos duas coisas a nós mesmos. A primeira, criar as cenas, visualizando o que acontecia em cada uma delas, sem artifícios, sem premeditar ângulos e movimentos. Mesmo a partir do roteiro, o cenário geral deveria ser orgânico e fluido, dando a sensação de autenticidade, de que não era construído com propósito dramático ou narrativo. O segundo, insistir o máximo possível na câmera na mão. Antes de uma cena em movimento, buscávamos imagens instintivamente, quase como num documentário, filmando eventos de um ponto de vista privilegiado. A câmera deveria estar na cena, mas sem saber o que iria acontecer. Muitos momentos seriam criados a partir da esfera subjetiva, próximas aos reféns, retratando suas respirações, intentando transmitir aquela busca desesperada por estímulos de sentidos como o tato e a visão. Foi difícil capturar a sensação de permanecer num esgoto escuro de dois metros por dois, local tão pequeno que você pode estender os braços e tocar as duas paredes de uma só vez, onde seu único contato humano por dias é a mão de alguém que deixa o prato de comida. No entanto, em 12 anos o homem se acostuma a fazer desse o seu habitat.
Temos no Brasil um candidato à presidência que elogia torturadores da ditadura, que fala publicamente deles como heróis? Como você encara isso?
Infelizmente, o homem é o único animal capaz de tropeçar na mesma pedra mais de uma vez.
(Entrevista feia por e-mail em setembro de 2018)