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Cassio Pereira dos Santos é um mineirinho dos mais ocupados. Nascido em Patos de Minas, no interior do estado, logo se deu conta que estava no cinema sua maior paixão. Para isso, saiu de casa e foi para a capital federal, estudar na Universidade de Brasília. Lá se envolveu com os primeiros projetos, alternando ficção e documentário. Desde 2003, quando concluiu os estudos, já realizou oito diferentes curtas-metragens, entre eles A Menina-Espantalho (2008), premiado nos EUA, Uruguai e até no Japão, e Marina Não Vai à Praia (2014, exibido nos festivais de Aspen, Nova Iorque, Amazônia, Hamburgo, Virginia, Cine Ceará e Tiradentes, entre outros. Essa jornada mais do que bem-sucedida o credenciou para um passo mais ambicioso: a estreia no formato longa, que se consolidou com Valentina (2020), já foi reconhecido no L.A. Outfest, nos EUA, e selecionado para o Festival de Varsóvia, na Polônia, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o próximo Mix Brasil. Para saber mais sobre essa história, a gente conversou com o cineasta. O bate-papo você confere a seguir:

 

Cassio, como nasceu o projeto Valentina?
A ideia de fazer esse primeiro longa surgiu durante a finalização do Marina Não Vai à Praia, meu curta anterior. Escrevi um primeiro argumento, super curto, que seria uma história sobre dois adolescentes, de temática gay. Uma amizade que se transformaria num relacionamento. Mas percebi que haviam vários filmes com tramas similares. Queria fazer algo dentro do universo LGBT, no entanto. Foi que comecei a falar com amigos, me informar mais a respeito, e dentro dessa pesquisa, descobri que 80% da população trans não consegue ficar na escola. É uma evasão absurda. Isso se dá porque se trata de um ambiente hostil. Naquela época, não havia um filme que tratava dessa questão. É a raiz do problema, se essa é uma população tão marginalizada, com dificuldade no mercado de trabalho, está no fato que a escola não é inclusiva. Chamei pesquisadores trans, meninas trans, e assim nasceu o roteiro, a partir de um dado da realidade.

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Cássio, ao centro, com elenco e equipe de “Valentina”

Você já escreveu com a Thiessa Woinbackk em mente para viver a protagonista? Como você a encontrou?
Não tinha nenhuma atriz em mente. Só tinha certeza que tinha ser uma menina trans para interpretar a Valentina. Na segunda versão do roteiro é que fomos atrás de meninas que poderiam dar vida à personagem. Lançamos um chamado na internet para meninas trans que quisessem mandar vídeos. Recebemos 50 mensagens, e entre elas estava a Thiessa. Naquele ponto, nem conhecíamos o trabalho dela. Ela se candidatou, assim como tantas outras. Quem teria o perfil da Valentina? Tinha que ter essa personalidade forte, e também que pudesse interpretar uma menina de 17 de anos. A Thiessa, na época, já tinha 28, para ter ideia. Mas ela não parece tudo isso, na tela você a imagina bem mais jovem. Foi exatamente o que estávamos procurando.

 

Essa é a estreia da Thiessa no cinema. Como foi o teu trabalho com ela?
Sim, é a estreia dela. Tivemos um mês, antes das filmagens, apenas com ensaios de cena, e algumas situações de preparo, justamente para irmos afinando o personagem e a atuação dela. Tivemos um preparador de elenco, José de Campos, de Brasília, que foi incrível. E acompanhei todo o processo, tivemos várias conversas a respeito do estilo de atuação que buscávamos. Queríamos algo mais naturalista, e para isso o filme que tínhamos como referência era o Quando Se Tem 17 Anos (2016), do André Techine. Era aquele registro e tom de atuação que estávamos buscando. É um filme que trabalha muito bem os olhares. Ela foi super receptiva. Desde o teste percebemos que respondia bem à nossa direção. Nos ensaios foi a mesma coisa. É uma garota talentosíssima, com muita facilidade no trato. Se jogou na personagem, e fez com muita facilidade, como se tivesse nascido para atuar.

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Guta Stresser e Thiessa Woinbackk, mãe e filha em “Valentina”, nos bastidores das filmagens

Encontrei similaridades na história de Valentina com a de Alice Júnior (2019), apesar dos tons de cada narrativa serem completamente opostos. Você viu o filme do Gil Baroni? O que acha dessa comparação?
Pois então, você não é o primeiro a comentar isso comigo. Vi o trailer do Alice Júnior, e estou muito curioso. Sei que passou no Festival de Brasília, foi super premiado. Mas não vi ainda. Acho que o tom do Valentina teve muito a ver com a pesquisa que fizemos. Primeiro teve a entrada da Sofia Carneiro, psicóloga e consultora do roteiro, e que é uma mulher trans. O Pedro Diniz, um rapaz trans, pesquisador, foi também nosso consultor. O trabalho coletivo com eles, alido ao fato de termos entrevistado mais de 50 meninas trans, todas na mesma faixa etária da personagem, ou até um pouco mais velhas. Fizemos um questionário, e o que ele nos apontou refletiu muito a realidade do Brasil. Muitas dessas situações vieram da atmosfera e do tom desses relatos. Tentamos ser fiéis à realidade.

 

Artistas transexuais tem se destacado cada vez mais no cenário cultural brasileiro. Como Valentina pode contribuir para esse processo?
Acho que, primeiro, irá contribuir com o espaço para o trabalho da Thiessa, que é uma grande artista. Ela vai sair do youtube, onde já é um fenômeno, e agora terá projeção no cinema e no audiovisual. Além disso, traz essa discussão a partir de uma pesquisa que manteve o pé na realidade. Com as meninas que conhecemos na época do roteiro. É um filme que dialoga com a realidade do Brasil de hoje. As pessoas trans, ao assistirem ao filme, o verão como um espelho da realidade. Então, tem essa contribuição, dar voz pra Thiessa, e também para o Pedro Diniz, que é ator também e interpreta o Marco, o menino que abusa. Ele também é uma pessoa trans, é um rapaz trans. Que, no nosso filme, aparece fazendo um personagem cis. Na época do roteiro, ouvimos muito o que os pesquisadores e consultores tinham a nos dizer a respeito, pensamos na diversidade como um todo. Nem todos os convites que fizemos foram aceitos, isso acontece, mas era uma preocupação nossa. Eu sou gay, minha irmã também, então acontece naturalmente. Às vezes é mais difícil, e por isso decidimos incluir a maior diversidade possível entre os nossos colaboradores, nos bastidores e no elenco. Foi uma equipe muito diversa.

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Cena de “Valentina”

Você se sente um cineasta comprometido com a temática LGBTQIA+?
Meu próximo projeto também irá abordar uma questão LGBT. Mas será outra pegada, pois o protagonista será um homem com mais de 50 anos. Estamos bem no início do desenvolvimento, Preciso elaborar antes de falar mais. Com o aprendizado que obtive a partir do Valentina, percebo como é importante trazer pessoas trans, para outros projetos, mesmo que a temática não seja essa. Usar esse ensino para incluir mais pessoas também nos próximos filmes, personagens e profissionais, na frente e atrás das câmeras.

 

Esse é o teu primeiro longa. Qual foi a maior dificuldade que enfrentou nessa realização?
Acho que foi achar a essência do roteiro sem comprometer a narrativa. Afinal, é um filme de baixo orçamento, foi feito graças a um edital que ganhamos em 2016. Tive que cortar muita coisa do roteiro, cenas que gostava e tinha apego, pois achava que ficaria legal na tela, mas era preciso enxugar, pois não tinha dinheiro. Tinha que caber nas 5 semanas de produção. Foi o mais difícil, exercer esse desapego.

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Bastidores das filmagens de “Valentina”

Valentina tem circulado por festivais internacionais, antes mesmo de ser exibido no Brasil. Como tem percebido a recepção ao filme?
O filme tem circulado bastante, é fato, e isso tem me deixado bastante feliz. A estreia em si, no entanto, vamos ter que esperar mais, até para decidir se vai para os cinemas ou se será lançado diretamente em streaming. Como foi tudo virtual até agora, não tive um diálogo direto com o público. Acompanhei algo no twitter, comentários, as respostas dos programadores de festivais… infelizmente, ainda não tive uma resposta imediata. Portanto, estou bem curioso para ter essa experiência com o público. É importante para gente!

(Entrevista feita por telefone em outubro de 2020)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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