“E o Bolsonaro, hein?”. No momento em que nos sentamos para a entrevista com o diretor romeno Radu Jude, ele dispara a frase desestabilizadora, demonstrando conhecimento sobre a situação do nosso país: “Sabe o Olavo de Carvalho? Ele é muito popular na Romênia entre os intelectuais conservadores. Alguns livros dele foram traduzidos por lá. Carvalho passou um ano nos monastérios romenos durante os anos 1990. Ele é amado pela extrema-direita romena, sabe-se lá porquê”.
Jude sempre foi profundamente interessado em política. Seus longas-metragens mais famosos, Aferim! (2015) e Eu Não me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros (2018) decorrem de episódios políticos da Romênia, e desde 2009 ele tem conseguido produzir entre um e dois filmes por ano, misturando longas e curtas-metragens. No 70º Festival de Berlim, apresentou o desconcertante Uppercase Print (2020) na Mostra Fórum, dedicada a produções ousadas e/ou experimentais.
Em parceria com o historiador Adrian Cioflâncă, Jude decidiu representar uma história exemplar, porém pouco conhecida, da ditadura de Ceaucescu durante os anos 1980. Segundo relatos oficiais, o adolescente Mugur Calinescu foi perseguido, preso e interrogado pela Securitate, o Serviço Secreto de Estado, por escrever em giz nos muros da cidade palavras como “Liberdade”e “Justiça”. Ao invés de narrar a história através de uma ficção tradicional, o cineasta prefere utilizar apenas os relatórios da Securitate, lidos pelos atores dentro de um gigantesco cenário destinado a representar a delegacia e a casa dos personagens.
Assim, dia após dia, o filme narra o absurdo tragicômico do caso que durou anos, período em que o jovem foi tratado como um perigoso inimigo de Estado. Intercalada com a narrativa burocrática e absurda, encontram-se imagens de arquivo da época, com propagandas de produtos e programas de televisão apresentando uma Romênia feliz, onde as instituições funcionavam normalmente. O Papo de Cinema conversou com Jude e Cioflâncă sobre o projeto durante a Berlinale:
Como descobriu a história por trás de Uppercase Print, e de que maneira teve acesso a todos os documentos oficiais?
Radu Jude: Tudo começou com uma peça teatral feita por uma amiga nossa, Gianina Cărbunariu. Ela teve a ideia de criar a peça apenas a partir dos relatórios da Securitate para contar a história deste garoto. Eu me sinto cada vez mais intrigado com este cinema de arquivos, que aproveita materiais não concebidos inicialmente para serem levados ao cinema. Por isso decidi trabalhar com os relatórios. Eu considerava fundamental olhar para a História através destes materiais burocráticos, e nada mais.
Adrian Cioflâncă: Não existe nenhum livro em particular sobre este episódio, como foi o caso de alguns outros filmes de Radu. Não podemos considerá-lo então como uma adaptação. A pesquisa feita especialmente para este filme vai além de qualquer pesquisa científica publicada sobre o tema antes. Este é o primeiro relato sobre esta história feito no cinema.
Radu Jude: De fato, não é um caso muito conhecido na Romênia.
Adrian Cioflâncă: Felizmente para nós, todos os documentos criados pela Securitate são abertos ao público. Basta fazer uma requisição para ter acesso a todo o material escrito. Os pesquisadores são muito beneficiados por isso. O governo atual, relativamente mais liberal, tenta passar uma mensagem de acerto de contas com a História ao agir deste modo.
Por que decidiu abordar o caso através de uma estética assumidamente artificial?
Radu Jude: Bom, os próprios documentos são fruto da construção de uma polícia doentia. Como eu usava apenas esses documentos, não há qualquer informação sobre a psicologia dos personagens, nem sobre seus comportamentos. Eu não queria inventar nada além do texto original, então evitei criar textos ou entonações de voz específicas. Pedi aos atores para apenas lerem o texto, para captar as informações centrais do texto. Além disso, é importante saber que estes relatórios não constituem nenhuma garantia de uma verdade propriamente dita. Este é um relato da versão construída pela polícia, com uma linguagem especial, e com as omissões que lhes foram convenientes. A artificialidade era importante para o espectador estar ciente de que não está vendo a verdade, apenas uma representação dela. A polícia retirou todos os elementos que poderiam ser nocivos a ela mesma, claro.
Inicialmente, você revela o gigantesco cenário circular antes de investigá-lo parte a parte. Como concebeu este espaço?
Radu Jude: Eu queria ajudar o espectador a entender este espaço estranho, podendo num primeiro momento visualizar o cenário inteiro. Só depois colocamos a câmera no meio desse panóptico, para que ela ocupasse o lugar de um oficial da Securitate. Assim, o espectador pode compreender o ponto de vista inquisidor dos oficiais.
Adrian Cioflâncă: Era necessário apresentar ao espectador que esta se trata de uma falsa impressão de panorama, porque nunca existe um olhar panorâmico real. Não é possível entender as ações fora deste contexto. Esta é apenas uma expressão da realidade, por um ponto de vista teatral e cinematográfico, e não um olhar panorâmico compreendido enquanto pluralidade de versões.
Radu Jude: Este dispositivo também permite ter a ideia de continuidade. Nós começamos com a página 1 do dossiê, e seguimos cronologicamente a evolução dos fatos.
Como enxergam o espaço para o humor diante desta história tão séria?
Radu Jude: Acredito que diante de toda estupidez, no sentido amplo do termo, nós podemos rir contanto que se tenha o devido distanciamento. Hannah Arendt disse isso sobre o julgamento de Adolf Eichmann: ela ria bastante das respostas dele. O humor tem um espaço neste caso: é importante rir desta história. Obviamente, a tragédia persiste: você não ri da tragédia, e sim do absurdo dos fatos.
Adrian Cioflâncă: Há diferenças importantes na percepção do filme. Durante a primeira exibição, na Romênia, eu me sentei perto de um colega meu da mesma idade, que ria muito. Outras pessoas riam menos. Tive a resposta de um homem idoso que ficou irritado e envergonhado com o filme. Ele tinha considerado a experiência cansativa e jocosa.
Radu Jude: Sim, mas as reações a partir dessas pré-estreias podem oferecer uma falsa indicação de como o filme é percebido. Às vezes estes espectadores são convidados pelos produtores, ou são amigos da equipe. Não dá para ter uma ideia concreta a partir disso.
Adrian Cioflâncă: Sabe quem são os maiores nostálgicos da época da ditadura, de acordo com as pesquisas? São os jovens na faixa dos vinte anos de idade. Eles têm nostalgia de algo que nunca viveram.
Você trabalha com dezenas de materiais de arquivo da época, incluindo programas de televisão, comerciais… Como escolheu este material que interrompe a narrativa de maneira brusca?
Radu Jude: Essa montagem brusca existia para mostrar dois tipos de História: uma delas é menor, secreta e desconhecida, enquanto a outra maior, oficial, e escolhida pelo regime para representá-la. Meu primeiro critério foi de ordem cronológica: escolhi os materiais de acordo com a data, incluindo no filme aqueles que aconteciam exatamente ao mesmo tempo que o caso de Mugur Calinescu. Depois, escolhi por intuição. Não queria criar conexões óbvias. Às vezes, incluíamos alguns destes trechos na montagem, mas a conexão parecia tão evidente com a história que terminávamos substituindo por outros. Foi um processo de tentativas e erros.
Adrian Cioflâncă: Às vezes, não existe critério algum.
Radu Jude: Exato. O único critério de fato era a cronologia. Era importante mostrar que existem coisas acontecendo ao mesmo tempo: enquanto eu falo agora com você, existem coisas totalmente diferentes sendo transmitidas na televisão. Fatos coexistem, sem necessariamente ter relação uns com os outros.
Adrian Cioflâncă: Esses encontros contribuem à noção de absurdo. Às vezes, parece que algumas pessoas riem exatamente dessas junções inesperadas.
Radu Jude: Escolhi dois tipos de imagens: uma parte dizia respeito a uma realidade que desapareceu por completo nos dias de hoje, enquanto a outra parte, em chave contrária, reflete questões que ainda são muito contemporâneas. Em um dos fragmentos, um testemunho discorre sobre a imigração, e o fato que a Alemanha não gosta de imigrantes. Alguns fragmentos da Romênia comunista ainda são estranhamente pertinentes para pensar o país hoje, enquanto outros apenas demarcam a distância em relação àqueles tempos. A montagem agressiva, interrompendo algumas palavras no meio, veio da necessidade de entender a História enquanto fragmentos que se encontram, ao invés de uma linearidade lógica, polida. Os arquivos não são elegantemente articulados: eu preferia o efeito do caleidoscópio.
No final, existem relações diretas com o mundo de hoje, incluindo acenos à Cambridge Analytica. Qual era a importância de sublinhar estas associações?
Radu Jude: Era fundamental. De certo modo, este era a minha motivação para fazer o filme. Primeiro, porque os funcionários do Serviço Secreto da época sobreviveram, e muitos continuam trabalhando nos Serviços Secretos de hoje. Este setor não possui a mesma força que possuía no passado, mas ainda existem histórias escondidas ou mal contadas. Segundo, porque o nosso mundo contemporâneo está tomado pela paranoia. Mesmo que ela seja de outro nível, em outra intensidade, isso dialoga diretamente com os anos 1980. Hoje, todo mundo tem medo que o computador esteja espiando suas ações, ou que o Facebook investigue suas pesquisas. Isso não existia cinco anos atrás.
Adrian Cioflâncă: Até por isso a estrutura do panóptico fazia tanto sentido para a gente.
Radu Jude: No filme, eu incluo apenas uma imagem da Romênia dos dias de hoje. Esta tomada foi incluída porque você pode ver os carros, a poluição, ao lado dos prédios comunistas e as igrejas ortodoxas, que constituem o símbolo no nacionalismo. Não queria filmar nenhuma outra imagem atual nas ruas, apenas esta, que para mim era preciosa.
O Brasil atravessa um período de grande dificuldade para produzir seus filmes, devido a pressões políticas. Como são as circunstâncias de produção para uma obra tão abertamente política quanto Uppercase Print na Romênia?
Radu Jude: Li que houve algum tipo de intervenção da polícia na Cinemateca Brasileira. Isso é inacreditável, horrível. Acredito que a situação seja um pouco melhor na Romênia, embora esteja longe de ser perfeita. O Centro Nacional do Cinema possui certa independência em relação ao governo. Talvez esta autonomia esteja diminuindo, mas ela foi estruturada de tal modo que não dependemos do Ministro da Cultura, do Parlamento, nem do governo. O financiamento provém dos impostos, de maneira relativamente independente. Caso houvesse um controle direto, seria impossível fazer um filme como Uppercase Print. Hoje, existe o consenso no país de que o comunismo não foi um bom regime. Para os filmes que fiz no passado, acredito que teriam sido ainda mais difíceis de produzir hoje. Tive a sorte de fazê-los no momento de outro governo que intervinha ainda menos. Nós tivemos dificuldade para produzir Eu Não me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros (2018). Mas sei que nossa situação é diferente daquela encontrada na Polônia, e especialmente na Hungria. As pessoas ainda respeitam, pelo menos formalmente, as regras europeias. Eles tentam não se mostrar como censores. Isso ainda existe na Romênia, embora corra o risco de se perder. Tivemos um governo nacionalista, e muito ruim, nos dois últimos anos. Mudamos mais uma vez agora, e pelo menos no aspecto cultural, ele parece um pouquinho melhor. Ainda existem possibilidades de produção, e tento aproveitar esta brecha o máximo possível, porque não sei se isso será possível no futuro.
Adrian Cioflâncă: A Romênia tira certa vantagem de parecer o “bom aluno” do leste europeu, pelo menos num plano diplomático, em comparação com a Hungria e a Polônia. Paradoxalmente, o governo romeno usa a História a seu favor, para mostrar como hoje são progressistas e democráticos, por terem vencido a ditadura. Assim, criam uma cortina de fumaça para evitar temas que possam ser sensíveis ao governo atual.
Radu Jude: Estes governos atuais não são guiados por uma ideologia política precisa. Eles se articulam em torno do dinheiro e do poder – pouco importa de onde venham. Não são mais homens de convicção, e sim homens de negócios. Por isso, quando queremos fazer um filme contra o regime de antes, eles o toleram em nome do dinheiro e da reputação que podem obter a partir disso.