Vivemos em tempos obscuros nos quais o diálogo passou a ser uma arte rara. Especialmente o que vemos diariamente nas redes sociais são discussões intermináveis sem espaço para as ideias se complementarem ou se chocarem umas com as outras visando um resultado propositivo. Parece que todos estão desesperados para falar, serem ouvidos e valorizados, mas sem qualquer disposição para aprender com o outro. Nesse sentido, Utopia Tropical (2022) chega aos cinemas propondo um exercício dialógico muito interessante entre dois pensadores com larga experiência e conhecimento geopolítico: o linguista e ativista político norte-americano Noam Chomsky e o diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores brasileiro Celso Amorim, pai do diretor João Amorim, com quem tivemos uma conversa remota sobre o projeto. Ele trocou uma ideia conosco sobre os desafios de produção, as barreiras legais e os motivos que o levaram a colocar frente a frente esses dois nomes maiúsculos. Confira abaixo o nosso bate-papo exclusivo com o cineasta João Amorim sobre Utopia Tropical.
Como surgiu a ideia de colocar Noam Chomsky e Celso Amorim para discutir aspectos da política internacional?
Na verdade, sempre fui muito fã do Noam Chomsky. Ele foi uma grande influência sobre a minha forma de pensar. Claro, o Celso também, até por ser meu pai (risos). Sempre falava muito sobre o Noam com o Celso, embora eles tenham pensamentos diferentes, pois um é mais à esquerda do que o outro. Quando meu pai se aposentou pela primeira vez, depois do primeiro mandato da Dilma Rousseff, começou a dar diversas palestras mundo afora. Numa delas, o Noam estava presente também como palestrante. A Valéria, esposa brasileira do Noam Chomsky, promoveu esse encontro e meu pai me mandou a foto, sabendo da minha admiração por ambos. Isso deve ter sido em 2016 e 2017 e imediatamente pensei em colocar os dois num filme para falar a respeito de política externa. E a primeira coisa que me veio foi o título.
E como começou, de fato, o desenvolvimento do projeto?
Comecei a escrever o projeto entre 2017 e 2018, naquele cenário de Michel Temer na presidência, Lula preso e Jair Bolsonaro sendo candidato ao Palácio do Planalto. Calhou do Noam vir ao Brasil e as coisas foram acontecendo. O projeto foi aprovado em 2018, mas a partir daí houve todo um imbróglio jurídico. Você pode imaginar que o governo passado não gostou muito da ideia desse documentário. Basicamente, fomos diligenciados até o último momento. Antes a minha produtora e depois a distribuidora. Somente no último dia conseguimos um mandato para fazer a coisa acontecer. Aí era 2022 e sabíamos que, diferentemente do plano original, não seria possível deixar o filme pronto antes das eleições presidenciais. Cientes disso, nos preparamos para lançar o doc depois da eleição, mesmo sem conhecer o resultado. Tivemos de fazer algo que transcendesse a noção da vitória. Foi um desafio, mas tornou o filme ainda mais relevante.
Gostaria que você falasse da construção da linguagem do documentário. Você propunha aos dois os assuntos e eles iam discorrendo livremente ou as conversas eram mais estritamente roteirizadas?
Tínhamos um controle mais restrito. Havia fatores limitantes. Um deles era o tempo do Noam, pois na primeira entrevista, em 2018, ele estava prestes a completar 90 anos. Na sessão de 2022, ele tinha 94 anos, então havia um limite de tempo para falar. Tentamos deixar algo bem definido no roteiro. Na primeira conversa definimos os temas que eles iam desenvolvendo. Posteriormente, decidimos excluir da montagem as minhas perguntas e intervenções, mas conduzi essas conversas que foram bem roteirizadas. Definimos para onde queríamos ir, até para não ficar com um material extenso. As conversas foram relativamente curtas, a primeira teve cerca de uma hora e as duas outras entrevistas, com eles separadamente, cerca de 40 minutos. Houve uma última com os dois, remotamente, que teve também 40 minutos. Tínhamos seis ou sete horas de material bruto, nada absurdo. Quanto à forma, precisamos nos adaptar às necessidades do Noam, pois não podemos colocar um senhor de 94 anos falando enquanto caminha na rua. É um filme sobre ideias e privilegiamos a conexão entre as ideias.
E a costura entre entrevistas, imagens de arquivos e animações?
Pois é, essa variedade é com o intuito de amarrar melhor as ideias. Utilizamos imagens de arquivo e entrevistas que ambos deram ao longo dos anos. Procuramos as participações dos dois no programa de TV Roda Viva e buscamos material da BBC com o mesmo repórter. Nossa ideia era assimilar entrevistas e reportagens com os dois ao tecido do filme. Sobre a animação, comecei a minha carreira como animador, portanto tenho conexão com esse mundo, digamos, gráfico. Queríamos sintetizar as ideias mais complexas oferecidas pelos personagens por meio da animação. O uso da animação serve para trazer uma leveza, um humor e para resumir certas ideias. Acho que conseguimos traduzir coisas intrincadas num cartoon que funciona também como pílula para divulgação. Outro aspecto importante foi a trilha sonora.
Como se comportaram Noam Chomsky e Celso Amorim como personagens?
Quando você faz uma pergunta no documentário, há expectativas quanto às respostas, mas elas não necessariamente correspondem àquilo que você estava esperando (risos). Os dois foram ora fieis à linha proposta, ora não. Por exemplo, quando perguntei ao Noam sobre como ele saiu da linguística para lidar com questões sociais, assumindo que o trabalho de linguista veio antes. Ele negou, disse que as questões sociais vieram antes (risos). Então, em várias partes da conversa ele fazia essa ressalva. Queríamos algo minimamente esperançoso. Gosto de terminar meus filmes com a expectativa de que há algo a fazer diante de uma crise, porque se não houver, melhor ir ao bar e esquecer de tudo (risos). E isso era difícil para o Noam. Pelo que viu ao longo da extensa vida, ele tem uma visão bem mais pessimista do que a do meu pai.
Em certo momento do filme, você cita a quase carreira cinematográfica do seu pai. Atualmente, ele tem três filhos cineastas. O Celso Amorim foi preponderante para vocês enveredarem por essa área?
Quando jovem, meu pai pensou em enveredar ao cinema. De todo modo, mesmo optando pela diplomacia, ele sempre teve fortes ligações com o cinema, chegando a ser presidente da extinta Embrafilme por três anos, no período anterior à transição para a democracia. Aliás, ele foi “convidado” a sair do Itamaraty depois da produção do filme Pra Frente, Brasil (1982). Não existia mais o exílio, mas se tornou um exílio disfarçado o envio dele para a Holanda, a um posto diplomático na época pouco estratégico. Mas ele sempre dividiu conosco o amor pelo cinema. Nos anos 1970, tinha um projetor Super-8 e passava filmes para a gente no domingo. Não sei quantas vezes vi O Encouraçado Potemkin (1925). Certamente, foi um dos primeiros a ter aparelho de VHS no Rio de Janeiro. Meu pai sempre estimulou que assistíssemos a filmes de grandes cineastas. Muitas vezes ele pedia que escrevêssemos redações para elaborar o que tínhamos achado desses filmes.