Segundo longa-metragem dirigido por Miguel Falabella – o primeiro desde sua estreia com Polaroides Urbanas (2008), há mais de uma década – Veneza é um sonho antigo do artista. Tendo sido levado aos palcos pela primeira vez em 2003, a partir do texto de Jorge Accame e com Laura Cardoso, Arlete Salles e Tuca Andrada no elenco, desde então já havia o desejo de transpor a mesma trama para a tela grande. A história da velha prostituta que sonha em conhecer a idílica cidade italiana, onde acredita estar o seu grande e verdadeiro amor, passou por altos e baixos no decorrer dos anos, mas agora chega, enfim, aos cinemas. Exibida pela primeira vez no Festival de Cinema de Gramado de 2019, saiu do evento na Serra Gaúcha com dois kikitos: Melhor Direção de Arte e Melhor Atriz Coadjuvante, para Carol Castro. E foi nessa ocasião que o diretor e roteirista conversou com o Papo de Cinema e explicou porque esse projeto lhe é tão importante. Confira!
Miguel, Veneza é um filme que há tempos está na tua vida. Como foi assumir o desafio de levar essa história às telas?
É porque sou muito entusiasmado pela vida. Depois de dez anos batendo em portas que se fechavam na minha cara, finalmente o Julio Uchoa, nosso produtor, se virou pra mim e disse: “vamos comprar essa ideia”. Foi através dele que acabei fazendo esse acordo que possibilitou que o filme fosse feito. Ou seja, concordei em fazer antes o Sai de Baixo: O Filme (2019). Foi um toma lá, dá cá. Sem um, o outro não sairia. Sem ele, o Veneza não teria acontecido. Acho fundamental que a gente saia da prateleira, que mostre outros lados nossos. É uma coisa que posso fazer no teatro, lá me permito ser muitos. E estou feliz por estar conseguindo o mesmo no cinema.
O teatro é o espaço da fantasia, num palco tudo é possível. O cinema é mais ligado na imagem, na concretização desses desejos. Veneza, no entanto, é um texto que se apoia muito na imaginação.
Mas acho que consegui levar essa teatralidade para a tela. Esse delírio fantástico. De alguma forma, acho que deu certo.
Muita dessa responsabilidade foi dividida com o elenco. Como foi juntar esse grupo tão diverso de atores?
Todos são pessoas que já trabalham comigo há algum tempo. Escrevo para as pessoas. Não sabia se iriam aceitar, mas mesmo assim vou escrevendo. Veja por exemplo a Dira Paes. Nunca tinha trabalhado com ela antes, mas nutria uma admiração enorme. Sempre quis tê-la em um dos meus trabalhos. Então, a personagem da Rita foi escrita com a Dira em mente. Depois é que fui ver, bom, se ela não pudesse, por uma questão de datas ou por qualquer outro motivo, daí veria outra pessoa para o papel. Mas queria ela, desde o começo. E acho que o universo conspirou a meu favor.
Conspirou mesmo, pois conseguiu até uma ícone do Almodóvar.
Na verdade, primeiro pensei em convidar a Norma Aleandro. Afinal, muitas peças minhas foram montadas na Argentina, é um lugar onde trabalhei muito. Só que a ideia era filmar no Brasil, e quando a convidei, me respondeu que estava velhinha e não tinha mais saúde para vir filmar aqui. Foi quando sugeriu: “por quê não chamas a Carmen Maura?”. Acontece que as duas tem o mesmo agente. Pensei comigo “ok, vou convidar”, mas achei que nem iria me responder. Só que deu certo.
Há em cena dois universos que possibilitam muitos estereótipos: o prostíbulo e o circo. Como foi destruir esses clichês e criar algo novo?
Como sempre tive na cabeça que queria fazer uma fábula, não tinha vontade de mostrá-las como mulheres desgraçadas pela vida. Queria que fossem fabulosas. Queria bonecas de Tarantino numa pátina de Visconti. E tem também de Fellini. Ou seja, de todos os mestres que me formaram. Daqui cem anos, vai ter alguém dizendo: “e esse Veneza, do Falabella, com a Danielle Winits, Carol Castro, Dira Paes, é bom demais, né?”. Pode apostar!
Ao mesmo tempo, há temas sérios em cena. Foi difícil atingir esse equilíbrio?
A fábula permite isso. Uma vez que optei por narrar essa história de uma forma fabulosa, por mais chocante que sejam os temas, são olhados com parcimônia. Gosto dessa ideia do cinema de lágrimas. Todo o passado do filme, a história da origem daquele amor, é uma coisa ‘cine de lágrimas’. O enquadramento, a luz, os olhares, aquela cena do trem, tudo foi pensado nesse sentido. A fábula me deu o caminho.
Vocês filmaram no Uruguai e em Veneza, na Itália. O quanto essa logística te exigiu?
Não foi uma opção, e, sim, uma necessidade. Afinal, a Carmen Maura não podia vir ao Brasil. Ela não poderia tomar a vacina da febre amarela, e sem isso o seguro não iria cobrir a presença dela aqui. Nós somos zona de guerra, veja só. Morre mais gente no Brasil do que na Síria, para se ter uma ideia. É por isso que tudo é muito caro, não há quem segure tais operações como as que a gente necessitava. Então fomos para o Uruguai. E foi maravilhoso. A luz de lá é linda.
O que Veneza tem a dizer ao Brasil de hoje?
Acho que recupera o fabuloso da narrativa latino-americana, o sonho. Estamos vivendo um pesadelo, e Veneza traz um sonho. E a persistência desse sonho, acima de tudo. Esse é o grande negócio.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado, Rio Grande do Sul, em agosto de 2019)