Francês radicado há muito no Brasil, o cineasta Alain Fresnot, mais conhecido do grande público por ter dirigido filmes como Ed Mort (1997) e Desmundo (2002), acalentava há algum tempo o projeto de Uma Noite Não é Nada (2019), tanto que o elenco inicialmente era outro, como ele nos contou durante esta entrevista exclusiva. Nessa história repleta de controvérsias, o protagonista é um homem de vida monótona que encontra uma espécie de renovação diante da aluna propensa a autodestruição. Conversamos por telefone com Alain para saber um pouco mais acerca da produção. Gentil e bem-humorado, o realizador compartilhou histórias de bastidores, falou acerca do nem sempre harmônico trabalho em equipe e deu seus porquês ao par de cenas que beiram o onírico. Confira, com exclusividade, nosso Papo de Cinema com Alain Fresnot.
Alain, cada espectador vai ter a sua leitura, mas, para você, do que trata Uma Noite Não é Nada?
Olha, pra mim, fundamentalmente trata da finitude e da compaixão. O que move o Agostinho é o desejo de um epílogo pirotécnico. Para isso, ele focaliza nessa “chave de cadeia” que é a Márcia, a fim de viver o que nunca viveu antes, mesmo que isso lhe custe a vida. É um filme sobre maturidade, digamos assim. No sentido inverso, é a respeito da compaixão da esposa. Para mim ela é a grande personagem do filme, por entender a pulsão finalista do Agostinho. O filme trata da precariedade do ser humano. O ponto da vida em que estamos determina a leitura dele.
Até pela relação pregressa de vocês, foi simples escolher Paulo Betti como Agostinho?
Não (risos). O filme foi concebido há uns 15 anos. O deixei de lado para fazer Desmundo, entre outros projetos mais fáceis. Inicialmente seria com o Lima Duarte e a Fernanda Montenegro. Chegamos a fazer leituras com ambos. Mas, como o tempo, eles ficaram indisponíveis. Acho que os personagens sempre acabam encontrando os seus atores e não o contrário. O Paulo e a Claudia (Mello) interpretaram essas figuras tão bem que não sei, sequer, se essa arqueologia é benéfica (risos). Quanto à Luiza (Braga), tenho muito orgulho de sua escalação. Tínhamos três finalistas. As outras duas tinham um rosto mais hollywoodiano. Mas insisti na Luiza e acho que fiz muito bem.
No elenco figura o Daniel Hendler, grande ator argentino. Como foi o trabalho com ele?
Ele é um doce, uma simpatia. É um cara hiper profissional, não tive dificuldade com ele, pelo contrário. Se trata de alguém com uma doçura incrível. Ele atua num registro diferente dos demais, até por conta da escola da qual vem. A escola argentina é realmente diferente. Isso dá um sabor curioso para a coisa. Achei que foi legal.
Gostaria que você falasse um pouco da fotografia, da continuidade de sua parceria com o Pedro Farkas, que vem de Ed Mort, de Desmundo…
Adoro trabalhar com o Pedro, mas nesse filme tivemos certa dificuldade. Inicialmente, ele concebia o longa-metragem colorido e eu sempre quis fazer do jeito que está, trabalhando preto e branco com alguns toques em cor. Essa diferença causou certo desconforto. Tinha até combinado com o distribuidor de fazer duas versões, uma colorida e a outra do jeito que acabou ficando. Mas não tivemos grana para tanto. O Pedro é um iluminador de primeira, ele é rápido. Precisei fazer o filme em sete semanas, num prazo apertado. Estou acostumado a fazer em oito. Tive de levar a equipe num ritmo frenético. Diretor já é chato, quando tem de apertar por conta de orçamento é mais chato ainda. Surgiu um pequeno clima entre Pedro e eu, confesso, mas nada que não pudesse ser conciliado.
De onde surgiu aquela sequência beirando o onírico com o homem carregando o bacalhau, como no rótulo da Emulsão Scott, e o carrinho aludindo a O Encouraçado Potemkin?
O negócio da Emulsão Scott vem desde a ideia do roteiro. É pura e simplesmente uma cena para oferecer algo insólito. Apesar de ser um drama, há no filme algumas piscadelas para os cinéfilos. O do carrinho foi ideia de ultima hora. Quando estávamos na locação, me ocorreu essa loucura e conseguimos produzir a tempo. O carrinho caia somente torto (risos). A função é uma escapadela daquele drama todo, e acho que o incomum funciona para isso.
Em vários momentos, a relação entre Agostinho e Luiza é agressiva. Ambos se agridem, ele chega a estuprá-la desacordada. Era uma preocupação sua a responsabilidade dessa dinâmica?
A reação dela, de agressividade posterior ao assédio, à violência que ele pratica nela, é absolutamente justificada. É compreensível que ela haja assim. Ele a está assediando. Minha leitura é que isso parte de um bom sentimento da Luiza. Na verdade, ela sabe que está doente e não quer estender o problema a ele. Como Agostinho não é um pegador, um cara de assediar as alunas – até porque se fosse não entraria nessa viagem terminal – entendo que essa penetração, por incrível que pareça, tem um lado lúdico, não lúbrico. Pelo menos é isso que tentei fazer, não algo perverso. É quase algo exploratório, beira o adolescente em certo sentido. Não sei se consegui, mas com certeza não passa por qualquer coisa lúbrica, tanto que o impulso posterior é acolher numa postura carinhosa. Não é perverso.
(Entrevista concedida por telefone em agosto de 2019)
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