Carol Castro é uma das mais surpreendentes atrizes brasileiras do momento. De postura tímida, quase reservada, quando o espaço lhe é favorável oferece verdadeiros shows, de deixar qualquer um mais atento de boca aberta. Foi o que fez no Festival de Cinema de Gramado, em 2019, quando esteve para apresentar o drama nacional Veneza, de Miguel Falabella. E no meio de um elenco estelar, que inclui nomes como Dira Paes, Eduardo Moscovis, Danielle Winits e até a almodovariana Carmen Maura, foi Castro que saiu com o ouro nas mãos, ao receber o kikito de Melhor Atriz Coadjuvante. Prêmio esse que faz companhia a um outro troféu, ganho pelo mesmo trabalho, mas no exterior, no Los Angeles Brazilian Film Festival. Reconhecimentos que fazem jus à entrega e ao compromisso de uma intérprete que está sempre buscando o melhor de cada performance. Foi sobre isso, aliás, que conversamos, nesse bate-papo inédito e exclusivo. Confira!
Quem é a Madalena, essa moça tão sonhadora?
Para mim, ela é a representação do amor em sua maneira mais pura, mais entregue e sem questionamentos. É também um contraponto em relação à Gringa, a personagem da Carmen Maura. Enquanto essa está indo em busca de um amor antigo, de um sonho e de um perdão do passado, a Madalena está atrás de uma paixão do futuro. E tem ainda o fato desse ser um amor atípico, digamos assim. Ela tem esse frescor. É a que acabou de chegar, mas não quer ficar ali para sempre. Tem ciência de que é na cidade grande onde tudo acontece, que é na internet onde as pessoas estão ganhando a vida – e isso tudo mesmo sem saber exatamente em que ano ou época o filme se passa.
Veneza é como uma cápsula do tempo, mas a Madalena é o pé na realidade.
Ela é a modernidade, pois tem um lado muito antenado. Acho curioso isso ao redor dela. Quanto mais falamos sobre a personagem, também vamos descobrindo coisas novas. Acredito que nada é por acaso. O Miguel Falabella, nosso diretor, costuma usar uma frase bonita, que diz que “alguns personagens é que escolhem os atores”. Nesse caso, a Madalena estava destinada a uma outra atriz. Ela já tinha, inclusive, feito algumas leituras com o resto do elenco. Enquanto isso, eu estava parindo, literalmente, ou seja, fazer parte do filme nem passava pela minha cabeça. Só que o universo se abriu, e quando isso acontece, ninguém segura.
Como esse convite chegou até você?
Aconteceu do Miguel pensar em mim e me ligar. A minha filha não tinha nem seis meses. Estava ainda envolta naquela situação pós-parto, sem nem saber ao certo quem eu era. O meu parto foi natural, que é uma coisa que você sente, realmente, toda a natureza agindo em você. É um renascimento forte. Tinha lido o roteiro, sabia do projeto, mas não pensava na possibilidade. Quando ele me ligou, fui ler novamente e foi quando me apaixonei. Infelizmente, não tive a chance de assistir à peça, mas só com o texto em mãos fui capaz de me emocionar – ok, pela minha situação, estava mais emotiva, mas fui às lágrimas com essa história.
Nesse momento você sabia quais seriam os teus colegas de elenco?
Então, quando soube da Carmen Maura, me dei conta: “eu preciso estar nesse filme”, foi o que pensei. Na mesma época, estava escalada para a novela O Tempo Não Para (2018). E algumas datas colidiam, tive que fazer esse esforço de remanejar meu calendário pra conseguir me encaixar nos dois trabalhos.
Como foi a sua conversa com o Miguel Falabella?
Nesse primeiro contato, logo de partida me disse: “olha, acho que esse personagem era para ser seu”. Foi quando contou que havia uma outra atriz envolvida, mas que acabou não acontecendo e ela teve que sair. Ele foi muito encorajador, pois ficava me dizendo que eu tinha tudo a ver com a personagem e foi quem acreditou antes até de mim mesma que conseguiria fazê-la. Havia, ainda, algumas preocupações da minha parte. Como seriam as cenas de nudez? Daquele jeito do Miguel, me disse: “nudez é nudez, não tem frescura”. Mas não era onda, o fato é que tinha dado à luz seis meses atrás, haviam limitações físicas. E sabe o que me disse? “Ah, mas você tem um mês pra se preparar” (risos).
Como você aproveitou esse mês de preparação?
Percebi logo que era mais importante estar preparada psicologicamente e emocionalmente. Precisava mergulhar na Madalena. Até porque, fisicamente, continuaria sem conseguir fazer grandes malabarismos (risos). Seguia amamentando, então tinha que ter alguns cuidados.
Você tem muitas cenas com o Caio Manhente, que apesar de não ser novato, é um ator bem novo. Como foi essa parceria entre vocês?
Antes de qualquer outra coisa, fui assistir ao Berenice Procura (2017), o longa que ele havia feito antes. Foi quando pude conhecê-lo. Talvez estivesse mais nervosa do que ele nas nossas cenas íntimas. Era a primeira vez que ele ira fazer uma cena de beijo, imagina uma de sexo? Totalmente virgem nesse tipo de filmagem. E por mais que eu já tivesse feito, no cinema é diferente. Sempre se desenvolve um pouco mais, digamos. Tentava deixá-lo à vontade, fazendo brincadeiras, criando intimidade. Mas, no fundo, estava nervosa. Ainda mais sabendo que ele era menor de idade, e o pai dele estava ali, no set, há alguns metros de mim. A sorte é que o pai foi muito querido, um grande parceiro. Depois veio me agradecer: “obrigado pela paciência com meu filho”. Foi uma situação muito curiosa: ele com o pai, e eu com a minha filha, todos no mesmo set.
Apesar de ser um atriz jovem, você tem muita experiência em produções internacionais. Afinal, já filmou na Argentina, nos Estados Unidos. Como foi, dessa vez, no Uruguai e na Itália?
Pra teres ideia, a minha filha completou sete meses no Uruguai e o oitavo ‘mesversário’ foi em Veneza. Olha que criança internacional (risos). Agora, com certeza as minhas experiências prévias no exterior me deixaram um pouco preparada para o que iria acontecer quando saímos do Brasil. O Perigosa Obsessão (2004), que fiz na Argentina, um dos meus trabalhos de maior repercussão, foi também o que me preparou para o que era ser atriz. Até então, sempre havia sido muito intuitiva, muito por ser filha de atores. E o set no Uruguai me lembrou disso, da maneira como trabalham, e não só da língua. A parte orgânica do set.
E atuar ao lado de um ícone como Carmen Maura?
Essa foi outra coisa que posso afirmar: aprendi muito observando a Carmen. Estava nervosa, afinal, era uma atriz que sempre admirei e respeitei, acompanhava os filmes dela, e nunca havia imaginado trabalhar com ela. Ela me falou coisas lindas, que valeram o esforço para estar ali. A Madalena tinha cenas pesadas, difíceis. Enquanto todos estavam alegres, tinha que demonstrar pesar, tristeza. Ficava, para me preparar, de fone de ouvidos, pois ajudava a me concentrar e a entrar naquele universo, de perda e vazio. E ela reparou nesse meu modo de agir. Tanto que um dia se aproximou e revelou que havia observado a minha concentração e que admirava isso. “Que bacana, isso é muito importante”, me disse. Nem preciso dizer como fiquei, né?
Alguma outra lembrança importante do elenco?
Bom, a Dira Paes é uma aula. Entende de tudo, de luz, câmera. Me deu dicas lindas, que irei aproveitar a vida inteira. Foram todos, posso afirmar com tranquilidade, muito generosos. Esse foi um grupo de colegas que estarão comigo para sempre.
Das tramas paralelas que o filme tem, a tua está numa direção contrária: ao invés da fantasia, revela um lado bastante realista. Como dançar uma música diferente do resto da banda?
Vou te contar uma imagem básica. Estavam acontecendo as gravações do circo – e, literalmente, montaram um circo no meio do nada, mato para todos os lados e aquele lago. Um frio absurdo. Mas muito lúdico. Tinha palhaços, pernas-de-pau, o pacote completo. Aqueles figurinos coloridos, todo mundo esperando para filmar, conversando, com chazinho quente, rindo. A Laura Lobo, que faz a Mocinha, cantando lindamente. E eu, num canto, afastada de todos, com uma nuvem pesada me fazendo sombra. Estava num outro ritmo. Com meus fones, música triste, lágrimas rolando. Tive que me isolar, e isso foi duro para mim. Tive que ter uma concentração muito forte.
O que o drama que a tua personagem carrega tem a acrescentar aos espectadores de Veneza?
Sem dar spoilers, esse é um filme que surpreende em muitos momentos. Dito isso, acho que a trama da Madalena levanta discussões que dizem respeito a muito do que está acontecendo hoje em dia no Brasil. Esse é o país que mais mata transexuais no mundo – e quem for assistir ao filme vai entender por que estou falando isso. Além dos ataques homofóbicos que acontecem na nossa sociedade. Então, nesse cenário, ela é o fio terra. Ao mesmo tempo, é uma postura contraditória, pois é uma das mais sonhadoras. É aquela que vai atrás do que quer. Tem essa função de trazer à tona essa discussão de como é importante não rotular, não ter preconceitos. Amar sem barreiras e sem fronteiras. E também como lidar com essa violência. É bom sonhar, mas sem tirar o pé do chão. Quando vê que perdeu tudo, é que decide: “ok, vou para Veneza com vocês”. Ou seja, estava na mesma situação que os outros.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2019)
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