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Para fazer Vento na Fronteira (2022), Laura Faerman e Marina Weis encararam in loco os conflitos que transformam a fronteira do Brasil com o Paraguai num território violento. Enquanto acompanhavam de perto o crescimento do poder ruralista na região e as suas relações íntimas com o governo de Jair Bolsonaro, as realizadoras também registraram o cotidiano de resistência da comunidade Guarani-Kaiowá, reivindicante da posse de terras historicamente pertencentes ao seu povo. O longa-metragem selecionado para o Filmambiente 2022 toca na disputa entre latifundiários herdeiros das invasões de espaços indígenas no passado (e que continuam perpetuando essa prática) e os povos originários tratados pela opinião pública como invasores, mas que na verdade apenas desejam reaver o que é seu por direito. Para saber um pouco mais como seu deu o processo desse documentário numa região convulsionada por conflitos que escancaram muitas coisas a respeito da sociedade brasileira, conversamos remotamente com Laura Faerman e Marina Weis. O resultado deste Papo de Cinema você confere logo abaixo.

 

O film já foi exibido em diversos festivais internacionais. Tendo em vista que ele toca numa questão sensível para a comunidade global, como vocês perceberam a receptividade estrangeira?
Marina: 
Minha sensação é a de cada país e cada festival tem seu público, então não conseguiria generalizar. O filme estreou mundialmente num festival chamado Hot Docs, que acontece no Canadá, país que trabalha a questão da reparação dos povos indígenas há muitos anos. Essa questão é muito presente, especialmente em Toronto. Para você ter uma ideia, o festival abre com uma cartela informando que ele está acontecendo numa terra indígena. O filme foi recebido ali com muito respeito, os canadenses se identificaram facilmente com essa naturalização de certo racismo na sociedade ocidental branca e não indígena. Ao mesmo tempo, aderiram à legitimidade da luta indígena. Foi uma recepção bonita. Achei interessante recebermos um e-mail de uma professora de lá que pediu autorização para utilizar nosso filme em sala de aula, mesmo que o recorte dela seja a Palestina. Ela fez conexões entre os indígenas e os palestinos, especialmente quanto ao racismo e às questões de fronteira, ampliando o foco, pois não se trata apenas da causa indígena, mas do direito à terra das minorias subjugadas. Mas, teve o caso da Coreia do Sul, país em que essa temática não está tão presente. Eles não entenderam direito do que se tratava, fizeram perguntas básicas por falta de perspectiva. O problema das Coreias é de fronteira, mas não de povos nativos. De todo modo, o filme foi bem recebido, até mais fora do Brasil do que aqui.
Laura: Pra mim é emocionante o fato de o filme ter ganhado o festival de Durban, na África do Sul, ter essa conexão. É importante até para a luta dos Guarani-Kaiowá, que precisa infelizmente ser feita fora do Brasil. Participamos da Comissão Nacional da Verdade Indígena, ouvimos as violências relatadas contra diversos povos durante a Ditadura Empresarial-militar brasileira. Atualmente, trabalho como editora de projetos audiovisuais num laboratório de observação do agronegócio chamado De Olho nos Ruralistas. Vemos como é difícil gerar empatia no Brasil pelos Guarani-Kaiowá, povo vítima das maiores atrocidades nestes últimos meses. Eles são confinados em espaços pequenos no Mato Grosso do Sul, onde não conseguem reproduzir seus modos de vida tradicionais. O agronegócio avança agressivamente, quem segura um pouco as coisas é o STF (Supremo Tribunal Federal). Triste notar que tudo pode acontecer ali, porque essas pessoas são invisíveis, mesmo para um público de esquerda.

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Do ponto de vista da linguagem, existe uma diferença entre a poesia dos indígenas e a dureza dos ruralistas. Era intencional deixar evidente o posicionamento de vocês já impresso na linguagem?
Laura:
Nos deparamos com questionamentos sobre como filmar o diferente, no caso os proprietários rurais. Quando e o quanto se aproximar? Queríamos retratar a altivez, a poesia e a generosidade humana dos Guarani-Kaiowá, até porque isso ainda não foi transmitido de modo tão atmosférico. Há ali relações mais formais e outras mais íntimas. No filme isso está bem demarcado, para utilizar uma palavra desse universo.
Marina: Concordo com tudo. Passamos muito tempo pensando nisso. Eu, a Laura e o Alziro Barbosa, o diretor de fotografia, concebemos a estética desses universos. Desde o princípio entendemos a coletividade dos Guarani-Kaiowá. Queríamos deixar espaço no quadro à natureza e às pessoas. Existem respiro nesses quadros. Já a situação com a família proprietária rural é sempre mais rígida, eles estão geralmente em espaços fechados, inclusive porque se colocaram assim. Não tínhamos muitas escolhas quanto aos espaços, eles controlavam essa questão e colocavam limites. Em vez de encararmos isso como problema, utilizamos como linguagem. A Luana sempre se coloca numa posição empoderada e sempre a centralizamos no quadro. Trabalhamos com o que a realidade nos oferecia. 

Como foi a vivência com a Luana e seus familiares ruralistas? Me parece que há uma tensão permanente no ar…
Marina:
Foi um processo no qual estávamos disponíveis para ouvir o que as pessoas tinham a dizer, não queríamos um maniqueísmo simplificado. Nos dispusemos a conhecer a família da Luana e a respeitar a perspectiva deles – que para a gente é muito violenta. Foi um processo sofrido, mas deixamos claro que filmaríamos ambos os lados e que colocaríamos a perspectiva Guarani-Kaiowá. Inclusive eles questionaram com quais indígenas falaríamos. Chegaram a indicar Guaranis que achavam aconselháveis. E os indígenas também sabiam que falaríamos com os ruralistas. Tudo às claras. Não falsificamos a nossa atitude e resguardamos nosso papel de cineastas em busca da construção da narrativa. Mas, a relação com a família ruralista sempre foi tensa, até mesmo porque as palavras jornalista e documentaristas os remetiam imediatamente a pessoas de esquerda.

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Nesta segunda-feira, 07, o filme será exibido no Filmambiente no Rio de Janeiro. Mesmo à distância, qual é a expectativa de vocês para essa sessão?
Laura:
Espero que dê tudo certo, inclusive porque a sessão contará com a presença de uma das protagonistas do filme, a Alenir Aquino Ximendes, que é Guarani-Kaiowá. Pegando o gancho das eleições presidenciais e falando ainda de expectativas, espero que o presidente Lula não olhe apenas para a Amazônia, mas também para outros biomas nos quais residem populações tradicionais. Como dizem os movimentos sociais: governo é que nem feijão, somente na pressão é que funciona. Então, é seguir lutando.
Marina: Minha expectativa é que o publico entenda que os Guarani-Kaiowá têm muito a nos ensinar em termos de resiliência, em organização e quanto à manutenção da fé em tempos degradantes. Os Guarani-Kaiwoá têm uma fé profunda na conexão da vida com a natureza. Espero que o público possa abrir os olhos. Tomara que a presença da Alenir aguce a sensibilidade dos presentes para tais questões. Graças aos Guarani-Kaiowá o sul e o sudeste do Brasil não viraram uma monocultura de cana-de-açúcar. Essa fratura do Brasil é profunda, não é apenas uma questão de quem está no poder, mas de como reeducamos a população. É preciso ensinar a verdadeira história brasileira nas escolas. No imaginário do povo brasileiro, o indígena é somente aquele na floresta de arco e flecha. Mas, temos uma população indígena imensa e diversa. A Alenir atravessou um bloqueio bolsonarista na estrada, quase não chegou ao Rio de Janeiro, então espero que ela consiga voltar em paz para a sua retomada. Ela realmente coloca a sua vida em risco em prol do ativismo. Levamos isso muito a sério e gostaríamos que o público entendesse isto: para uma liderança indígena sul-mato-grossense chegar hoje ao Rio de Janeiro ela está pondo a vida dela em risco.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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